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domingo, 28 de junho de 2009

5ª Comunicação sobre a Enquete ‘Sujeira e Imaginário Urbano no Brasil – 2009’ – A cidade de Curitiba, Paraná

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O que os curitibanos representam como sujo ou sujeira – 2009

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury
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Introdução
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Hoje damos continuidade às comunicações sobre a enquete Sujeira e Imaginário Urbano no Brasil – 2009, com as informações sobre a aplicação da enquete na cidade de Curitiba, capital do estado do Paraná, Brasil. Como nas demais capitais já analisadas e publicadas neste Blog: João Pessoa, PB; Recife, PE; Belém, PA; São Paulo, SP, nos dias 22 e 26 de maio e 05 e 09 de junho de 2009 (Koury, 2009, 2009a, 2009b, 2009c), a enquete na capital paranaense foi realizada entre os meses de março e abril de 2009.
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Como nas demais capitais, o questionário foi aplicado em abordagem direta aos entrevistados em locais muito frequentados do centro de Curitiba, em paradas de ônibus, em shoppings e praças locais. Foram entrevistadas 60 pessoas, sendo 32 mulheres, isto é, 53,3% do total dos respondentes e 28 homens, isto é, 46,7% do conjunto de respostas, com renda, estado civil, religião, escolaridade e profissão diversas.
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Esta comunicação, como as outras, utilizará apenas o cruzamento da questão ‘o que você considera sujo ou sujeira’ com a categoria sexo do entrevistado. A apresentação das representações de sujo ou sujeira foi agrupada em categorias analíticas tiradas do conjunto das respostas dos entrevistados nas seis capitais pesquisadas e sobre estas categorias tabuladas as respostas dos entrevistados por capital.
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Aqui, como nas outras comunicações desta enquete, as respostas se encontram dispostas em dois gráficos. O primeiro revelando a totalidade dos entrevistados da capital paranaense a partir das representações de sujo ou sujeira por eles revelada. O segundo gráfico, por sua vez, distribui as representações de sujeira ou de sujo pelo sexo do entrevistado.
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Esta série de comunicações sobre a enquete ‘Sujeira e Imaginário Urbano no Brasil’ neste Blog tem a intenção simples de apresentar um instantâneo das representações sobre o que é sujeira para as capitais pesquisadas e para a cidade de Curitiba, aqui, em particular. Uma análise mais aprofundada sairá, posteriormente, a partir de dezembro de 2009, em uma série de artigos acadêmicos a serem publicados em periódicos científicos nacionais e internacionais e no relatório final da enquete, por capital pesquisada e para o conjunto das capitais.
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O que os curitibanos indicaram como sujo ou sujeira?
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Para responder a esta questão se apresentará dois gráficos. O Gráfico 1 oferece o percentual para as categorias analíticas indicadas pela totalidade dos entrevistados da cidade de Curitiba, e o Gráfico 2, indica o percentual por sexo para as mesmas categorias.
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Os dois gráficos serão, nesta comunicação, apresentados de forma simultânea, e a sua leitura será feita a partir do maior percentual para a totalidade dos entrevistados, até o menor percentual, e sobre eles o comportamento por sexo.
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A categoria Falta de Higiene é a categoria analítica que aparece com maior número de indicação entre os curitibanos, com 23,3% das respostas, como pode ser visto no Gráfico 1, acima, isto é, 14 entrevistados a indicaram como o que considerava sujo ou sujeira. Destes 23,3%, de acordo com o Gráfico 2, abaixo, os homens aparecem com 21,4% das respostas, isto é, seis informantes do sexo masculino, contra 25% das mulheres entrevistadas, isto é, oito pessoas do sexo feminino.
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Homens e mulheres de Curitiba equivalem-se na eleição da falta de higiene como o que consideram mais sujo. As expressões nojo e repugnância foram comuns em suas falas para a falta de higiene de cunho doméstico. Muitas das mulheres entrevistadas e muitos dos homens falaram, inclusive, de que ao irem pela primeira vez a casa de um conhecido, a arrumação e a higiene eram as primeiras coisas a ser buscada. Um rapaz chegando a afirmar que já acabou com um namoro, de uma garota de quem gostava muito, quando esta o convidou para conhecer os seus pais e jantar em sua casa.
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O descuido com a arrumação e a poeira nos móveis indicaram para ele a pouca noção de higiene daquela casa e, indo a cozinha e encontrando em “uma grande desordem e com muita sujeira”, pratos e panelas para lavar dentro da pia, o fogão sujo, entre outras informações, o levaram a um nível de repugnância que foi difícil suportar o jantar e as horas que teve que passar na casa da namorada. Alguns dias depois, começou a se dizer com problemas para não encontrar a garota, até que finalizou o namoro.
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Uma professora de ensino médio também relatou o fato de ao ir pela primeira vez a casa de um conhecido ou de uma conhecida, tinha por hábito pedir para ir ao banheiro para verificar o nível de higiene apresentado. Muitas amizades acabaram antes de começar pelo nojo apresentado pela falta de cuidados domésticos. Associando, claramente, a questão da falta de higiene doméstica a falta de educação e a falta de caráter. Como se pode confiar em alguém que não tem o mínimo de hábitos civilizados, que não tem o mínimo de educação doméstica, revelados no descuido com a desarrumação.
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A mesma indicação da falta de higiene é indicada para o asseio pessoal. Pessoas com roupas desalinhadas, com aparência suja, levantam suspeita em relação ao próprio caráter pessoal. O sujo é indicado como um hábito não civilizado, como uma postura perante o mundo não condizente e que causa repugnância e medo.
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A segunda categoria com maior índice de indicação entre os curitibanos foi a categoria Violência Urbana. Esta categoria aparece com 20% do total de respostas, isto é, com 12 indicações dos entrevistados. Os dois sexos aparecem cada qual com seis indicações. O que equivale em 18,7% do total das mulheres, contra 21,4% do total dos homens.
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A outrora pacata Curitiba, de algumas décadas atrás, como apontada por vários depoentes, deu lugar a uma cidade com um alto índice de criminalidade. Roubos, assaltos, estupros, sequestros relâmpagos, assassinatos e mortes violentas são apontados como o que tem de mais sujo na cidade. O que vem fazendo, segundo os entrevistados que apontaram a violência urbana como algo sujo, os habitantes da cidade se tornar cada vez mais reclusos e com medo de enfrentar os perigos que a cidade apresenta no seu cotidiano.
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O desconhecido na rua é apresentado como alguém potencialmente perigoso e que quebra os códigos de normalidade da cidade. Ser abordado por um desconhecido é sempre um sinônimo de que algo perigoso pode acontecer. O que torna o curitibano ainda mais avesso ao outro desconhecido, ao diferente. O que torna a cidade, na visão de um entrevistado, mais provinciana e mais fechada.
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Segundo este entrevistado, os curitibanos sempre foram potencialmente avessos ao estrangeiro, àqueles que não são da terra e invadem o seu território. O que para ele acontece hoje em dia é que esses potencialmente avessos vêm se tornando uma fobia, já que nestas últimas décadas a cidade vem sendo inflada e ocasionando uma quebra de pessoalidade antes existente e gerando o medo que a impessoalidade atual provoca. Tornando esse outro perigoso e esse perigo oferecido pela sua presença como algo sujo, como algo que rompe um código de pessoalidade perdido em um tempo e em um espaço, mas que ainda está presente na alma curitibana.
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A categoria Fluídos aparece como a terceira categoria mais indicada, com nove entrevistados, isto é, com 15% do total dos respondentes. Destes nove entrevistados, cinco são do sexo feminino, isto é, 15,6% do total das mulheres, e quatro do sexo masculino, isto é, 14,3% do total dos homens.
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Esta categoria, para os curitibanos, indica uma prática que está associada à falta de civilidade movida pela falta de higiene e educação doméstica. O ato de espirrar, cuspir, escarrar, defecar, urinar em locais públicos revela um costume bárbaro não condizente com o habitante de uma urbe. O que causa nojo e repugnância em quem vê ou sente as consequências desse hábito, além de provocar o perigo de contaminação. A mesma repugnância é apontada para ferimentos expostos, sangue derramado, espermas e outros líquidos corporais. Os fluídos, assim, além de indicarem um ato não civilizado, é uma ação perigosa, pois envolve a possibilidade de doenças, tornando-se, assim, um caso para a saúde pública.
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A categoria Falta de Confiança, por sua vez, aparece com 11,7% das respostas totais, isto é, sete entrevistados a indicaram com algo sujo. Destes sete entrevistados, quatro foram do sexo feminino, com 12,5% do total das mulheres, e três do sexo masculino, com 10,7% do total dos homens.
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A categoria falta de confiança entre os curitibanos apresenta-se como uma categoria de suspeição. O outro, o desconhecido, principalmente, é objeto de medo, provoca uma série de possibilidades inerentes ao diferente que frequentemente o levam a rejeição. Para tornar-se confiável é necessário um tempo de convivência que permita a construção de laços mais sólidos. Laços de confiança.
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Como nas últimas décadas a cidade de Curitiba vem se transformando e tornando-se menos pessoalizada, esses laços de confiança tem se tornado cada vez mais pulverizados, e o outro, o diferente, mais ameaçador. O que os faz enxergá-los sob o manto do receio de contaminação de hábitos não próprios da cidade, e com a roupagem de medo de que algo ou alguma coisa possa atingi-los no seu cotidiano.
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Daí o fechamento, às vezes, segundo um entrevistado, a aparência de arrogância para com o outro não conhecido. O que fez um entrevistado, médico e professor universitário alegar, com bom humor, que “o bom curitibano é o curitibano que está fora de Curitiba”. Fora da cidade “ele relaxa e enjoy a vida, se torna aberto para o diferente. De volta para a cidade, não sei o que é que dá nele, ele se torna fechado e difícil de novas relações. É um caramujo que só olha pro umbigo e prá dentro de sua própria carapuça”.
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As categorias Falta de Zelo com a Coisa Pública e Desrespeito ao Cidadão, aparecem cada uma com 8,3% do total dos entrevistados, isso é, com cinco entrevistados do total pesquisado. A primeira delas com três mulheres e dois homens, o que perfazem o total de 9,4% do total de mulheres e 7,1% do total dos homens.
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A segunda delas, a categoria desrespeito ao cidadão, por seu turno, representa 6,3% de indicações do sexo feminino, com duas mulheres, e, 10,7% homens, isto é, três indivíduos do sexo masculino.
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Como nas demais capitais que as indicaram, a falta de zelo com a coisa pública indica uma visão da política como algo sujo, como politicagem, como corrupção, como mau uso de verbas públicas, a visão da política como abuso de poder e desmandos administrativos, entre outros tantos adjetivos. A desilusão com a política e os políticos no país, no estado e na cidade é uma das principais causas de a enxergarem como sujeira, como uma prática suja.
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O mesmo acontecendo com a categoria desrespeito ao cidadão. O orgulho de uma cidade com um bom nível de urbanidade e infra-estrutura construída ao longo das últimas décadas é acompanhada com um sentimento de desrespeito pessoal, principalmente entre os cidadãos das classes menos abastadas da cidade.
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A vida nos bairros mais pobres e periféricos é comentada como uma vida de sofrimento e tragédia pessoal e comunitária, que os fizeram indicar a falta de urbanização, a falta de iluminação pública, o lixo acumulado nas ruas, com uma coleta às vezes de quinze e quinze dias, como um desrespeito à cidadania, ao mesmo tempo em que narram suas desventuras através de uma baixa estima, que parece indicar que se consideram o desrespeito ao cidadão pobre como sujeira, eles próprios parecem ser o lixo, a principal sujeira para a cidade, que a cidade gostaria de extirpar.
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E é o que parece ser nas indicações das outras duas categorias analíticas para o que é sujo ou sujeira para os curitibanos entrevistados. A categoria Mendicância, Gente Pobre, Gente Suja, aparece com 6,7% do total dos informantes, sendo 9,4% mulheres e 3,6% homens, seguida da categoria Preconceito Racial, que aparece com 3,3% do conjunto das respostas. Destes, 3,1% mulheres e 3,6% homens.
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Estas duas categorias indicam uma visão do curitibano médio sobre a pobreza e sobre a questão étnica como sujeiras. Apesar de minoritárias, indicadas por quatro e por dois apenas, mostram o pobre e aquele de etnia diferente, no caso, o negro, como associados à falta de higiene, à falta de educação doméstica, àqueles que impõem medo e como àqueles causadores de atos perigosos. Como sujeitos da desordem, em oposição à ordem da cidade, à civilização.
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Sim, os curitibanos entrevistados, em suas respostas opõem para a ordem da cidade e a civilização, à desordem e a diferença como sujeira, como ameaça social e individual que precisa ser evitada e controlada.
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Nesta mesma sequência de oposição aparece a categoria Homossexualidade, com 1,7% das respostas, isto é, com apenas uma indicação, sendo esta indicação dada por um entrevistado do sexo masculino. O entrevistado que a indicou como algo sujo, narrou a sujeira inerente à prática homossexual como um desvio de conduta perigoso e como um atentado a moral e aos bons costumes. Associando, ainda, a homossexualidade como uma prática perigosa e causadora de doenças, como “a praga da AIDS, por exemplo, que hoje está disseminada entre homens e mulheres do mundo inteiro”.
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A categoria Falta de Consciência Ecológica aparece também com apenas uma indicação, também de um respondente do sexo masculino. Esta categoria apresenta-se, deste modo, com 1,7% do total dos curitibanos respondentes.
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Como nas demais capitais que a indicaram, aparece no interior de um discurso político-acadêmico que aponta o caminho do progresso de nossa civilização como uma via para o suicídio do humano, e prega uma visão ecológica de desenvolvimento sustentável. O entrevistado que a indicou, entre os respondentes curitibanos, era um político do partido verde local e professor universitário.
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Nos exemplos dados pelo entrevistado, como causa da falta de consciência ecológica, está o aumento da emissão de gases tóxicos no ar, a emissão de resíduos industriais nos rios, o desmatamento, o chorume, entre outros. O que o aproxima das respostas dadas à categoria fluídos, o diferenciando, porém, pelo discurso político-acadêmico em que está inserido.
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As categorias Imoralidade e Gente fraca, por seu turno, não foram indicadas por nenhum curitibano respondente desta enquete.
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Considerações Finais
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A cidade de Curitiba foi apresentada nesta comunicação através do seu imaginário sobre o que é sujo e sujeira. Nos próximos dias será postada a apresentação sobre sujeira na última cidade pesquisada pela enquete: a cidade de Brasília, DF.
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Como se pode notar pela série de comunicações aqui apresentadas para esta enquete, a categoria sujeira oferece uma gama de possibilidades analíticas que ajudam a compor um painel sobre as transformações recentes no comportamento e no imaginário do brasileiro comum e morador dos centros urbanos, sobre a construção social e cultural do país. Ajuda a perceber, também, a cultura política em sua ambivalência e ambiguidade que vem tomando conta do homem comum neste início do século XXI e a formação de uma nova mentalidade presente na pulverização dos laços de uma sociabilidade pessoalizada, acarretando medos, fobias e preconceitos, além de uma consciência mais acurada, embora desesperançada da política profissional e da gestão da coisa pública nas cidades.
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Bibliografia
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João Pessoa, Paraíba, sobre o significado de sujeira”. 1ª Comunicação sobre a enquete ‘Sujeira e Imaginário Urbano no Brasil’. Blog GP em Antropologia e Sociologia das Emoções, 22 de maio de 2009. http://grem-sociologiaantropologia.blogspot.com/2009/05/o-que-pensam-os-moradores-da-cidade-de.html*
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (2009a). “O que é sujo ou sujeira para os habitantes da capital pernambucana”. 2ª Comunicação sobre a enquete ‘Sujeira e Imaginário Urbano no Brasil’. Blog GP em Antropologia e Sociologia das Emoções, 26 de maio de 2009. http://grem-sociologiaantropologia.blogspot.com/2009/05/2acomunicacao-sobre-enquete-sujeira-e.html*
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (2009b). “O que é sujo ou sujeira para os habitantes da capital paraense”. 3ª Comunicação sobre a enquete ‘Sujeira e Imaginário Urbano no Brasil’. Blog GP em Antropologia e Sociologia das Emoções, 05 de junho de 2009. http://grem-sociologiaantropologia.blogspot.com/2009/06/3a-comunicacao-sobre-enquete-sujeira-e.html
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KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (2009c). “O que os moradores da cidade de São Paulo (SP) apontam como sujo ou sujeira – 2009”. 4ª Comunicação sobre a enquete ‘Sujeira e Imaginário Urbano no Brasil’. Blog GP em Antropologia e Sociologia das Emoções, 09 de junho de 2009. http://grem-sociologiaantropologia.blogspot.com/2009/06/4a-comunicacao-sobre-enquete-sujeira-e.html
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quinta-feira, 25 de junho de 2009

Série Pesquisas em Desenvolvimento, n. 05 (25 de junho de 2009)

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Publica-se, hoje, neste Blog, o quinto número da Série Pesquisas em Desenvolvimento no GREM. Esta Série tem por objetivo a publicação e a divulgação dos Resumos Expandidos das Pesquisas em Desenvolvimento ou Recém Finalizadas pelo corpo de pesquisadores do GREM.
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Nesta Série serão postados resumos individuais dos pesquisadores com um informe sobre suas pesquisas e uma pequena bibliografia referencial de apoio. Será informada, também, a linha de pesquisa do GREM a que estão vinculadas.
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Já foram publicados neste Blog os números: 01, em 12 de junho de 2009, o 02, em 15 de junho de 2009, o 03, em 18 de junho de 2009, o 04, em 22 de junho de 2009 da Série Pesquisas em Desenvolvimento no GREM.
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O número 05 da Série Pesquisas em Desenvolvimento publica o Resumo Expandido da pesquisa em andamento no GREM, coordenada pelo pesquisador Márcio da Cunha Vilar. A pesquisa em desenvolvimento de Márcio Vilar tem por objetivo a obtenção do título de Doutor em Antropologia Social/Cultural pela Universidade de Leipzig, Alemanha.
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A pesquisa de Márcio da Cunha Vilar está vinculada a Linha de Pesquisa do GREM: Memória e Imaginário Social.
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Vamos, então, para o número 05 da Série Pesquisas em Desenvolvimento no GREM.
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Título da Pesquisa: Etnografia dos Ciganos Calón no nordeste do Brasil. Estudo antropológico sobre produção sócio-cultural de diferenças e semelhanças entre minoria étnica e sociedade majoritária
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Pesquisador: Márcio da Cunha Vilar
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Resumo: A presente pesquisa etnográfica tem como objetivo compreender o mundo dos ciganos Calóns no Brasil, principalmente, a partir do estudo das relações destes com não-ciganos, mas também considerando as práticas internas de diferenciação e/ou distinção destes entre si – já que um alto grau de segmentaridade (ou uma intensa dinâmica segmentar) presente na organização social Calón vem sendo constatado empiricamente desde o início das pesquisas. Para tanto, tem sido desenvolvido trabalho de campo em ranchos no Rio Grande do Norte e Bahia, com concentração neste último estado; mais particularmente nas regiões sul e sudoeste, onde atualmente está sendo realizada uma estadia mais prolongada.
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Muitos dos estudos sobre ciganos costumam essencializar os grupos abordados, conferindo-lhes qualidades particulares quase como que inatas que os destacariam de outros grupos ciganos e da sociedade na qual vivem. Por outro lado, não são raras as generalizações. Características observadas no âmbito de um determinado grupo são muitas vezes atribuídas a todo o conjunto dos ciganos. Em todo caso, todas as tentativas de definir os ciganos tanto por ciganos quanto por não-ciganos, independente do critério utilizado, nunca abarca a totalidade das diversas coletividades como tal identificadas. Não há critérios estabelecidos por meio dos quais seja possível identificar alguém como sendo ou não cigano. A referência mais utilizada consiste na autoproclamação da pessoa como tal acompanhada do consentimento ou aceitação do grupo.
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Apesar de haverem várias explicações (como as versões sobre a origem indiana, ou a grega, egípcia etc.) nada foi constatado no que diz respeito à origem dos ciganos (Fraser, 1993). O próprio nome “cigano”, cunhado por não-ciganos, não passa de um termo que ainda hoje é utilizado por falta de outro melhor e/ou por de alguma forma comportar e transmitir a tensão nunca resolvida que gira em torno da definição de tais “grupos” (Moonen, 2007; Streck, 2008). Dependendo da região geográfica onde se encontrem, pode mesmo haver dezenas de outras denominações coletivas entre os próprios ciganos, pois os ciganos costumam se autodenominar de formas as mais diversas, no que terminam por se distinguirem uns dos outros. Existe algum consenso quanto à terminologia de três grandes grupos continentais: os “Rom”, procedentes do Leste Europeu; os “Sinti”, da Alemanha e Itália ou “Manus” na França; e os “Calons”, ciganos da península ibérica. No entanto, há uma infinidade de autodenominações procedentes, por ex., de profissões (Ursari, Kalderasch, Kovaci...), lugares (Piamontesi, Halab, Tatare...) e etc. Por sua vez, termos como “grupo”, “família” e até mesmo “rede” para a designação de coletividades ciganas, devem ser utilizados com cuidado, de forma bastante calibrada, uma vez que, por mais que tais termos contribuam para dar visibilidade conceitual-estrutural a estes ou àqueles ciganos, eles podem encobrir características específicas do modo como tal e tal coletividade se constitui morfologicamente.
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Segundo Streck, no processo de estratificação das sociedades, sejam tradicionais ou modernas, principalmente através do desenvolvimento da divisão do trabalho, são também gerados, com os próprios estratos ou castas, “entre-espaços” que, por sua vez, oferecem chances específicas de sobrevivência. “Freqüentemente, nos ‘espaços’ estabelecidos, o entre-espaço é criminalizado enquanto zona socialmente cinza. Em fontes antigas [...] lê-se a respeito de “párias sem senhor” ou de “párias sem país”. Mas, para além da expressão de aversão, é possível reconhecer aqui o entre-espaço: em tal lugar as pessoas seguem o senhor A, noutro canto o senhor B, entre aqui e lá se vive sem senhor, isto é, livre”. (Streck, 2008).
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Trata-se aqui dos setores informais de uma dada sociedade, enquanto sombras residuais de circulação e de estabelecimento não catalogados ou reconhecidos oficialmente como um espaço próprio, mas estigmatizados e, na regra, evitados (1). Em tais espaços (de invisibilidade), é possível verificar processos de reapropriações e rearranjos culturais (Sahlins, 1997) que se manifestam na produção de uma cultura paralela ou de contraste, num sistema de valores próprios, em língua local e na existência de mecanismos de auto-regulação. “Gypsies provide a superb extreme case of people whose culture is constructed and recreated in the midst of others” (Okely, 1983). Um exemplo desse rearranjo poderia ser encontrado na forma como os ciganos falam.
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Ao lado da língua local, ou seja, da região onde vivem, ciganos podem falar também alguma variação do chamado Romanês ou Romani Chib. Essas variações podem, às vezes, serem fortes o suficiente para que determinados ciganos não se entendam. No caso dos Calons a variação do Romanês falada pode ser chamada simplesmente de “língua”, “língua de cigano” ou “Chibi” (que em Romanês significa “língua”). Em todo caso, o uso dos idiomas ou dialetos geralmente se dá no interior do grupo e como forma de fronteirização perante os gadjes – como os ciganos muitas vezes denominam os “não-ciganos”; no caso dos Calóns, também é muito comum a denominação “jurón”/”jurín” ao lado de “gadjo” ou “gadjão”. Embora tenha sido constatada uma correspondência com o sânscrito, tais idiomas ou dialetos, no entanto, são elaborados ou compostos, em boa parte, a partir da própria língua local como também através do uso de vocábulos por onde já se esteve anteriormente. A freqüente recorrência desse fenômeno lingüístico evidencia a estreita ligação do grupo em questão com a sociedade maior na qual vivem e/ou entre as quais viveram. Não há uma língua cigana, por assim dizer, porém várias e nenhuma (Matras, 2003).
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Parece ser mais interessante, dessa forma, considerar as diferenciações “internas” entre os ciganos em termos de “variações” (Barth, 1987) (variações estruturais perceptíveis tanto de uma perspectiva diacrônica – isto é, no que diz respeito à história e temporalidades específicas a uma dada família e a sujeitos a ela não-pertencentes, porém, com os quais ela se relaciona - quanto sincrônica – isto é, de família para família, clã para clã...), pois mesmo grupos ciganos que habitem numa mesma região podem apresentar diferenciações significativas entre si. Contudo, a despeito, porém, do alto grau de diferenciações internas – em outras palavras, mesmo não havendo uma espécie de totalidade homogênea -, parece existirem algumas características gerais no que diz respeito às suas relações com os não-ciganos. Por um lado, quando ressaltada a história de ódio e de perseguição, quase todas as formas culturais que os ciganos, em suas relações com não-ciganos, criativamente elaboram parecem ser vistas, sobretudo, sob o signo da sobrevivência. Por outro lado, citando Engebrigsten, Ries (2008) chama a atenção para o termo “ciganicidade” (gypsyness) (2).
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Em todo caso, devido à dependência dos entre-espaços com relação aos espaços, pessoas dos entre-espaços vivem em contínuo contato com as dos espaços. Uma vez que, ao que tudo indica, a maior parte dos Calons, com os quais esse estudo se ocupa, vivem no e do setor informal, a presente pesquisa se orienta pela seguinte definição de cigano, segundo a qual, estes podem ser entendidos “como parte da sociedade maior na qual vivem, embora não necessariamente enquanto incluída [ou integrada] (...), mas sim como parte conectada de uma relação assimétrica” (Streck, 2008).
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Dessa forma, entre uma espécie de paralelismo cultural e estreita simbiose social, é possível presumir que os Calons têm a chance de serem socializados em diferentes “culturas emocionais”, que em certa medida se contrapõem. Como eles agem, portanto, em meio a situações extraordinárias ou dilemas cotidianos que conflitem os repertórios emocionais de que dispõem? Seria possível sequer “trocar” de repertório emocional em uma dada circunstância conflituosa? Por outro lado, em que medida sociedades Calon se esquivam, excluem e/ou se incluem dos processos históricos de longa duração que implicam na domesticação gradativa das expressões emocionais (processos esses, tal como descritos por Elias (1995), que vêm se desenvolvendo por séculos no âmbito da sociedade majoritária no meio da qual vive)? Em que medida os Calons se utilizam e/ou são atingidas por tais processos, e como eles se relacionam (ou não) com uma experiência coletiva profundamente traumática dos ciganos, que, por sua vez, também podem ser alencada num plano de longa duração histórica (Pollack, 1989)?
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O GREM é um espaço privilegiado onde a presente pesquisa procura se debruçar sobre que papel a expressão das emoções desempenham na produção sócio-cultural de diferenças e semelhanças entre ciganos e não-ciganos – e desse modo no processo auto-constitutivo de uma cultura cigana Calon por meio de contato intercultural e hibridização seletiva. Uma vez que o trabalho de campo etnográfico implica, fundamentalmente, em um exercício de imersão no cotidiano de famílias Calon, por meio do qual seja possível deparar-se, muitas vezes simultaneamente, com uma multiplicidade de fenômenos referenciadores - e também partes - de um conjunto de códigos, valores e sensibilidades particulares (específicos, sobretudo, frente àqueles considerados normais ou convencionais, ou seja, “não-ciganos”/“maioria das pessoas”), e também com modos de expressões emocionais dos mesmos, busca-se aqui descortinar e estudar relações sócio-culturais chaves que auxiliem na interpretação de princípios comuns que, de alguma forma, contribuam para conformar, manter ou alterar modos e estilos de vida familiares aos Calóns.
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Notas
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1. Entre as minorias ciganas, há também minorias de ciganos bem sucedidos que fazem partem de elites sociais. Um dos exemplos mais citados, nesse caso, é o do ex-presidente Juscelino Kubitschek. No entanto, parece unânime que a maior parte de tais ciganos, com exceção daqueles músicos, sempre precisa esconder a identidade de “cigano” para não serem vítimas de possíveis estigmatizações. “Quem é empresário rico não está nem aí, mas os que dependem de vida pública, como artistas e políticos, restringem a informação sobre serem ciganos”, diz Farde Vichil. E Zé Rodrix: “Há ruas inteiras em bairros nobres onde só moram ciganos. A grande marca é o fato de as torneiras e maçanetas das casas serem de ouro maciço, para que possam ser levadas em caso de fuga emergencial” (Sanches 2005).
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2. Segundo Ries, “Roma/Gypsies take up certain cultural patterns of Gadzo culture, redefine them and use them for the construction of their own gypsyness (e. g. Engebrigsten 2000). (…). From this perspective, gypsyness is a flexible construct basing itself on difference. Both Roma/Gypsies and Gadze negotiate their ethnic markers. (…) Crucial in this struggle for gypsyness is the constructed ethnic boundary; the essential content may vary from group to group or change in the course of history”.
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segunda-feira, 22 de junho de 2009

Série Pesquisas em Desenvolvimento, n. 04 (22 de junho de 2009)

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Publica-se, hoje, neste Blog, o quarto número da Série Pesquisas em Desenvolvimento no GREM. Esta Série tem por objetivo a publicação e a divulgação dos Resumos Expandidos das Pesquisas em Desenvolvimento ou das pesquisas Recém Finalizadas pelo corpo de pesquisadores do GREM.
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Nesta Série serão postados resumos individuais dos pesquisadores com um informe sobre suas pesquisas e uma pequena bibliografia referencial de apoio. Será informada, também, a linha de pesquisa do GREM a que estão vinculadas.
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Já foram publicados neste Blog os números: 01, em 12 de junho de 2009, o 02, em 15 de junho de 2009, e o 03, em 18 de junho de 2009 da Série Pesquisas em Desenvolvimento no GREM.
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O número 04 da Série Pesquisas em Desenvolvimento publica o Resumo Expandido da pesquisa em andamento no GREM, coordenada pela pesquisadora Maria Sandra Rodrigues dos Santos, em conjunto com o UNIPÊ, onde leciona (1).
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A linha de pesquisa do GREM que a pesquisa em desenvolvimento de Maria Sandra está alocada é a Rituais da Morte, Luto e Sociedade.
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Vamos, então, para o número 04 da Série Pesquisas em Desenvolvimento no GREM.
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Título da Pesquisa: Enfretamento da morte vivenciada pelos Enfermeiros, Fisioterapeutas e os indivíduos que se encontra em processo de perda.
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Pesquisador: Maria Sandra Rodrigues dos Santos (2)
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Resumo: Esta pesquisa pretende investigar as formas e as atitudes estabelecidas diante da morte entre os Enfermeiros e Fisioterapeutas em Hospitais Públicos da Cidade de João Pessoa-PB. Como se dão as práticas de enfretamento da morte entre estes profissionais da saúde, e quais as relações entre estes e os indivíduos que se encontram em processo de perda.
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Pretende, dessa forma, investigar, além dos procedimentos institucionais adotados quando da constatação da morte de um indivíduo, todo o agir discreto, controlado e, como é comum dizer, “de frieza” dos profissionais em relação aos indivíduos que vivenciam o processo da morte interdita. Ou seja, quando a morte passa a acontecer nos hospitais sob o controle dos médicos.
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O que se pretende investigar é o comportamento das pessoas que estão diretamente relacionadas ao processo de morte em um local exclusivo: os hospitais públicos da Cidade de João Pessoa. Tendo como sujeitos específicos os profissionais da área da Enfermagem e da área de Fisioterapia e os indivíduos que estejam vivenciando o processo de perda. Ou seja, de como esses profissionais constroem os espaços relacionais de dor e sofrimento quando da morte de um paciente. Quais as atitudes de Enfermeiros e Fisioterapeutas diante dos familiares que acabaram de perder um ente-querido.
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Metodologicamente se pretende realizar uma revisão bibliográfica sobre os estudos que tratam da problemática da morte, priorizando os trabalhos que dão ênfase a uma análise que trata da morte como uma questão social e motivador dos comportamentos sociais, bem como, levantamento de dissertações e teses dedicadas aos estudos da morte na área da saúde, como também em jornais nacionais e locais. Tendo em mente que o que determina a metodologia é o objeto de estudo, ou seja, o método surge a partir da necessidade do objeto a ser trabalhado, a pesquisa de caráter exploratório recorrerá à técnica da entrevista com Enfermeiros, Fisioterapeutas e indivíduos que estejam vivenciando o processo da perda nos Hospitais Públicos da Cidade de João Pessoa-PB.
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Nesse sentido, estamos estudando a realização de um Survey para um mapeamento dos hospitais e dos profissionais que serão abordados para o entendimento da questão principal e posteriormente a aplicação de entrevistas que será o instrumento principal da coleta de dados. O instrumento prioritário para a coleta dos dados será a entrevista por ser um instrumento metodológico adequado, que nos permitirá realizar um levantamento qualitativo dos dados.
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Outro instrumento para coleta de dados será a observação, onde o pesquisador se permitirá a assistir às manifestações do fenômeno a ser estudado, e desse modo utilizando inúmeras formas de registro que vão desde a caderneta de campo e fichas, até o uso de gravadores, filmadoras, maquinas fotográficas. O que consequentemente enriquecerá na coleta das observações. O roteiro a ser elaborado para a realização das entrevistas será organizado quando de uma visita exploratória ao campo, com o objetivo de permitir uma melhor visualização do objeto a ser investigado. A análise consistirá de uma leitura qualitativa dos dados coletados a partir da codificação e tabulação das entrevistas e observações realizadas. Posteriormente esses dados serão cruzados com a literatura pertinente ao tema.
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Notas
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1 - Maria Sandra Rodrigues dos Santos é Pesquisadora do GREM e Professora de Metodologia do Estudo e de Monografia dos Cursos de Fisioterapia, Enfermagem e Fonoaudiologia do UNIPÊ.
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2 - Participam ainda da pesquisa as alunas: Gabriela Martins C. Dantas e Mônica Dantas Lima (Fisioterapia – UNIPÊ), Rafaella Lima de Oliveira (Enfermagem – UNIPÊ), e Karla Fernandes de Albuquerque (Coordenadora do Curso de Enfermagem – UNIPÊ)

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Bibliografia
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quinta-feira, 18 de junho de 2009

Série Pesquisas em Desenvolvimento, n. 03 (18 de junho de 2009)

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Este Blog publica, hoje, o terceiro número da Série Pesquisas em Desenvolvimento e Recém Finalizadas. Esta Série tem por objetivo a publicação e a divulgação dos Resumos Expandidos das Pesquisas em Desenvolvimento ou Recém Finalizadas pelo corpo de pesquisadores do GREM.
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Nesta Série, que teve o seu número 01 publicado neste Blog em 12 de junho de 2009, e o segundo publicado em 15 de junho de 2009, serão postados resumos individuais dos pesquisadores com um informe sobre suas pesquisas e uma pequena bibliografia referencial de apoio. Será informada, também, a linha de pesquisa do GREM a que estão vinculadas.
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O número 03 da Série Pesquisas em Desenvolvimento publica o Resumo Expandido da tese do pesquisador Luiz Gustavo Pereira de Souza Correia. O resumo apresentado neste 3º número da Série de Luiz Gustavo teve como objetivo a obtenção do título de Doutor em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2007. A pesquisa de Luiz Gustavo faz parte da linha de pesquisa Memória e Imaginário Social do GREM.
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Vamos, então, para o terceiro número da Série Pesquisas em Desenvolvimento e Recém Finalizadas.
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Título da Pesquisa Concluída: “A pupila dos cegos é seu corpo inteiro”: compreendendo as sensibilidades de indivíduos cegos através das suas tessituras narrativas

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Pesquisador: Luiz Gustavo Pereira de Souza Correia

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Resumo: Minha pesquisa de doutoramento, defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS (CORREIA, 2007), nasceu como desdobramento de alguns questionamentos manifestados ainda durante o processo de feitura da minha dissertação de mestrado em Sociologia (CORREIA, 2002) - apresentada na UFPB sob orientação de Mauro Guilherme Pinheiro Koury - com o aprofundamento de algumas discussões e análises dentro do campo teórico da Antropologia Urbana e das Emoções. A cidade como ambiente de vínculos e enraizamentos de memórias individuais e coletivas, intercâmbios de sentidos e experiências, é o espaço das minhas inserções, a fonte das minhas inquietações antropológicas.
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Procurei compreender as vivências dos processos simbólicos e as interpretações pessoais sobre a perda da visão via narrativas de indivíduos cegos habitantes de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul. Vinculadas a essa configuração temporal-espacial e simbólica estão as sensibilidades individuais e as suas expressões reveladas nas narrativas. A proposta foi investigar as camadas temporais simultâneas e distintas emaranhadas e recompostas nas memórias pessoais tecidas pelas narrativas dos sujeitos. Dessa forma, a tese se apresenta como uma síntese dos diálogos com esses diferentes personagens, a constante busca por articulação e troca de informações com essas outras percepções que povoaram minhas passagens em campo.
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O texto final da tese reflete as tentativas de compreender as interpretações pessoais dos sujeitos em interação com o espaço e com outros tantos personagens constituintes da cidade. Na busca por tornar mais fácil de entender alguns dramas humanos (ELIAS, 1995), se revelam os agentes enraizados na configuração social dada e as relações intersubjetivas vinculadas ao espaço e ao tempo vividos em sociedade. A montagem das experiências recontadas justapõe processos e rupturas pessoais contextualizadas pelas temporalidades citadinas, através das construções narrativas como elaborações onde os tempos das vivências e apreensões subjetivas se recompõem. Estas tensões, conflitos, articulações e rearranjos descobertos possibilitaram a ampliação dos sentidos das individualidades que planejava investigar em minhas primeiras caminhadas pelas ruas da cidade.
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O meu interesse foi mostrar a relação estabelecida entre as pessoas cegas “no” e “com” o seu espaço de vivência através de suas interações e articulações sociais na cidade. Parto do pressuposto do espaço vivido e apreendido afetivamente como lócus de configuração e enraizamento da memória pessoal e social dos sujeitos que nele convivem e da composição das diversas temporalidades nas trocas intersubjetivas urbanas. Penso, a partir das reflexões de Maurice Merleau-Ponty, que “não se deve dizer que nosso corpo está no espaço nem tampouco que ele está no tempo. Ele habita o espaço e o tempo” (1994, p. 193). É através do corpo como efetivação de uma consciência, ou melhor, de uma experiência, que há a comunicação com o mundo e com os outros. Assim, a cidade, seus espaços e ritmos, conformam um ambiente de intercâmbio de experiências múltiplas, individuais e coletivas, coesas ou conflitantes, mas sempre dinâmicas, que podem ou não acompanhar o ritmo que é próprio ao lócus urbano. O meu interesse foi então descobrir os espaços e tempos vividos na cidade, e de que forma se configuram as memórias e identidades dos sujeitos através do enraizamento das suas experiências nos diversos cenários urbanos à disposição.
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Tais observações seguem o caminho da valorização do cotidiano, da dinâmica das práticas e relações pessoais cotidianas, como noção base para a compreensão dos sentidos em jogo nas ações humanas. Situo-me a partir das contribuições de pesquisadores que propõem novas percepções sobre a estética urbana, valorizando a reapropriação da cidade, entendida como re-significação simbólica dos espaços e dos ritmos pelos diversos grupos humanos. Tais pesquisas buscam compreender de que maneira os atores sociais vivenciam, tensionam ou subvertem os códigos de conduta e sociabilidade urbanos (KOURY, 2003, 2005, 2006; MAGNANI, 1998, 1999; ROCHA, 2001; entre outros).
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Em conjunto com essa apreensão teórica da cidade, ressalto a preocupação com o caráter intersubjetivo da experiência (RABELO & ALVES, 1999). De tal forma, a experiência ganha contornos de vivência necessariamente intersubjetiva, com base nos sentidos acionados nas práticas cotidianas, nas interações em que a individualidade se torna perceptível. As individualidades – em suas relações na dinâmica do jogo social – expressas nos discursos narrativos surgem como aspecto fundamental para a compreensão da vivência urbana. Assim, pretendo reforçar o argumento sobre as fragmentações e articulações possíveis na composição da cidade tal como apreendida pelos seus personagens.
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Buscar as interpretações pessoais é uma forma de compreender a relação do indivíduo com o mundo com que e em que interage. Não o mundo panorâmico, contemplativo, perspectivado pelo olhar passivo que percebe de maneira homogênea e totalizadora. O mundo vivido, no entanto, como “cenário da vida do corpo, morada de afetos” (PESSANHA, 2000), é um mundo de espaço singular, “povoado por lembranças, sítio de experiências colorido por emoções datadas” (Idem).
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As narrativas expostas na tese, como elaborações discursivas das experiências pessoais e do processo de individualização dos sujeitos, são interpretações e significados atribuídos à vivência pessoal sem a visão no quadro de referências compartilhado formado pela cidade de Porto Alegre. Os sentidos expostos nas narrativas de tais elaborações individuais revelam a heterogeneidade própria às conformações humanas na sociedade contemporânea e de que forma a auto-imagem se estabelece a partir do processo tenso e conflituoso de delimitação de fronteiras sociais. A construção textual de tais relatos aborda a cegueira como um elemento comum aos personagens, sem buscar a caracterização de uma identidade coletiva, a configuração de um grupo humano específico.
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Tendo o corpo como terreno dos sentidos articulados e intercambiados no contexto socialmente vivido, a relação fundante do mundo intersubjetivo, do eu em relação aos outros, é revelada nos termos das experiências narradas da vivência cotidiana da cegueira. Na medida então em que é “dimensão do nosso próprio ser” (STEIL, 2007), é no e pelo corpo que se efetivam e se inscrevem as experiências e os projetos, que se pode pensar em modalidade particular de ser no mundo. O corpo do indivíduo é o meio por onde circulam e são agenciados, em sua relação com o mundo, os sentidos destas configurações. É a condição do indivíduo experienciar, criar vínculos, deslocar-se e elaborar os significados em sua relação com o mundo.
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Assim, as narrativas são montadas priorizando as especificidades de apreensão das experiências dos sujeitos. Dessa forma, se tornam compreensíveis as tensões, os conflitos, os diálogos, as semelhanças e distinções nas percepções próprias das experiências dos sujeitos nas dinâmicas das comunicações, negociações e apreensões dos sentidos socialmente compartilhados da falta de visão. Deixando aberto a outras possibilidades interpretativas e expondo os caminhos percorridos para estruturar minhas próprias reflexões. As contextualizações das narrativas estão em jogo no próprio ato de narrar, e, assim, tentei por uma das interpretações possíveis trazê-las ao corpo da tese.
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Referências
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CORREIA, Luiz Gustavo Pereira de Souza. Imagem fotográfica e memória social: o Templo de Angola Xangô Catulho Onicá no Zambe através de um acervo particular de fotografias. (Dissertação de mestrado). João Pessoa: PPGS-UFPB, 2002.
*
____________. “A pupila dos cegos é seu corpo inteiro”: compreendendo as sensibilidades de indivíduos cegos através das suas tessituras narrativas. (Tese de doutorado). Porto Alegre: PPGAS-UFRGS, 2007.
ELIAS, Norbert. Mozart – Sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
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KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Amor e dor – Ensaios em Antropologia Simbólica. Recife: Ed. Bagaço, 2005.
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____________. Medos corriqueiros e sociabilidade. João Pessoa: GREM/Ed. UFPB, 2005a.
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____________. Sociologia da emoção. Petrópolis: Vozes, 2003.
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____________. O vínculo ritual – Um estudo sobre sociabilidade entre jovens no urbano brasileiro contemporâneo. João Pessoa: Ed. GREM/ Ed. UFPB, 2006.
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LE BRETON, David. El sabor del mundo – una antropología de los sentidos. Buenos Aires: Nueva Visión, 2007.
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MAGNANI, José Guilherme Castor. Festa no pedaço: Cultura popular e lazer na cidade. São Paulo: UNESP/HUCITEC, 1998.
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____________. Mystica urbe – Um estudo antropológico sobre o circuito neo-esotérico na metrópole. São Paulo: Studio Nobel, 1999.
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MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
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PESSANHA, José Américo Motta. “Bachelard e Monet: o olho e a mão”. In: NOVAES, Adauto. (Org). O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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RABELO, Miriam Cristina & ALVES, Paulo César. Experiência de doença e narrativa. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2003.
*
ROCHA, Ana Luiza Carvalho. “As figurações de lendas e mitos históricos na construção da cidade tropical” In: Iluminuras, nº 34, Porto Alegre: Banco de Imagens e Efeitos Visuais, PPGAS/UFRGS, 2001.
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segunda-feira, 15 de junho de 2009

Série Pesquisas em Desenvolvimento, n. 02 - Junho de 2009

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Publica-se, hoje, neste Blog, o segundo número da Série Pesquisas em Desenvolvimento. Esta Série tem por objetivo a publicação e a divulgação dos Resumos Expandidos das Pesquisas em Desenvolvimento pelo corpo de pesquisadores do GREM, neste ano de 2009.
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Nesta Série, que teve o seu número 01 publicado em 12 de junho de 2009, serão postados resumos individuais dos pesquisadores com um informe sobre suas pesquisas e uma pequena bibliografia referencial de apoio. Será informada, também, a linha de pesquisa do GREM a que estão vinculadas.
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O número 02 da Série Pesquisas em Desenvolvimento publica o Resumo Expandido da pesquisa do pesquisador Alexandre Paz Almeida. A pesquisa em desenvolvimento de Alexandre Almeida tem como objetivo a obtenção do título de Doutor em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco.
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A pesquisa de Alexandre Almeida está vinculada a Linha de Pesquisa do GREM: Medos Urbanos, Violência, Ruínas e a Construção das Cidades.
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Vamos, então, para o segundo número da Série Pesquisas em Desenvolvimento.
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Título da Pesquisa: As Praças Aristides Lobo e Pedro Américo: espaço de cultura, sociabilidade e contradições no centro de João Pessoa, Paraíba, Brasil
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Pesquisador: Alexandre Paz Almeida
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Resumo: Este trabalho intitulado As Praças Aristides Lobo e Pedro Américo: espaço de cultura, sociabilidade e contradições no centro de João Pessoa, capital do estado da Paraíba, Brasil, faz parte de um projeto de pesquisa de doutoramento que venho desenvolvendo na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), vinculado ao Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções (GREM) da UFPB, coordenado pelo professor Mauro Guilherme Pinheiro Koury.
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No GREM trabalhei na pesquisa sobre Medos Corriqueiros e Sociabilidade Urbana, coordenada pelo Prof. Mauro Koury, o que resultou em uma monografia de final de curso em Ciências Sociais, na Universidade Federal da Paraíba, defendida no ano de 2005, tendo o referido coordenador como orientador. Ao dar continuidade a pesquisa sobre Medos Urbanos, pude também desenvolver uma pesquisa sobre Cotidiano e Sociabilidade em um bairro popular de João Pessoa, resultando em uma dissertação de mestrado, defendida em fevereiro de 2008, na Universidade Federal da Paraíba, intitulada de A Cidade, O Bairro e a Rua: um estudo sobre cotidiano e sociabilidade em Valentina de Figueiredo, João Pessoa, Paraíba.
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Ao compreender os processos de sociabilidade e cotidiano no meio urbano, pude perceber como a lógica do espaço se faz presente enquanto modeladora da vida de grupos e indivíduos que compartilham experiências comuns ou não. O espaço, desse modo, figura como o lócus de trocas de experiências, posição e imposição social, refletindo os anseios e ações dos indivíduos que nele estão imersos, seja através de relações pessoalizadas ou impessoalizadas, o que se torna, de certa forma, um campo onde podemos compreender os significados emocionais e simbólicos, culturalmente construídos no cotidiano e nas formas de sociabilidade, que Simmel (2006) define como lúdicas e contraditórias.
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O Espaço Como Categoria Sociológica
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Pensar um espaço urbano como categoria sócio-antropológica, é também buscar compreender um ambiente em que os diversos atores sociais projetam possibilidades, afirmam identidades, vivenciam ambigüidades, tensões e vários fatores que Simmel (1979) definiu como sendo unicamente metropolitano e moderno. Assim seria a vida nas cidades modernas: contraditória, entediada, carregada de tensões entre o espaço habitado e a vivência dos sujeitos enquanto construtores deste espaço, que se em alguns momentos traz algo de lúdico, por outro lado, faz do conflito algo determinante na formação de um sujeito e de uma identidade moderna, ou como Louis Wirth (1979) prefere, constrói “híbridos biológicos e culturais(1).” Desse modo, a cidade se apresenta com seus aspectos que propiciam a diversidade e diferença cultural, econômica e social, firmados sobre conceitos que delimitam e distinguem categorias que podem ser analisadas sob um universo empírico e suscetível de análise teórica.
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Neste sentido, é basicamente sobre o conceito de heterogeneidade que a sociologia vem se firmar como disciplina que busca uma compreensão do meio urbano e suas nuanças. Os espaços da cidade, desse modo, são compreendidos através da diferença e das reproduções que os atores sociais vivenciam e comungam experiências de redes associativas, de conflitos e experiências de vida emergentes de relações sociais, presentes como forma de integração ou desintegrarão dos grupos relacionais dentro de uma cotidianidade bastante definida. Cotidianidade esta que estrutura a permanência ou não dos indivíduos dentro de redes associativas, bem como os identifica dentro de práticas de compartilhamento, sociabilidades e interações, definidas geograficamente e temporalmente.
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Entre outros aspectos da cidade moderna e ainda observando a idéia de heterogeneidade cultural, também podemos perceber que este ambiente conflituoso e instável, constrói um lócus onde os indivíduos, imersos em relações impessoais e anônimos, são compelidos a uma permanente luta por reconhecimento e por afirmação identitária. Esse ambiente da cidade moderna surgiu por volta da metade do século XIX, através de um capitalismo industrial que vai segregar o caráter idílico das relações sociais, quebrando radicalmente com todas as formas de sujeição feudal, substituindo antigos agrupamentos por formas dispersas, exacerbando contradições sob um intensificado processo de alienação e racionalização das relações sociais, dos atores individuais e dos espaços compartilhados (LEFEBVRE, 2004).
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É bom deixar claro que o conceito de espaço (2) possui uma ampla ressonância, sendo freqüentemente usada na sociológica como significação de um lugar habitado. Portanto, o lugar também pode ser considerado um espaço habitado. O espaço, como categoria sociológica, somente ganha significado quando os homens conseguem habitar ou, simplesmente, demarcar aquele local para suas atividades relacionais ou não. Diferente de espaço e lugar, o conceito de habitar, provém de uma idéia de residir, morar. Todavia, o espaço e o lugar só existem quando se habita. Nessa perspectiva, Augé (1994) vai definir o não-lugar como o um espaço que, diferente do lugar – que é mais relacional, compartilhado e identificado, fazendo histórias e memórias – é totalmente desconexo enquanto projeto de reconhecimento e história social. Segundo Augé, a supermodernidade funda não-lugares, ou seja, espaços sociais que, apesar de serem públicos, quebram com a idéia de compartilhamento. Hotéis, supermercados, aeroportos e estações de metrô, entre outros lugares, são considerados por Augé como não-lugares.
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Percebe-se que o espaço (principalmente os citadinos) significa e ressignifica através das conseqüências e mudanças sociais e individuais, que rapidamente ocorrem em um tempo que parece está cada vez mais submetido ao cotidiano moderno (BAUMAN, 2004; LEFEBVRE, 1998) predominando o sentido de ser e estar, localizado no agora (ELIAS, 1994; KOURY, 2003), em outras palavras, a idéia de viver e se projetar apenas em um tempo-espaço presente parece se fortificar cada vez mais.
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Não obstante, o sentido ou a finalidade de uma praça transcende referências sócio-espaciais e históricas, sendo contextualizada dentro de suas especificidades enquanto projeto arquitetônico desenvolvido, supostamente, com a emergência da polis que diferencia radicalmente da estrutura “feudal”. As praças, bem como ruas, casas, monumentos, entre outras formas de arquitetura da polis, são expressões totalmente distintas dos antigos feudos, que agregavam, esporadicamente, alguns cidadãos em regiões dispersas (SENNETT 2008).
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Diante de tais circunstâncias, está pesquisa pretende compreender a lógica do espaço urbano – através de uma perspectiva sociológica contemporânea e urbana – que racionalmente se modifica, estruturando novos caminhos e possibilidades para se pensar o sentido de cidade enquanto modeladora da vida social e cultural. Neste sentido, a pesquisa se debruça em duas praças do centro da cidade de João Pessoa, capital da Paraíba, buscando, através dos atores sociais que nela estão presentes e se fazem presentes, compreender a lógica do espaço como transformadora das práticas sociais e culturais no meio urbano contemporâneo.
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Primeiras observações e considerações sobre as Praças Aristides Lobo e Pedro Américo
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Bachelard (1985, p.56) afirmou que “somente na vida social e no intercambio das paixões os homens podem viver os conflitos e contradições de seu destino”, no entanto, a paisagem seria um panorama natural que complementaria as vicissitudes de um mundo desfigurado por devaneios da imaginação humana. A paisagem, como espaço elementar para concretude da vida moderna, seria esboçada em imagens que complementariam a imaginação e a concretização do lugar, que por mais que se modifique, estaria eternamente presente na imagem gravada, compartilhada e vivenciada (KOURY 1998). Paisagem, imagem e memória se integrariam sob a dinâmica do espaço presente e ausente (3).
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Presente enquanto real, ausente enquanto imagem e memória, eis a lógica do espaço que se torna concreto, imaginado, histórico ou nostálgico, pois, quem nunca contemplou a imagem de uma paisagem, urbana ou não, em uma fotografia ou apenas no olhar, e não se sentiu extremamente cativado por aquele local? A paisagem, assim como Santos (2008 p. 67) vai definir, figura tudo aquilo que: “nós vemos, que nossa visão alcança, é a paisagem. Está pode ser definida como o domínio do visível, aquilo que a vista abarca. É formada não apenas de volumes, mas também de corres, movimentos, odores, sons etc”.
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As praças Aristides Lobo e Pedro Américo fazem parte desta paisagem da cidade de João Pessoa, onde suas corres, seus sons, sua imagem e todos os tipos de percepções subtraídos por nossos sentidos, fazem das praças um espaço que se concretiza com o movimento intenso dos diversos indivíduos que, anônimos, conhecidos, desconhecidos, com práticas diárias, transeuntes, etc. complementam nossa percepção do lugar, do espaço e da paisagem urbana contemporânea.
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Situadas no centro da capital, serviu e serve de palco para muitas manifestações artísticas e culturais da cidade. Espaço público de entretenimento, lazer e comércio, as duas praças são separadas apenas pelo Comando da Polícia Militar do Estado da Paraíba, este, construído por volta dos anos de 1864, foi projetado, primeiramente como teatro, todavia foi destinado para funcionar como sede do Thesouro Provincial e posteriormente transformado em Secretaria da Agricultura (nome que se encontra na parte externa do prédio, sentido Praça Aristides Lobo) e por fim, Comando da Polícia Militar. O prédio é tombado pelo IPHAEP – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico da Paraíba. O Theatro Santa Roza, localizado na Praça Pedro Américo, é considerado marco da arquitetura moderna do século XIX e ponto de referência turística e de manifestações culturais da cidade de João Pessoa.
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A importância de estudar duas praças centrais da cidade de João Pessoa, não se dá apenas por suas nuanças enquanto espaço configuracional de organização social e territorial da cidade e seus aspectos modernos de compartilhamento e preservação do espaço público (neste ultimo caso, é bom salientar que alguns cientistas sociais compreendem que a atual fase da modernidade tende a fragmentar não só a idéia de espaço público, mas a própria relação social parece esta fadada a impessoalidade e o anonimato dos sujeitos, por conseqüência de uma forte individualização e racionalização propagada pelo cotidiano moderno [4]), mas também saber como os atores sociais compartilham e vivenciam um local que, se de um lado apresenta o pitoresco, por outro lado funda contradições e dramaticidades nas relações arquitetadas cotidianamente.
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As praças Aristides Lobo e Pedro Américo, de certa forma, se enquadram na configuração pitoresca de uma cidade interiorana. Seu ambiente interno não possui quadras de esportes ou parques infantis, mas grandes arvores e vários bancos que a circundam. Com um comércio diversificado, que vai desde a venda de artesanatos, a floriculturas artificiais, passando pela informalidade dos fotógrafos “lambe-lambe” (5) e das prostitutas que marcam seu espaço de trabalho diariamente a partir das cinco horas da tarde, as praças são também circuladas por um amplo comércio de lojas de eletrodomésticos e roupas (6). Situadas em um ponto estratégico do centro de João Pessoa, o seu acesso se dá por várias avenidas principais, sendo a Guedes Pereira, passando pelo viaduto Damásio Franco, os mais comuns, o que torna os seus arredores bastante movimentados pelo fluxo constante de ônibus e carros.
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A presença de transeuntes, consumidores, trabalhadores do comércio, policiais militares, assim como religiosos que ocupam seu espaço para pregações e evangelização, como os grupos de idosos que sentam nos bancos ao entardecer, também são figuras sociais presentes no interior das praças, são atores localizados em um tempo e espaço específico, marcados por um cotidiano moderno que, por ser imperceptível, (LEFEBVRE 1998; BAUMAN 2004, 2005; HELLLER 1998) dificilmente torna possível a percepção das rápidas mudanças e transformações sociais, ambientais e culturais.
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As praças aqui estudadas se tornam um amplo espaço de sociabilidade, de reconhecimento, de trabalho, de lazer e - mesmo mantendo peculiaridades do espaço público habitado e planejado: bem localizado, arborizado, de fácil acesso - as tensões e contradições podem ser percebidas nas minúcias do cotidiano imperceptíveis aos olhos dos vários atores sociais que nela se fazem presente. Neste sentido, o espaço público para lazer ou comercio, para reconhecimento daqueles usuários habituais ou transeuntes, também é palco de contestação ao poder público por melhores condições de trabalho ou lazer (FRÚGOLI JR, 2000), de incômodo e reclamação com as prostitutas que trabalham lá, de se sentirem desprezados por não serem mais reconhecidos profissionalmente, como é o caso dos lambe-lambes.
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As praças Aristides Lobo e Pedro Américo, dessa forma, se tornam palco de investigação desta pesquisa, onde, através de seus tipos sociais, se buscará entender a lógica do espaço público-relacional; as configurações e reconfigurações sociais e históricas, culturais e simbólicas do local como elemento norteador de sociabilidade e identidade (DaMATTA, 1987; KOURY, 2003; MENEZES, 2000) .
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Conclusão
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É nas formas de apropriação destes dois espaços urbanos, do centro da cidade de João Pessoa, que se procurará analisar as referências identitárias construídas pelos diferentes sujeitos, bem como de que maneira as intervenções modernizadoras no espaço modificam e redefinem identidades, estruturam redes de sociabilidade, definindo uma cultura, se assim podemos chamar, diversificada e diferenciada, ou seja, heterogenia.
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Nesta perspectiva, para se compreender as tramas de sociabilidade no meio urbano, é fundamental se perceber a organização do espaço, com seus lugares e fenômenos de deslocalização (7), (MENEZES, 2000), bem como as diversas representações sociais que são moldadas dentro de um espaço usual, ou seja, compartilhado e vivenciado por grupos e indivíduos singulares, mas interdependentes enquanto construtores de um ambiente comum e reconhecido (ELIAS, 1994), o que segundo Koury (2005), vai estabelecer formas de apropriação de um espaço, que além de gerar núcleos de construção simbólica sobre o lugar, também fomentará um sentimento de pertencimento e uma atribuição de significado ao lugar, refletindo-se na significação dos próprios atores sociais que habitam a cidade. Atores que compartilham situações semelhantes, que vivenciam experiências em um tempo-espaço presente no cotidiano, formando imagens mentais e históricas comuns aquele social e grupo específico (DaMATTA, 1987). Por fim, para se entender a problemática entre indivíduos e espaço, deve-se buscar uma idéia de conjunção entre as vidas que habitam e pensam, que se relacionam e constroem o espaço enquanto elemento referencial de uma identidade grupal e individual.
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Notas
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[1] Para Wirth, assim como Simmel, a cidade moderna e industrial é um campo de complexidade humana, onde se agrupa um grande número de indivíduos heterogêneos, que compartilham um tipo de cultura, caracterizado por papeis sociais superficiais e relações fragmentadas.
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2 Na filosofia de Kant, o espaço, assim como o tempo, faz parte de uma estética transcendental, ou seja, é perceptível ao nosso espírito, mas independe de nossa realidade concreta para existir. Em Kant, ainda percebemos como o espaço e o tempo são categorias fundamentais para compreensão de nossa existência física, metafísica e material.
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3 SANTOS (2008. p. 67 e 68) denominará a paisagem como o conjunto das coisas que se dão diretamente aos nossos sentidos, onde o espaço, (que é sujeito a diversas transformações e configurações) resultará de um casamento entre o território, a paisagem e a sociedade. Ver SANTOS, Milton. Metamorfoses do Espaço Habitado.
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4 Sobre este assunto ver os trabalhos de (BAUMAN, 2004; 2005) (LEFEBVRE, 1998; 2004) (KOURY, 2003ª) (SENNETT, 1998) e (HARVEY, 1993).
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5 É bom ressaltar que os fotógrafos lambe-lambe estão neste local e nesta profissão há mais de trinta anos, tentando, ainda, mesmo sem utilizar as antigas técnicas de fotografar e revelar, sobreviver pela uma forte tradição que os insere dentro um espaço-tempo que sobrevive pelo simples fato de preservação de uma identidade e memória coletiva e individual.
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6 Na Atenas de Péricles, por volta de 430 a.C. as praças eram os espaços mais freqüentados pelos cidadãos atenienses, nelas pessoas ricas ou pobres caminhavam livremente, entretanto, eventos cerimoniais e políticos não poderiam ser contemplados por escravos e estrangeiros (SENNETTE 2008). Sennett (2008) também nos mostra que, na antiga Atenas, somente poucos cidadãos tinha o privilégio de se expressar no interior das praças, onde apenas homens de letras mantinham o domínio do discurso político, todavia atividades de comércio e lazer faziam parte do cotidiano das ágoras naquele período.
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7 Segundo Menezes, o ato de deslocar pode ser simbólico, ou seja, signos e significados representados e construídos pelos diversos atores, como também representa uma mudança ou invenção de um lugar.
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Bibliografia
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sexta-feira, 12 de junho de 2009

Série Pesquisas em Desenvolvimento, n. 01 - Junho de 2009

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A partir de hoje o Blog inicia uma nova Série intitulada Pesquisas em Desenvolvimento, com a publicação de Resumos Expandidos das Pesquisas em Desenvolvimento pelo corpo de pesquisadores do GREM, neste ano de 2009.
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Nesta nova Série, serão postados resumos individuais dos pesquisadores com um informe sobre suas pesquisas e uma pequena bibliografia referencial de apoio. Será informada, também, a linha de pesquisa do GREM a que estão vinculadas.
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Esta Série Pesquisas em Desenvolvimento tem início com a publicação do Resumo Expandido da pesquisa da pesquisadora Anne Gabriele Lima Sousa. A pesquisa em desenvolvimento de Anne Gabriele tem como objetivo a obtenção do título de Doutor em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco.
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Vamos, então, para o primeiro número da Série Pesquisas em Desenvolvimento.
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A linha de pesquisa do GREM que a pesquisa em desenvolvimento de Anne Gabriele está alocada é a Estudos em Sofrimento Social e Sociabilidade.
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Título da Pesquisa: Valores, emoções e construção de identidades de moradores das ruas de João Pessoa, Paraíba, Brasil
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Pesquisador: Anne Gabriele Lima Sousa
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Resumo: Esta pesquisa busca compreender os processos simbólicos que permeiam a construção dos vínculos sociais e a elaboração das referências emocionais que dão sentido a uma subcultura da vida de rua, a partir das respostas adaptativas e das estratégias de sobrevivência que permeiam as redes de sociabilidade dos indivíduos adultos em situação de rua, inerentes ao cenário urbano da cidade de João Pessoa, capital do estado da Paraíba.
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Busca-se, sobretudo, apreender as relações intersubjetivas dos indivíduos em situação de rua em sua vida cotidiana nos espaços físicos (com valor funcional) e simbólicos (com valor afetivo), a partir do modo como constroem suas memórias afetivas e, a partir delas, se localizam, se posicionam, percebem o mundo social e interagem com ele.
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A pesquisa está em desenvolvimento e objetiva a composição da minha tese de doutorado em sociologia, com defesa prevista para fevereiro de 2011.
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A apreensão dos processos simbólicos que permeiam as formações societárias entre os indivíduos em situação de rua de João Pessoa busca suporte analítico nas reflexões despertadas pela Sociologia das Emoções (KOURY, 2001, 2003 e 2005), pela Sociologia do Reconhecimento (SOUZA, 2003 e 2006; TAYLOR, 1995 e 1997a), pela Sociologia da Vida Cotidiana (GOFFMAN, 1988 e 1989; MARTINS, 2000 e 2003) e pela Sociologia da Cultura (BOURDIEU, 1992, 2001 e 2007), promovendo o debate teórico-metodológico entre áreas de concentração distintas, mas que interligam-se na análise do comportamento social contemporâneo.
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A compreensão da dinâmica encenada pelos atores da pesquisa vem sendo realizada através de um esforço etnográfico, de descrição e interpretação das práticas e das rotinas que permeiam as relações inerentes ao campo, permitindo um conhecimento mais detalhado sobre ele.
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O contato inicial com os atores da pesquisa se deu por intermédio das ONG’s e dos demais órgãos que desenvolvem algum tipo de atividade com esta população. O acompanhamento das atividades das organizações, com o intuito de observar e me fazer ser percebida e reconhecida, visou, principalmente, minimizar o estranhamento da população em relação à figura de pesquisadora estrangeira ao grupo, para a construção de uma relação de confiança recíproca, favorecendo a natureza do processo interativo, necessário para o desenvolvimento das demais etapas da pesquisa.
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Identificados os informantes-chaves para o aprofundamento das questões relevantes para a pesquisa, o momento seguinte foi o de dissociar a minha posição de pesquisadora com a imagem institucional do órgão que intermediou a primeira aproximação com os atores. Esse esforço foi necessário, para que pudesse, uma vez já estabelecido o contato, construir relações mais estreitas com os informantes, para que me fosse permitido acesso ao conjunto de experiências e de significados que dão sentido às trocas interacionais, ambíguas e contraditórias, provindas do multipertencimento nas distintas situações de inserção, nas redes de sociabilidade em que eles fazem partem.
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A partir desses informantes-chaves, a seleção dos demais informantes têm sido do tipo bola de neve, onde o diálogo com determinado informante revela personagens significativos para a compreensão do fenômeno social investigado. Tem-se, no entanto, buscado abarcar indivíduos com características diferenciadas, de modo a oferecer um amplo conjunto de interpretações sobre o mundo social do qual fazem parte, bem como a identificar os diferentes tipos que compõem esta população, no que tange aos seus padrões de inserção e estilo de vida adotado na rua.
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As entrevistas orais têm sido realizadas em profundidade, através de encontros sucessivos com o mesmo informante, no intuito de captar os distintos elementos inerentes às suas trajetórias sociais, culturais e emocionais, bem como perceber ênfases e contradições nas suas narrativas.
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Apreender as emoções expressas nas narrativas implica compreender a relação que os indivíduos estabelecem com o mundo social que eles tecem e que adquire sentido para eles, na elaboração das memórias afetivas de suas experiências urbanas.
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Servindo-se da memória como ferramenta de elaboração das lembranças e de localização e inscrição do sujeito em um contexto sociocultural específico, a pesquisa tem buscado levantar como se dá a construção de suas identidades sociais e de suas redes de sociabilidade, bem como analisar como se configura os processos de enraizamento e pertença entre os diferentes grupos de indivíduos que compõem a população em situação de rua.
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Os indivíduos urbanos em situação de rua, população situada no nível mais baixo da estrutura de classes, estão localizados em uma posição de estigmatização (GOFFMAN, 1988) e extrema exclusão, por adquirirem visibilidade a partir da não participação legítima, arbitrária ou inevitável, das convenções sociais reclamadas para a aceitabilidade e reconhecimento no cenário social urbano contemporâneo, tais como casa (em uma concepção que a compreende enquanto espaço privado e endereço fixo), trabalho (ocupação formal e fixa) e família (dentro do modelo tradicional de estrutura familiar), entre outros. Além disso, a materialidade através da qual o corpo dos indivíduos em situação de rua é percebido, ao contrariar os padrões socialmente instituídos de etiqueta corporal, justificam a impossibilidade de integração desses indivíduos ao cenário urbano de forma assentida.
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A dissociação desses modelos classifica esses indivíduos como não-adequados à vida pública urbana, por situarem-lhes como o contrário, ou o negativo, dos tipos aceitáveis de indivíduos.
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Segundo Martins (2000), estranhos e prejudiciais ao espaço, sobretudo à sua imagem, os trajetos desses indivíduos causam desconforto e embaraço aos demais habitantes urbanos, onde o seu afastamento assume os traços de medo de contágio.
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Isto se dá porque, no imaginário social predominante na atualidade, a pobreza econômica é vista como solo da desagregação moral e, neste sentido, a condição de pobreza extrema é sempre passível de se converter em marginalização (Telles, 1990). O indivíduo em situação de rua, nesta direção, é reduzido à condição de coisa descartável (MARTINS, 2003), percebido por grande parte da sociedade a partir de classificações pejorativas, como marginais, vagabundos, bêbados, loucos, ladrões, entre outras representações, que refletem a ótica hierarquizada e o princípio de repugnância a partir do qual são qualificados (SERRANO, 2004).
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Além da postura de desprezo, outra postura assumida pelas outras parcelas da população urbana, é responsável pela reafirmação da inferioridade dos indivíduos em situação de rua. Trata-se, das expressões de compaixão, que demarcam o lugar do outro, subalterno, digno de piedade e caridade, distanciando-o da posição de igualdade (COELHO, 2003).
Para Snow e Anderson (1998), se, de um lado, esses indivíduos são objeto de medo e desprezo, pois se considera que eles ameaçam o bom funcionamento social, por outro lado, são dignos de compaixão, pois se acredita que eles consistam em vítimas das forças sociais e do azar. Há, em ambos os casos, o reconhecimento da sua subalternidade frente aos demais.
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A pesquisa tem buscado dar voz aos protagonistas dessas relações, dando realce às suas subjetividades e à construção de significados acerca de si mesmos e dos demais indivíduos, em meio aos processos interativos aos quais são submetidos em sua vida cotidiana nos espaços públicos citadinos, bem como às emoções despertadas por tais vivências, analisando os elementos e práticas sociais que mediam a instituição de uma subcultura da vida de rua.
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As trajetórias sociais heterogêneas reveladas na coleta de dados têm descortinado diferentes mecanismos de inserção, estratégias de sobrevivência e formas de sociabilidade, fundando estilos de vida distintos entre os indivíduos em situação de rua, atores desta pesquisa.
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Apesar da incompletude do trabalho de campo não permitir considerações definitivas sobre os resultados pesquisa, algumas características podem ser elucidadas, a fim de esboçar algumas questões que cerceiam o cotidiano da vida de rua na cidade de João Pessoa.
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A intensa mobilidade sócio-espacial faz com que o nomadismo figure como uma das características mais comuns da vida de rua. Diante da supervalorização do trabalho formal como única possibilidade de inserção e reconhecimento do indivíduo pobre em certas estruturas sociais contemporâneas, a migração por entre cidades, estados e países apresenta-se como uma densa prática exercida por indivíduos situados em classes menos favorecidas economicamente, oriundos, principalmente, de áreas geográficas precárias, que se dirigem aos centros urbanos na procura por alternativas de sobrevivência material.
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Para Martins (2000), os processos migratórios vivenciados por indivíduos que já preliminarmente suprimiram seus valores sociais de referência em prol da busca por oportunidades de trabalho, são intensificados pelo não-reconhecimento de um espaço como um lugar de familiaridade, de formação de vínculos, levando o indivíduo a deslocar-se incessantemente por diferentes regiões físicas e morais. Esse desenraizamento revela a ausência de integração do indivíduo com as redes de sociabilidade do meio em que habita, levando-o a migrar em busca de um espaço de participação e de reconhecimento, que lhe ofereça a sensação de pertencimento.
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O contexto de instabilidade socioespacial encenado por grande parte da população de indivíduos em situação de rua nos centros urbanos produz um jogo de reflexos, onde os movimentos migratórios na busca pela sobrevivência material dificultam o estabelecimento de vínculos fortes e de relações duradouras, ao mesmo tempo em que a impermanência dos vínculos e o enfraquecimento das redes próximas de proteção amplia a sua propensão aos deslocamentos territoriais.
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Apesar da maior parte da população em situação de rua de João Pessoa ser proveniente do próprio estado, e de muitos, inclusive, possuírem parentes na própria cidade, quase a totalidade dos informantes abordados pela pesquisa até o momento, já migraram para outros estados em busca de trabalho ou da construção de vínculos que lhes oferecessem conforto emocional, em meio às conjunturas protagonizadas pelos mesmos ao longo de suas vidas.
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A pertença, segundo Koury (2001) é o fundamento da percepção dos sujeitos da sua auto-imagem e do seu lugar no mundo. Entre os entrevistados, principalmente entre os idosos, o retorno à cidade de origem representa a busca por reencontrar suas raízes, diante do sentimento de pertença com o local. Mesmo diante das rupturas originais que levaram aos deslocamentos, a impossibilidade da construção de vínculos suficientemente sólidos com os locais por onde migraram, favorecem o retorno às origens como modo de buscar um lugar de familiaridade, a partir do qual podem reconhecer a si mesmos.
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No que tange às causas que levam ao desabrigo, estes não têm origem exclusivamente estruturais, nem tampouco individuais, mas residem na interação entre esses dois elementos, assumindo uma forma espiral, onde um fator deflagra o outro, simultaneamente.
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No caso desta pesquisa, a erosão de uma rede de apoio familiar solidária tem se apresentado como o principal fator de ingresso dos indivíduos nas ruas. Na sociedade contemporânea, onde a família é percebida como suporte material e afetivo dos indivíduos, amortecedor institucional entre as estruturas sociais do mundo mais amplo e suas estruturas psíquicas, e principal instituição formadora de seus valores, atitudes e padrões de conduta (GOLDANI, 2002), a deficiência das bases relacionadas a essa estrutura pode levar a uma desorganização das estruturas emocionais dos indivíduos. Quando os indivíduos não conseguem suportar as adversidades, ou não encontram no plano familiar amparo para as suas dificuldades, o ingresso na rua muitas vezes se revela como fuga, ou mesmo como única alternativa à crise instaurada.
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Associado à falta de uma base familiar sólida, o álcool figura, não apenas como um dos principais personagens da composição de uma subcultura da vida de rua, mas como um dos principais fatores de fragmentação familiar e causa de ingresso nas ruas. As experiências narradas pela maior parte dos informantes têm revelado o alcoolismo, mais como princípio motor determinante da situação de rua, do que apenas uma via de fuga alternativa das adversidades em que são sujeitados em seus contatos intramundanos.
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A memória social constituída pelas experiências dos indivíduos em situação de rua, em meio às constantes reorganizações socioespaciais que a vida nas ruas os submetem, tem se revelado pelas narrativas como permeada de um contínuo processo de ressignificações, onde passado, presente e futuro adquirem sinais de descontinuidade. Os relatos revelam uma instabilidade na forma como o passado é reconstruído, ora a partir de embelezamentos favoráveis, ora ressaltando intensas dores e desilusões.
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É comum, entre os indivíduos recém-imersos na rua, a negação em relação à sua condição de desabrigo, como uma tentativa de fuga das relações de hostilidade em que se vêem sujeitos e, sobretudo, como modo de reafirmar o seu valor como ser humano, lesado pelos lembretes de sua extrema inferioridade, reproduzidos nas circunstâncias corriqueiras.
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No entanto, à medida que o tempo na rua vai cristalizando a vivência em seu interior, os indivíduos passam a se familiarizar com as circunstâncias que a permeia, passando a atribuir sentidos a si mesmos e reivindicando suas identidades sociais no interior da conjuntura em que se encontram (Snow e Anderson, 1998).
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O reconhecimento de si mesmo como pertencente ao espaço da rua carrega consigo toda a carga internalizada que concebe a rua como espaço de desorganização, destituída de qualquer moralidade, evidenciando com isso um acordo de subalternidade do indivíduo em relação ao seu valor próprio e ao significado da sua existência na rua (TAYLOR, 1997a).
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Nesta direção, as narrativas dos atores da pesquisa acerca das circunstâncias cotidianas experienciadas por eles têm revelado um consenso incutido socioculturalmente no modo como olham para si e se colocam no mundo, através de um auto-reconhecimento do seu estado de inferioridade frente aos demais, a partir da interiorização dos mesmos critérios utilizados pela autoridade externa para classificá-los como inferiores. Assim, os indivíduos em situação de rua se comportam e percebem as situações a partir da concordância de que valem menos que os demais indivíduos, têm menos direitos e são menos dignos de respeito (SOUZA, 2003 e 2006).
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Há, desta forma, uma naturalização da desigualdade, compondo regras de convivência em seu interior, onde a diferença e a necessidade passam a ser encaradas como habituais, condição dada pela natureza e assumida como um fado do qual não se pode fugir (BOURDIEU, 2001 e 2007).
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As questões explanadas nas linhas precedentes, entre outras relações identificadas no campo até o momento, não devem ser tomadas como definitivas, pois, uma vez que a pesquisa empírica está em andamento, outros elementos podem ser identificados, alterando também as percepções sobre o objeto estudado e os rumos da análise.
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Além disso, a diversidade de contextos revelados nas histórias de vida e nas experiências cotidianas dos entrevistados faz com que a posição dos indivíduos frente aos elementos identificados assuma contornos distintos, diferenciando-os e configurando tipos específicos de moradores de rua.
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Neste sentido, as posições dos indivíduos quanto aos fatores que os levaram para as ruas, o tempo de moradia nas ruas, suas aspirações de sair ou permanecer, suas disposições a enraizamentos ou desenraizamentos territoriais, bem como suas posturas em relação ao álcool ou outras drogas, suas escolhas em relação ao modo de dormir e de adquirir dinheiro e bens materiais, e o modo de perceberem a si mesmos, o mundo social e a se localizarem e interagirem com ele, funda semelhanças e gera distinções entre pautas comportamentais, descortinando tipos identitários distintos, arrolados a estilos peculiares de vida. Traça-se, desta forma, os contornos de uma ordem ilegítima de vida, instituída no interior de um contexto socioespacial no qual seus personagens são rejeitados, mas do qual se vêem pertencentes.
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