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quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Pobreza Urbana e Fotografia

OLHARES SOMBRIOS SOBRE A CIDADE:
A POBREZA URBANA ATRAVÉS DA FOTOGRAFIA
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Linha de Pesquisa: Estudos em Sofrimento Social e Sociabilidade

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury
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A fotografia no Brasil, entre os últimos anos do século XIX até os anos trinta deste século, parece refletir o imaginário do progresso (HARDMAN, 1988; FABRIS, 1991). A popularização da fotografia se fez através do olhar sobre o que é moderno e o que é belo, massificando, assim, ao lado da câmera escura, uma ideologia do progresso onde o moderno e o belo se confundiam na criação de uma nova estética para o país, que se queria desenvolvido e urbano.
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A cristalização desse olhar no exercício fotográfico, se fez através da concepção de um novo reconhecimento da realidade nacional, onde a pobreza e a feiura eram sinônimos. A nova estética não comportava a pobreza. O olhar sobre a realidade nacional era um olhar de triunfo: a beleza da terra associada ao progresso técnico e urbanístico em desenvolvimento.
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A fotografia acompanhando o ideário do progresso fez-se realidade. A realidade nacional era a realidade da fotografia ou do olhar fotográfico. O olhar fotográfico passou a denominar o olhar social: o visível era o fotografado, o real passava a ser um conjunto fragmentário a ser inventado pela fotografia.
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A popularização da fotografia se fez assim através dos registros de paisagens e vistas que decantavam a beleza e o moderno da cena, e de registros do progresso. Este último expresso no acompanhamento fotográfico de construções e reformas de vias e espaços públicos, denotando o embelezamento, funcionalidade e crescimento da urbe.
[1] A pobreza e o feio eram retirados de cena. Sua presença apenas era enfocada por vias indiretas, como contraponto da modernidade.
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A fotografia silenciava no instantâneo revelado os murmúrios da sociedade. Da destruição de quarteirões inteiros, da intervenção pública no cotidiano dos habitantes pobres, dos gritos de protesto da população deslocada de suas habitações, locais de lazer e trabalho e privacidade, calavam as fotografias. O registro do processo apenas documentava a modernidade a chegar, o advir de novos hábitos e novos tempos mais condizentes com o progresso nacional.
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Com os olhos postos no futuro, a transformar em passado cada registro do presente, a construir um passado, a fotografia ganhava popularidade no Brasil, associada à lógica do progresso em voga nos círculos dominantes (econômicos e políticos) e governamentais. Registrava o advir da modernidade, o fim do atraso. A ilusão técnica, da qual a fotografia era produto, cunhava de atraso tudo o que se contrapunha ao ajustamento do real aos princípios e lógica progressista.
Como um desbravador de novos mundos, o olhar fotográfico tratava de moldar um real condizente a um ideário de modernidade da qual fazia parte. A construção de imagens de um país moderno foi um dos principais exercícios da fotografia no Brasil até os anos trinta.
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A modernidade via exclusão social. Através da moldagem das cidades às novas regras de urbanização e do urbanismo no ocidente, da exaltação do progresso técnico e de um novo estilo de vida, a fotografia no Brasil buscava eclipsar as manifestações de pobreza e violência pelo simples desaparecimento do cenário fotográfico, ou pela enunciação do seu fim, nos ensaios sobre a renovação urbana operante na época.
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Na década de trinta, a fotografia associa-se mais uma vez ao Estado. O registro civil passa a ser documentado através da fotografia, bem como o registro policial. A fotografia como identificação passa a ser utilizada.
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Nessa nova esfera de atuação, o olhar fotográfico revela para si a pobreza, ajudando as autoridades a enquadrá-la e administrá-la. Através da fotografia policial se traça um perfil da pobreza como bandidos e vagabundos, através da carteira de trabalho a comprovação do pobre trabalhador.
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Processo de segmentação da pobreza em curso desde a abolição da escravatura, em 1888, ganha mais nitidez e poder de controle social com a associação da fotografia aos registros civis e policiais. A partir de então, ligado aos avanços da leitura de impressões digitais, o controle social passa a orientar-se por critérios mais "científicos", onde a segmentação imposta à pobreza deixa de ser geral e torna-se mais individualizada e possível de melhor rastreamento, combate e proteção social aos cidadãos.
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Há também neste período um desenvolvimento da fotografia de cunho mais social. A generalização das técnicas fotográficas e a sua utilização por setores de esquerda e por segmentos ligados à academia levam a um redescobrimento da pobreza e do atraso no Brasil. O olhar fotográfico inicia assim um percurso onde o encantamento da pobreza se mescla com denúncias de um sistema opressivo, e com a corrida para o registro de culturas e situações de pobreza resistentes ao progresso.
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A banalizaçào da fotografia, por outro lado, se estende também pela imprensa. As fotos ganham cada vez mais espaço nas revistas e jornais brasileiros, atuando como demonstrativos de verdade às informações jornalísticas. A pobreza começa a ganhar espaço e visibilidade social. Registros de greves, de manifestações públicas, de confrontos com a polícia, fotos de mendigos nas ruas das cidades, de favelas, de locais de lazer, de bairros populares, saem do fora fotográfico e passam a ocupar as cenas e olhares dos repórteres-fotografos.
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A pobreza ocupa o espaço fotográfico: na visão romântica da esquerda, nos anos cinquenta e sessenta, que decantam o pobre e as favelas e morros brasileiros como um espaço encantado onde se constrói ou por onde se constituirá o Brasil novo, revolucionário; através do olhar de denúncia às injustiças sociais, também patrocinado pela esquerda; pelo registro do exótico pela academia, que se dedica cada vez mais ao estudo da pobreza como espetáculo em vias de desaparecimento, imbuída que estava na visão desenvolvimentista e dualista de época; no olhar clientelista do Estado, que redescobre a pobreza e seu controle pelo filtro da filantropia, acompanhado de perto pelos registros fotográficos nos jornais, revistas e documentos oficiais e partidários. O espaço da pobreza, porém, embora ampliado e visualizado através de diferentes olhares, ainda é documentado através de uma visão de progresso.
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Sentida através da ilusão reformista que servia de parâmetros ao imaginário da época, a pobreza era vista através da necessidade de superação do sofrimento a que estava exposta, pelo desenvolvimento econômico. Era olhada ainda como culturas ou expressões culturais resistentes, fadadas ao desaparecimento, ou exprimindo negação pela manipulação clientelista, em contraposição às obras sociais erigidas em seu (da pobreza) benefício.
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A fotografia, assim, nessa trajetória brasileira até os anos sessenta, embora ganhe pluralidade de interpretações e descubra a pobreza como cenário, não consegue afastar-se da visão do progresso do seu nascedouro no país. Seja por visões românticas, naturalizadas, exóticas ou clientelísticas, a pobreza vem à tona e adquire visibilidade ao olhar fotográfico como um subproduto da ideologia desenvolvimentista. Como objeto a ser superado pela modernidade: daí a necessidade urgente de registros, antes que desapareça, ou mesmo do valor moral e encantamento dela advindos para a construção de um novo país, ou ainda, da manipulação clientelista para manutenção de uma estrutura de dominação que cada vez mais necessita dos pobres para exercitar-se.
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Os anos setenta são anos negros. A esquerda perde a ingenuidade e se esfacela no embate armado com o Estado. Anos de repressão e chumbo. A fotografia acompanha o processo registrando o que pode e divulgando o que escapa da censura. O olhar fotográfico também vai perdendo a ingenuidade. A pobreza perde visibilidade nos jornais, aparecendo apenas como produtos de benfeitorias do poder: construção de hospitais e centros de saúde populares, equipamentos de lazer, creches, habitações populares, entre outros. Registros de um poder militar em busca de legitimação popular.
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Na academia tem início ao boom de teses e dissertações que atravessa os anos oitenta. O pobre dá o tom aos discursos acadêmicos. A visão do progresso pouco a pouco desaparece, cedendo lugar a uma visão estrutural de permanência da pobreza e, depois, a uma crítica da ideolgia do progresso inerente à formação capitalista (e, nos anos oitenta, socialista).
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O olhar fotográfico acompanha o desencanto, seja através das ilustrações às teses acadêmicas, seja pelo caminho aberto pelos serviços de assessoria e documentação destinados aos pobres, que começam a surgir com vigor no país no fim dos anos setenta, e que passam a ser conhecidos desde o final dos oitenta como Organização Não-Governamentais (ONGs). Estes serviços, entre outras atividades, documentam exaustivamente, através de fotografias, a pobreza do país.
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Modos de vida, violência, processos de organização e trabalho são temas largamente explorados através da fotografia. São deles importantes ensaios fotográficos sobre a pobreza no Brasil, durante os anos setenta e oitenta. Como por exemplo, "A Criança e seus Direitos" (1975), exposição coletiva patrocinada pena UNICEF que percorreu o país contrapondo a situação de carência da criança no Brasil com os direitos da criança. Ou ainda, a também exposição coletiva "Violência e Miséria" (1981), que percorreu o Brasil e exterior retratando o dia a dia de violência e miséria urbana no país.
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A pobreza passa a ser visibilizada pelo olhar fotográfico, a partir dos anos setenta, sombriamente. Excluída das fotos até os anos trinta, emerge como palco do exótico, da denúncia, do encantamento e da manipulação nos anos cinquenta e sessenta, para situar-se, a partir dos setenta, como olhar desesperançado. Como registro da violência, da solidão, do indizível e da dor cotidiana em que sobrevivem grande parte dos homens comuns, esquecidos habitantes das cidades, no Brasil. A fotografia se interessa, a partir de então, pelo lado obscuro do cotidiano da população nas cidades. Os becos, os vazios de viadutos e prédios públicos, as calçadas, as galerias, as beiras dos rios e pontes, os terrenos baldios, as praças, os esgotos, a parte desagradável da cidade situada por trás da fachada moderna onde vive pequena parcela da população, cidadãos com direitos plenos e completo usufruto dos bens e equipamentos urbanos, a eles destinados.
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O contraste social compõe então o cenário fotográfico. Nos anos oitenta e noventa o olhar fotográfico com sua atenção voltada para a fragmentação do cotidiano onde convivem pobreza (no geral) e cidadãos, parte para a descoberta do inusitado, como na exposição fotográfica "Os Homens Gabirus" (1992), baseada numa pesquisa do Centro Josué de Castro, Recife, e numa série de reportagens no jornal Folha de São Paulo, que retrata a insuportabilidade da miséria e as conseqüências físicas nos sobreviventes, como o nanismo e um aparente embrutecimento mental; expõe a violência contra a população pobre, como no ensaio fotográfico "Massacre da Candelária" (1993), ou no "Os Mortos de Carandirú" (1992 e 1993); registra a incomunicabilidade e solidão dos pobres, como no ensaio "Chicos, Raimundos e Marias" (CAMARGO, 1992); e documenta o cotidiano da pobreza, como no "Livre Acampamentos da Miséria" (MARTINS, 1993), onde se busca retratar as improvisadas habitações da pobreza nos grandes centros urbanos.
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O tom é malancólico sempre, e insistente: como atingir a indiferença e insensibilidade urbana para com a pobreza? Pode a pobreza ter inexistência para o social como solidariedade e visibilidade, apenas, como medo privado? Por que a opinião pública tende a legitimar as práticas de extermínio e exclusão impostas à pobreza e vira as costas ou desconhece atitudes que busquem justiça social?
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O olhar sombrio da fotografia sobre a pobreza e cidade, explorando os contrastes sociais nos grandes centros urbanos do país, aprofundando temas que fazem parte do cotidiano das cidades e da pobreza que nelas habita, como a solidão, a incomunicabilidadfe, a insuportabilidade da miséria, a violência, repensa o seu trajeto. A melancolia e a desesperança do olhar fotográfico sobre a pobreza no Brasil, faz uma retrospectiva nostálgica e surreal. Nela parece se misturar o desencanto do mundo, com a finalização de paradigmas norteadores da esperança do melhor a vir, com um projeto ainda insipiente de reconstrução do mundo (social brasileiro) através das imagens.
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Parece querer revelar no seu olhar atual uma verdade escondida (SONTAG, 1986:58), interior, na demonstração melancólica da miséria urbana, que abra campos para uma nova sensibilidade social (em sua leitura do real). Real, em muitos casos, ainda confundido com o que a fotografia revela e busca afirmar como realidade.
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Ao recompor o que restou do sonho do progresso, da modernidade , da revolução, a fotografia ainda preocupa-se, como Kertész, em confirmar uma razão a tudo que rodeia e seja digno de registro. Como uma espécie de revelação desse real/ideal.
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A construção fotográfica dos contrastes na urbe moderna, a busca do entendimento lógico da natureza da miséria no país, o esforço para sua compreensão através das imagens, se parece compor um cenário de angústia e repetição quase sem saída, luta ainda por um projeto de sensibilização social. Uma recomposição da realidade, através das fotografias, que retome as linhas mestras do pensamento sobre o Brasil e quebre a indiferença social sobre a tragédia da miséria urbana.
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Esforços de desesperançados que impõem a si próprios o projeto de sensibilidade com que esperam inundar o social. Antes, é bom afirmar, que tudo não desmorone e tome as características de fantasmas sombrios do fora fotográfico, que rondam silenciosos a cena ameaçando a revelação, podendo transformar-se num anunciar de desespero: imagens do horror cotidiano de miséria, sem saída e que não comovam sequer o país.
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BIBLIOGRAFIA
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CAMARGO, Rodrigo F. (org.). "Chicos, Raimundos e Marias". Ordem/Desordem, 10:45-48.
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FABRIS, Annateresa (1991), Fotografia: Usos e Funções no Século XIX. São Paulo, Edusp.
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HARDMAN, Francisco Foot. (1988), Trem Fantasma, a Modernidade na Selva. São Paulo, Companhia das Letras.
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LEITE, Miriam Moreira. (1993), Retratos de Família. São Paulo, Edusp.
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MARTINS, Ana Lúcia Lucas. (1993), Livres Acampamentos da Miséria. Caxambú, Trabalho apresentado na 17ª ANPOCS.
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MOURA, Carlos Eugênio M. de. (1983), Retratos Quase Inocentes. São Paulo, Nobel.
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SONTAG, Susan. (1986), Ensaios sobre Fotografia. Lisboa, Publicações Dom Quixote.
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NOTAS
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[1] - Outra vertente de popularização se deu através do registro de cenas da vida privada, onde os retratos de família e entre amigos eram os pilares centrais. Nesta vertente, a ótica dominante era a tradição, que contraditoriamente ou não, era uma das principais bases para o pensamento do progresso no Brasil. Sobre os retratos de família ver LEITE (1993) e MOURA (1983).
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Este ensaio foi elaborado para o Grupo de Trabalho: Estudos Urbanos no XVIII Encontro Nacional da ANPOCS. Caxambú, novembro de 1994.
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Foi publicado, posteriormente, no Cadernos do CEAS, n. 158, pp. 61 a 67, 1995.
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Uma segunda versão, mais elaborada, deste trabalho, foi publicada na Revista Política e Trabalho, n. 12 , pp. 139-148, Setembro de1996
{Esta versão pode ser encontrada on-line no site:
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Uma terceira versão deste ensaio pode ser encontrada na Coletânea organizada por Mauro Guilherme Pinheiro KOURY, intitulada Imagens & Ciências Sociais (João Pessoa, Editora Universitária, 1998, pp. 109 a 118), sob o título "Fotografia e Pobreza".
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