Contador de Visitas

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Pobreza Urbana e Fotografia

OLHARES SOMBRIOS SOBRE A CIDADE:
A POBREZA URBANA ATRAVÉS DA FOTOGRAFIA
*

Linha de Pesquisa: Estudos em Sofrimento Social e Sociabilidade

*
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
*
A fotografia no Brasil, entre os últimos anos do século XIX até os anos trinta deste século, parece refletir o imaginário do progresso (HARDMAN, 1988; FABRIS, 1991). A popularização da fotografia se fez através do olhar sobre o que é moderno e o que é belo, massificando, assim, ao lado da câmera escura, uma ideologia do progresso onde o moderno e o belo se confundiam na criação de uma nova estética para o país, que se queria desenvolvido e urbano.
*
A cristalização desse olhar no exercício fotográfico, se fez através da concepção de um novo reconhecimento da realidade nacional, onde a pobreza e a feiura eram sinônimos. A nova estética não comportava a pobreza. O olhar sobre a realidade nacional era um olhar de triunfo: a beleza da terra associada ao progresso técnico e urbanístico em desenvolvimento.
*
A fotografia acompanhando o ideário do progresso fez-se realidade. A realidade nacional era a realidade da fotografia ou do olhar fotográfico. O olhar fotográfico passou a denominar o olhar social: o visível era o fotografado, o real passava a ser um conjunto fragmentário a ser inventado pela fotografia.
*
A popularização da fotografia se fez assim através dos registros de paisagens e vistas que decantavam a beleza e o moderno da cena, e de registros do progresso. Este último expresso no acompanhamento fotográfico de construções e reformas de vias e espaços públicos, denotando o embelezamento, funcionalidade e crescimento da urbe.
[1] A pobreza e o feio eram retirados de cena. Sua presença apenas era enfocada por vias indiretas, como contraponto da modernidade.
*
A fotografia silenciava no instantâneo revelado os murmúrios da sociedade. Da destruição de quarteirões inteiros, da intervenção pública no cotidiano dos habitantes pobres, dos gritos de protesto da população deslocada de suas habitações, locais de lazer e trabalho e privacidade, calavam as fotografias. O registro do processo apenas documentava a modernidade a chegar, o advir de novos hábitos e novos tempos mais condizentes com o progresso nacional.
*
Com os olhos postos no futuro, a transformar em passado cada registro do presente, a construir um passado, a fotografia ganhava popularidade no Brasil, associada à lógica do progresso em voga nos círculos dominantes (econômicos e políticos) e governamentais. Registrava o advir da modernidade, o fim do atraso. A ilusão técnica, da qual a fotografia era produto, cunhava de atraso tudo o que se contrapunha ao ajustamento do real aos princípios e lógica progressista.
Como um desbravador de novos mundos, o olhar fotográfico tratava de moldar um real condizente a um ideário de modernidade da qual fazia parte. A construção de imagens de um país moderno foi um dos principais exercícios da fotografia no Brasil até os anos trinta.
*
A modernidade via exclusão social. Através da moldagem das cidades às novas regras de urbanização e do urbanismo no ocidente, da exaltação do progresso técnico e de um novo estilo de vida, a fotografia no Brasil buscava eclipsar as manifestações de pobreza e violência pelo simples desaparecimento do cenário fotográfico, ou pela enunciação do seu fim, nos ensaios sobre a renovação urbana operante na época.
*
Na década de trinta, a fotografia associa-se mais uma vez ao Estado. O registro civil passa a ser documentado através da fotografia, bem como o registro policial. A fotografia como identificação passa a ser utilizada.
*
Nessa nova esfera de atuação, o olhar fotográfico revela para si a pobreza, ajudando as autoridades a enquadrá-la e administrá-la. Através da fotografia policial se traça um perfil da pobreza como bandidos e vagabundos, através da carteira de trabalho a comprovação do pobre trabalhador.
*
Processo de segmentação da pobreza em curso desde a abolição da escravatura, em 1888, ganha mais nitidez e poder de controle social com a associação da fotografia aos registros civis e policiais. A partir de então, ligado aos avanços da leitura de impressões digitais, o controle social passa a orientar-se por critérios mais "científicos", onde a segmentação imposta à pobreza deixa de ser geral e torna-se mais individualizada e possível de melhor rastreamento, combate e proteção social aos cidadãos.
*
Há também neste período um desenvolvimento da fotografia de cunho mais social. A generalização das técnicas fotográficas e a sua utilização por setores de esquerda e por segmentos ligados à academia levam a um redescobrimento da pobreza e do atraso no Brasil. O olhar fotográfico inicia assim um percurso onde o encantamento da pobreza se mescla com denúncias de um sistema opressivo, e com a corrida para o registro de culturas e situações de pobreza resistentes ao progresso.
*
A banalizaçào da fotografia, por outro lado, se estende também pela imprensa. As fotos ganham cada vez mais espaço nas revistas e jornais brasileiros, atuando como demonstrativos de verdade às informações jornalísticas. A pobreza começa a ganhar espaço e visibilidade social. Registros de greves, de manifestações públicas, de confrontos com a polícia, fotos de mendigos nas ruas das cidades, de favelas, de locais de lazer, de bairros populares, saem do fora fotográfico e passam a ocupar as cenas e olhares dos repórteres-fotografos.
*
A pobreza ocupa o espaço fotográfico: na visão romântica da esquerda, nos anos cinquenta e sessenta, que decantam o pobre e as favelas e morros brasileiros como um espaço encantado onde se constrói ou por onde se constituirá o Brasil novo, revolucionário; através do olhar de denúncia às injustiças sociais, também patrocinado pela esquerda; pelo registro do exótico pela academia, que se dedica cada vez mais ao estudo da pobreza como espetáculo em vias de desaparecimento, imbuída que estava na visão desenvolvimentista e dualista de época; no olhar clientelista do Estado, que redescobre a pobreza e seu controle pelo filtro da filantropia, acompanhado de perto pelos registros fotográficos nos jornais, revistas e documentos oficiais e partidários. O espaço da pobreza, porém, embora ampliado e visualizado através de diferentes olhares, ainda é documentado através de uma visão de progresso.
*
Sentida através da ilusão reformista que servia de parâmetros ao imaginário da época, a pobreza era vista através da necessidade de superação do sofrimento a que estava exposta, pelo desenvolvimento econômico. Era olhada ainda como culturas ou expressões culturais resistentes, fadadas ao desaparecimento, ou exprimindo negação pela manipulação clientelista, em contraposição às obras sociais erigidas em seu (da pobreza) benefício.
*
A fotografia, assim, nessa trajetória brasileira até os anos sessenta, embora ganhe pluralidade de interpretações e descubra a pobreza como cenário, não consegue afastar-se da visão do progresso do seu nascedouro no país. Seja por visões românticas, naturalizadas, exóticas ou clientelísticas, a pobreza vem à tona e adquire visibilidade ao olhar fotográfico como um subproduto da ideologia desenvolvimentista. Como objeto a ser superado pela modernidade: daí a necessidade urgente de registros, antes que desapareça, ou mesmo do valor moral e encantamento dela advindos para a construção de um novo país, ou ainda, da manipulação clientelista para manutenção de uma estrutura de dominação que cada vez mais necessita dos pobres para exercitar-se.
*
Os anos setenta são anos negros. A esquerda perde a ingenuidade e se esfacela no embate armado com o Estado. Anos de repressão e chumbo. A fotografia acompanha o processo registrando o que pode e divulgando o que escapa da censura. O olhar fotográfico também vai perdendo a ingenuidade. A pobreza perde visibilidade nos jornais, aparecendo apenas como produtos de benfeitorias do poder: construção de hospitais e centros de saúde populares, equipamentos de lazer, creches, habitações populares, entre outros. Registros de um poder militar em busca de legitimação popular.
*
Na academia tem início ao boom de teses e dissertações que atravessa os anos oitenta. O pobre dá o tom aos discursos acadêmicos. A visão do progresso pouco a pouco desaparece, cedendo lugar a uma visão estrutural de permanência da pobreza e, depois, a uma crítica da ideolgia do progresso inerente à formação capitalista (e, nos anos oitenta, socialista).
*
O olhar fotográfico acompanha o desencanto, seja através das ilustrações às teses acadêmicas, seja pelo caminho aberto pelos serviços de assessoria e documentação destinados aos pobres, que começam a surgir com vigor no país no fim dos anos setenta, e que passam a ser conhecidos desde o final dos oitenta como Organização Não-Governamentais (ONGs). Estes serviços, entre outras atividades, documentam exaustivamente, através de fotografias, a pobreza do país.
*
Modos de vida, violência, processos de organização e trabalho são temas largamente explorados através da fotografia. São deles importantes ensaios fotográficos sobre a pobreza no Brasil, durante os anos setenta e oitenta. Como por exemplo, "A Criança e seus Direitos" (1975), exposição coletiva patrocinada pena UNICEF que percorreu o país contrapondo a situação de carência da criança no Brasil com os direitos da criança. Ou ainda, a também exposição coletiva "Violência e Miséria" (1981), que percorreu o Brasil e exterior retratando o dia a dia de violência e miséria urbana no país.
*
A pobreza passa a ser visibilizada pelo olhar fotográfico, a partir dos anos setenta, sombriamente. Excluída das fotos até os anos trinta, emerge como palco do exótico, da denúncia, do encantamento e da manipulação nos anos cinquenta e sessenta, para situar-se, a partir dos setenta, como olhar desesperançado. Como registro da violência, da solidão, do indizível e da dor cotidiana em que sobrevivem grande parte dos homens comuns, esquecidos habitantes das cidades, no Brasil. A fotografia se interessa, a partir de então, pelo lado obscuro do cotidiano da população nas cidades. Os becos, os vazios de viadutos e prédios públicos, as calçadas, as galerias, as beiras dos rios e pontes, os terrenos baldios, as praças, os esgotos, a parte desagradável da cidade situada por trás da fachada moderna onde vive pequena parcela da população, cidadãos com direitos plenos e completo usufruto dos bens e equipamentos urbanos, a eles destinados.
*
O contraste social compõe então o cenário fotográfico. Nos anos oitenta e noventa o olhar fotográfico com sua atenção voltada para a fragmentação do cotidiano onde convivem pobreza (no geral) e cidadãos, parte para a descoberta do inusitado, como na exposição fotográfica "Os Homens Gabirus" (1992), baseada numa pesquisa do Centro Josué de Castro, Recife, e numa série de reportagens no jornal Folha de São Paulo, que retrata a insuportabilidade da miséria e as conseqüências físicas nos sobreviventes, como o nanismo e um aparente embrutecimento mental; expõe a violência contra a população pobre, como no ensaio fotográfico "Massacre da Candelária" (1993), ou no "Os Mortos de Carandirú" (1992 e 1993); registra a incomunicabilidade e solidão dos pobres, como no ensaio "Chicos, Raimundos e Marias" (CAMARGO, 1992); e documenta o cotidiano da pobreza, como no "Livre Acampamentos da Miséria" (MARTINS, 1993), onde se busca retratar as improvisadas habitações da pobreza nos grandes centros urbanos.
*
O tom é malancólico sempre, e insistente: como atingir a indiferença e insensibilidade urbana para com a pobreza? Pode a pobreza ter inexistência para o social como solidariedade e visibilidade, apenas, como medo privado? Por que a opinião pública tende a legitimar as práticas de extermínio e exclusão impostas à pobreza e vira as costas ou desconhece atitudes que busquem justiça social?
*
O olhar sombrio da fotografia sobre a pobreza e cidade, explorando os contrastes sociais nos grandes centros urbanos do país, aprofundando temas que fazem parte do cotidiano das cidades e da pobreza que nelas habita, como a solidão, a incomunicabilidadfe, a insuportabilidade da miséria, a violência, repensa o seu trajeto. A melancolia e a desesperança do olhar fotográfico sobre a pobreza no Brasil, faz uma retrospectiva nostálgica e surreal. Nela parece se misturar o desencanto do mundo, com a finalização de paradigmas norteadores da esperança do melhor a vir, com um projeto ainda insipiente de reconstrução do mundo (social brasileiro) através das imagens.
*
Parece querer revelar no seu olhar atual uma verdade escondida (SONTAG, 1986:58), interior, na demonstração melancólica da miséria urbana, que abra campos para uma nova sensibilidade social (em sua leitura do real). Real, em muitos casos, ainda confundido com o que a fotografia revela e busca afirmar como realidade.
*
Ao recompor o que restou do sonho do progresso, da modernidade , da revolução, a fotografia ainda preocupa-se, como Kertész, em confirmar uma razão a tudo que rodeia e seja digno de registro. Como uma espécie de revelação desse real/ideal.
*
A construção fotográfica dos contrastes na urbe moderna, a busca do entendimento lógico da natureza da miséria no país, o esforço para sua compreensão através das imagens, se parece compor um cenário de angústia e repetição quase sem saída, luta ainda por um projeto de sensibilização social. Uma recomposição da realidade, através das fotografias, que retome as linhas mestras do pensamento sobre o Brasil e quebre a indiferença social sobre a tragédia da miséria urbana.
*
Esforços de desesperançados que impõem a si próprios o projeto de sensibilidade com que esperam inundar o social. Antes, é bom afirmar, que tudo não desmorone e tome as características de fantasmas sombrios do fora fotográfico, que rondam silenciosos a cena ameaçando a revelação, podendo transformar-se num anunciar de desespero: imagens do horror cotidiano de miséria, sem saída e que não comovam sequer o país.
*
*
BIBLIOGRAFIA
*
*
CAMARGO, Rodrigo F. (org.). "Chicos, Raimundos e Marias". Ordem/Desordem, 10:45-48.
*
FABRIS, Annateresa (1991), Fotografia: Usos e Funções no Século XIX. São Paulo, Edusp.
*
HARDMAN, Francisco Foot. (1988), Trem Fantasma, a Modernidade na Selva. São Paulo, Companhia das Letras.
*
LEITE, Miriam Moreira. (1993), Retratos de Família. São Paulo, Edusp.
*
MARTINS, Ana Lúcia Lucas. (1993), Livres Acampamentos da Miséria. Caxambú, Trabalho apresentado na 17ª ANPOCS.
*
MOURA, Carlos Eugênio M. de. (1983), Retratos Quase Inocentes. São Paulo, Nobel.
*
SONTAG, Susan. (1986), Ensaios sobre Fotografia. Lisboa, Publicações Dom Quixote.
*
*
NOTAS
*
*
[1] - Outra vertente de popularização se deu através do registro de cenas da vida privada, onde os retratos de família e entre amigos eram os pilares centrais. Nesta vertente, a ótica dominante era a tradição, que contraditoriamente ou não, era uma das principais bases para o pensamento do progresso no Brasil. Sobre os retratos de família ver LEITE (1993) e MOURA (1983).
*
*
***************************************************************
*
*
Este ensaio foi elaborado para o Grupo de Trabalho: Estudos Urbanos no XVIII Encontro Nacional da ANPOCS. Caxambú, novembro de 1994.
*
Foi publicado, posteriormente, no Cadernos do CEAS, n. 158, pp. 61 a 67, 1995.
*
Uma segunda versão, mais elaborada, deste trabalho, foi publicada na Revista Política e Trabalho, n. 12 , pp. 139-148, Setembro de1996
{Esta versão pode ser encontrada on-line no site:
*
Uma terceira versão deste ensaio pode ser encontrada na Coletânea organizada por Mauro Guilherme Pinheiro KOURY, intitulada Imagens & Ciências Sociais (João Pessoa, Editora Universitária, 1998, pp. 109 a 118), sob o título "Fotografia e Pobreza".
**
**
**
**
********

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Ensaio sobre a questão dos sentimentos na leitura de uma fotografia

CAIXÕES INFANTÍS EXPOSTOS:
O PROBLEMA DOS SENTIMENTOS NA LEITURA DE UMA FOTOGRAFIA
*

Linha de Pesquisa: Rituais da Morte, Luto e Sociedade

*
Mauro Guilherme Pinheiro Koury
*

O olhar se detém em uma foto anônima, que contém enfileirados caixões populares para enterros de crianças de 0 a 10 anos. Um pouco mais talvez, dependendo do tamanho e grau de nanismo e subnutrição daquele que não conseguiu sobreviver.

Os caixões estão expostos, oferecidos no mercado fúnebre. Mal feitos, de cores claras (azuis e brancos, talvez, por serem os mais comuns, supostos pelo olhar através do jogo de luzes e sombras de uma fotografia em branco e preto), alguns com pobres estamparias florais e frisos de latão prateado ou dourado, reaproveitados num processo de bricolage de materiais em desuso.

A fotografia busca representar a naturalidade da morte infantíl em pequenas cidades do interior nordestino, através da exposição do produto caixões de anjo em uma das diversas casas de comércio fúnebre de cunho mais popular. O choque de realidade que ela aparentemente afirma é, ao mesmo tempo, negado pela hipotética construção de cena comum ao ato fotográfico.

A fotografia analisada, assim, ganha ares de ficção, de cenário preparado para uma demonstração ou jogo de efeitos específicos que é o lado corriqueiro, banal com que é sentida a mortalidade infantíl por aqueles que convivem com ela (e seu grande número) cotidianamente.

Entre ficção e prova de realidade transita aos olhos do espectador a imagem revelada. Apenas caixões infantís expostos num canto de parede qualquer, retirando de cena toda a vida possível que deve existir ao seu redor, fechando-se no locus da morte, da mortandade infantíl e da situação de pobreza de seus possíveis usuários.

A irrealidade que o seu enquadramento permite leva o espectador a analisar a fotografia tanto por uma possível estética da pobreza na morte, ou no cumprimento dos ritos funerários socialmente aceitos e legítimos, asseguradores da transição no após vida, quanto pela vulgarização da morte e dos seus ritos, através da exposição comercial de um tipo de mercadoria muito procurada, os caixões de anjo, e de sua qualidade inferior, denotando a pobreza daqueles a quem são destinados.

O que não deixa de ser um trabalho ficcional, um olhar do espectador, que está além (ou aquém) da imagem revelada.

A realidade da imagem na foto, por outro lado, caixões infantís populares em exposição , remete para um espaço e um tempo específicos, ou específicamente fotográfico. Ao ato fotográfico propríamente dito: a um momento e a um lugar “que foi”, como diria Barthes (1980), que existiu, gênese da revelação que esta foto transmite.

A revelação, sempre uma ação posterior no processo fotográfico, recria sempre outro(s) espaço(s) e tempo(s) em quem a vê. Implica muitas vezes em um retorno ao passado, a um tempo e a um espaço que já não existem, palco da memória do autor no momento de sua composição. Palco, também, de um memória social presa, ou melhor, prisioneira da representação fotográfica, fixa no que a foto revela.

Se esse plano de indeterminação justifica a originalidade fotográfica, a faz única a cada ato, impossível de repetição, enclausurada em um instante perdido entre o objeto fotografado e seu autor, no momento de apertar o gatilho e aprisionar a imagem na câmera, leva, também, a reflexões da própria indeterminação enquanto fetiche (Freud, 1974). Resultado de uma intemporalidade transmitida pela foto a cada olhar que revela um tempo e um espaço que não mais existem, porém, estando presente a todos que a vêem.

A exposição de caixões infantís numa casa funerária popular cria expectativas a cada olhar a partir da própria intemporalidade e da indeterminação da imagem fotográfica. Funciona como objeto parcial (Klein, 1991), que provoca a interrupção do olhar preenchendo campos de interjeição e questionamentos até então não enfrentados pelo espectador e que, apresentados pela fotografia que se observa, torna-se seu substituto, enfraquecendo a ação analítica, tornando-se ilusão, a-histórica.

Ilusão reforçada, se seguirmos o raciocínio encontrado em Metz (1989), pela força do silêncio e da imobilidade da imagem fotográfica. A fotografia, assim, simbólicamente, se liga à morte, àquilo que já não é (mais), funcionando como substituto do objeto-passado. Interrompendo e eternizando, ao mesmo tempo, a sua história, agora objeto-memória, seu duplo, objeto de evocação, de recordação e até mesmo, quem sabe, de crença ou de possíveis estórias criadas do que já não mais existe.

A experiência da foto, assim, distingui-se da do objeto fotografado. E esse distanciamento, se de um lado processa caminhos paralelos entre a foto e o objeto que se deixou fotografar, por outro lado, com a revelação tem-se prisioneira uma partícula ou fragmento de tempo e de espaço no momento do ato fotográfico, que faz daquela foto específica uma evocação daquele passado que já não mais é, estando presente, porém, corporificado, na imagem revelada.

Nesse sentido, fazendo talvez uma comparação absurda entre a fotografia e o mito de Kolossós na cultura grega (Vernant, 1990: 306-307), como substituto do ausente, ambos, não visariam reproduzir os traços, ou assumir as características físicas do que se foi, tem a característica sim de um duplo, como o próprio morto é um duplo do vivo.

Através de Kolossós, ou da fotografia, o objeto revelado sobe à luz do dia e manifesta aos olhos dos vivos (ou observadores) a sua insólita e ambígua presença porque, também, e principalmente, sinal de ausência.

A fotografia como duplo, desse modo, trás em si o efeito de enganar, de decepcionar, de engodo: é a presença do objeto revelado, mas, também, é a sua ausência irremediável. Satisfaz uma passagem fundamental entre o visível e o invisível, reforçando ao mesmo tempo sua oposição.

Revela-se, quando evocada pelo olhar do observador, e a sua imagem é apontada na gênese do ato fotográfico, dos fragmentos captados pela câmara no instante único de sua fixação pelo dedo do fotógrafo. Intemporal, a-histórica, parcial, a fotografia trás também em si um lado documental. Mesmo que fantásmico.

Nesse apontar do fotógrafo registra-se um passado. Um fragmento de passado que permite lembranças e possibilita ao olhar de quem observa, ou daquele que retoma com o olhar o que a foto revela, prescrutar sobre qual realidade a evocação remete através do ausente fixo no presente da imagem.

O problema dos sentimentos ressaltados no ato (quase litúrgico) da presença de um ausente, de um momento que não é mais, assoma o espectador como rememoração. Revive o passado presente como memória a ser reconstruída, fragmento na multiplicidade de informações a ele submetidas (Benjamim, 1985) e dispersas no emaranhado da construção de sua formação como pessoa. Duas ações distintas se processam, ligadas a proximidade ou não da cena ao olhar que observa. Ambas, porém, movidas pela mesma sensação de vazio, de encantamento, da revelação.

Antigamente lá e hoje, aqui, como falaram barrageiros expulsos da borda do Rio São Francisco e que retornavam à beira do agora lago formado pela hidroelétrica de Sobradinho, na divisa da Bahia com Pernambuco, quando se depararam com a nova paisagem das águas e as condições novas a eles impostas. Os sentimentos da revelação criaram estórias, refizeram tempos e espaços evocados para a situação no hoje, aqui. Necessários à remontagem do viver de agora, do sobreviver às dores do antigamente lá, agora irremediávelmente perdido, como analisado com grande beleza por Siqueira (1992).

A tensão da lembrança possibilita o refazer percursos, acalmar ou alimentar saudades, naturalizar as próprias angústias, anseios, medos (Delumeau, 1989), ou, numa leitura livre de Pollak (1985), enquadrar a própria memória, protegendo-a dos submundos da imaginação, das memórias subterrâneas que fantasmificam a existência presente.

A quem não teve acesso a experiência viva, na carne, a lembrança é envolvida com outras saudades, com processos que se intercruzam, ninguém sabe direito porque, confundindo tempos e espaços da imagem revelada. Temporalidades espaciais da experiência do sujeito que observa.

A rememoração brinca, assim, com processos vitais e como eles se constituiram na pessoa que vê.

O vazio intemporam da imagem provoca. Os fantasmas evocados correspondem apenas em parte a naturalização ansiada, e, como vidente cego, na caracterização de Vernant, veste-se de noite para prescrutar a experiência do vazio na imagem.

Encarna o papel de Kolossós de olhos vazios, de advinho, daquele que trafega entre o mundo dos vivos e dos mortos. Aprofunda-se perigosamente nos subterrâneos da memória de um tempo que não foi seu, buscando resgatar as lembranças significativas que descongestionam a saudade e permitem a naturalização da imagem na revelação. Vai mais além, descendo o sinuoso caminho da solidão corporificada no ausente presente na fotografia, esforçando-se para trazê-la mais próxima.

Rudimentares caixões infantís enfileiram-se em exposição, num canto de parede qualquer. A foto agride o observador, primeiro, por sua singeleza: caixões baratos, adornos de material reciclado, grosseiras estamparias florais, remete ao artesanal do fabrico, pondo beleza na humildade dos objetos expostos. Fragiliza o espectador ao retirar de cena a tragédia da expansão do comércio fúnebre infantíl entre os pobres, para repô-la enquanto beleza, enquanto uma estética da pobreza e um inventário de materiais reunidos e reciclados para o fabrico dos caixões de anjo.

Segundo, essa agressão também é reconhecimento. Ao olhar a fotografia tem-se a certeza de tratar-se de um comércio pobre, de um artesanato pobre feito para pobres (interioranos ou das periferias de centros urbanos maiores). O enquadramento da foto permite, assim, o imediato enquadramento da memória.

A agressão passada pela imagem, pela singeleza, pelo inventário que ela permite, é uma ação de comprovação. A foto assegura a identificação, ou dá a conhecer o objeto. Credibiliza-o na emoção da imagem tirada, que não é dali, que não se encontra ali em sua solidão plena de realidade passada, mas que representa ou evoca na sua revelação, valores sociais e estéticos que tocam o observador no presente.

Idéias e associações recorrem, produtos de experiências individuais ou coletivas do olhar que observa a exposição dos caixões de anjo alinhados. Emociona o re-conhecer. O estar alí ao alcançe dos olhos e tão longe, espacial e temporalmente. A emoção é encantada porque concentrada nos valores que a foto transmite e que chegam até o observador na sua distância necessária, transformando o trágico cotidiano em singelo e atemporal exercício de estética.

A solidão e a dor encrustadas nos limites da fotografia não perpassam a emoção do observador atento da imagem revelada. O apontar fotográfico documenta apenas o vazio dos objetos, cenário de exposição de mercadorias mortuárias para uma determinada faixa etária, e uma também determinada faixa econômica.

O espaço de recorrência aberto na memória do observador convida à travessia da imaginação, pelas identificações evocadas na revelação, que possibilitam a ação do pensamento, o pensar. Podem levar, também, ao abandono do olhar a fotografia, pelo aspecto de banalidade que ela mostra.

No segundo caso o observador enquadra o seu pensamento na representação fotográfica, e segue o seu caminho. No primeiro caso, porém, o olhar ao re-conhecer percorre criteriosamente as identificações na revelação, aprofundando-se na imaginação. A experiência do olhar do observador recolhe na foto material para o trabalho da imaginação. Sempre pessoal e social, este trabalho conota expressões culturais que objetivam relacionar a imagem revelada a um tempo e a um espaço específico, ou específicamente humano.

O vazio assim é recomposto como representação social, através de tensões relacionadas à emoção do olhar em exercício de viagem pela imaginação. Da fixidez da imagem fotográfica passa para as imagens em ebulição vindas no processo do re-pensar. O re-pensar, assim, é um processo do depois, como ensina Arendt (1993: 123-143), sempre após o re-conhecimento pela experiência do sujeito. Eminentemente social, o tempo da fotografia passa a ser, nessa viagem, o tempo da imaginação nela recapitulada.

Viagem livre, porque absorvida na evocação no presente de imagens que não são dali, mas estão ali expostas, reveladas aos olhos que as observam. E nessa liberdade da viagem os processos formadores da experiência do sujeito que vê se mesclam também com o imaginário, ou o jogo de fantasias subterrâneas da memória. Ficcão e realidade.

Sentimentos de esforço e de pressão que invadem a revelação que a foto transmite, no ritmo frenético da imaginação. Na viagem o pensamento agride a foto desnaturalizando-a, buscando a compreensão através dos processos vitais do ciclo humano. O choque percorre o enquadramento fotográfico, e as repetições recorrentes da imanência da imagem revelada, resgatando o eminentemente humano presente no passado que a foto repõe ao olhar de agora.

A recordação dos fatos conotados através da evocação da imagem e do desvario que o olhar viajante atravessa nos subterrâneos da memória, se aproxima do delírio de Kolossós de olhos vazios, da tensão daquele que caminha como advinho cego, intérprete e intermediário do visível e do invisível, do jogo de vida e morte que a revelação conduz.

Os caixões de anjo expostos em ordem num canto qualquer de uma casa comercial interiorana ou de periferia, revelados numa foto anônima, são observados pelo olhar em viagem por espaços de melancolia e tristeza. O processo compreensivo em sua alucinação ultrapassa a temporalidade eminentemente fotográfica afirmando um tempo como invenção humana, construído no processo interativo onde se formam e se acumulam as experiências sociais, culturais e pessois (donde o próprio ato fotográfico advém).

A singeleza da foto na sua intemporalidade é recomposta pela dor que margeia, que tensiona a moldura onde se intercoloca a questão dos limites que a foto precisa. O fora de cena ganha a cena na viagem do olhar. A tragédia social dos mortos pela fome e miséria de cada dia, dos que não chegam a sobreviver, invadem o que a foto revela. O invisível em cena atravessa as lembranças agredindo a foto com o humano negligenciado. Revela a revelação.

A viagem do olhar ensandecido pelas portas da imaginação, ao recuperar a dor e com ela preencher a imagem trazida à luz pela foto, ao lidar com os invisíveis, com as representações de elementos que estão ausentes, por estarem envoltos nas experiências particulares e sociais do observador, ao transitar livremente entre a cena e o fora de cena, recupera o sofrimento do rememorar, repõe a cisão do pensamento com o diálogo de si para consigo, enfrenta essa diferença necessária para o processo de criação, para a formação de uma consciência moral.

Pode ensejar, também, outra relação nesse processo compreensivo, - tendo a noite tomado conta dos seus olhos, como o advinho da antiga Grécia, e assim solicitado pela evocação do ausente interrelacionar o visível e o invisível, provocando a ruptura tênue da natural composição dos dois tempos (ou mundos): o da fotografia e o dos homens que preenchem com sua dor o campo de fora, - os olhos do observador em viagem encaminha-se para o lugar onde todo olhar se vê denegado, distância entre limites determinados da castração e do lugar ao lado, campo da ilusão, do fetiche.

Em qualquer lugar que se estabeleça ou se finde a viagem da imaginação do observador, enfim, o olhar não sai impune. A foto que expõe caixões infantís no comércio mortuário para a pobreza codifica, através da constância perceptiva imposta pela imagem revelada, a solidão do homem comum em luta contra a morte física e social de cada dia.

Recompõe experiências sociais, que em sua banalidade cruel naturaliza a fome, a miséria, a mortandade infantíl, a pobreza. Recupera os homens como engendradores de cada experiência social e pessoal, por mais elementar que pareça. Reavalia, por fim, que o invisível fotográfico, a sua intemporalidade, embora possa ditar normas para o olhar que observa, enquadrando suas lembranças, suas saudades, seus momentos, em processos integrativos de assimilação do ausente, impõe sempre ao observador as àguas turvas do rio da imaginação, onde tudo é possível porque dessacralizado.

Pode-se chegar até a descrever a foto que expõe caixões infantís à venda, como compondo uma ilusão a mais, a de que a pobreza no Brasil enterra seus mortos em caixões. Que o comércio fúnebre é um comércio em expansão entre os homens comuns, quando se sabe que a faixa de pobreza com recursos para enterrar seus mortos nos padrões ritualísticos aceitos pela ordem civilizatória que circunscreve em redes a cultura da pobreza, é mínima.

Os homens pobres enterram os seus anjos com um pano qualquer, quando possuem... mais uma cruz feita com paus achados na estrada e rezas de uma tristeza alegre pela sorte de não seguir a destinação que outros tantos estão tendo de suportar.

Mas essa já é outra história, ou outro causo, ou estórias de solidão e insuportabilidade entre os excluídos no Brasil.

Ah mi si spezza il cor !
(Mozart, Aria k513)

*

BIBLIOGRAFIA

*

ARENDT, Hanna. (1993). “Só permaneçe a língua materna”. In, A dignidade da política. Rio de janeiro: Relume-Dumará. Pags. 124-143.

BARTHES, Roland. (1980). La chambre claire. Paris: Gallimard.

BENJAMIN, Walter. (1985). “Pequena história da fotografia”. KOTHE, Flávio R. (Org.). Walter Benjamim. São Paulo: Ática. Pags. 219-240.

DELUMEAU, Jean. (1989). História do medo no Ocidente (1300-1800). São Paulo: Companhia das Letras.

FREUD, Sigmund. (1974). “Fetichismo”. Obras completas. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago. Pags. 179-185.

KLEIN, Melanie. (1991). “Notas sobre alguns mecanismos esquizoides”. Obras completas. Vol, III. Rio de Janeiro: Imago. Pags. 20-43.

METZ, Christian. (1989). “L’Image comme objet: cinéma, photo, fétiche”. DHOTE, Alain (org.). Cinéma et psychanalyse. Paris: Corlet. Pags. 168-175.

POLLAK, Michael. (1985). “Encadrement et silence: le travail de la mémoire”. Paris: Pénelope, 12: 30-47.

SIQUEIRA, Ruben Alfredo de. (1992). Do que as águas não cobriram. João Pessoa: (dissertação de mestrado). MCS/UFPb.

VERNANT, Jean-Pierre. (1990). “Figuração do invisível e a categoria psicológica do duplo: o Kolossós”. In, Mito e pensamento entre os gregos. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Pags. 305-316.



************************************************************************************

Este ensaio foi originalmente apresentado no GT “Antropologia e Imagem” da XIX Reunião da Associação Brasileira de Antropologia. Niteroi, 27 a 30 de março de 1994.


*

Posteriormente foi publicado nos Cadernos de Ciêncas Sociais, n. 31 (JP, PPGS/UFPB, julho de 1994).

*

Uma segunda versão deste ensaio foi publicado nas páginas 65 a 74 da coletânea organizada por Belha Feldman-Bianco e Míriam Moreira Leite intitulada: Desafios da Imagem: Fotografia, iconografia e vídeo nas ciências sociais (Campinas, SP, Papirus, 1998).




*************************************************************************************

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Ensaio sobre Emoções e Fotografia

Linha de Pesquisa: Estudos em Sofrimento Social e Sociabilidade

*
Retrato em Branco e Preto: Sentimento e Fotografia

*

Mauro Guilherme Pinheiro Koury
*

Em uma letra clássica de sua extensa musicografia, intitulada Retrato em Branco e Preto, Chico Buarque nos fala da dor do amor. Dor solitária, passada internamente no sujeito que a sofre como doença incurável que corrói a alma. Embora exista outro nessa relação amorosa, esse outro é sempre inatingível, se passa como um significado intrínseco à alma que sofre e se tortura nesse embate interior do mim para comigo: “o que eu faço/contra o encanto/desse amor que eu nego tanto,/evito tanto/e que, no entanto,/volta sempre a enfeitiçar”.

A paixão amorosa é essa espécie de encantamento, de feitiço a que alguém é submetido e a ela sucumbe. Stendhal em Do Amor (São Paulo: Martins Fontes, 1993), escrito no limiar do século XVIII, informa sobre o amor paixão ou do tipo Werther (relacionando com o célebre romance de Goethe), que “enlouquece pelo excesso de sensibilidade” (p. 181), como uma “(d)as fases da doença da alma chamada amor” (p. XLVIII). Dissocia-a de outro tipo, que chamará de amor de vaidade ou Don Juan, que “reduz o amor a ser apenas um assunto comum” (p. 183) ou ao tédio (p. 188).

Informa que o caráter Don Juanesco do amor requer um número maior de virtudes estimadas na sociedade, - como intrepidez, agilidade de espírito, vivacidade, sangue frio, entre outras, - onde a publicidade é um requisito necessário ao triunfo. Diferente do amor a la Werther, onde o segredo, o desespero e a morte são elementos fundantes, e considerados depreciativos pelo social.

Nos dois tipos ou caráteres de amor, porém, existe um elemento comum que é a supremacia do indivíduo em relação à sociedade. Os códigos amorosos passariam a representar tipos de caráter individual no enfrentamento ou embate do amor. Um mais conforme a um tipo de sociedade que se ajustava aos padrões mercantis que começavam a virgir e que afloraria em toda a sua potência e se consolidaria nos séculos seguintes. Outro, qualificado como depreciativo pelo social, mas que faz emergir uma individuação no sujeito amorificado, que se põe contra o social ou em contraste a ele, como um ser que guarda em si um segredo, uma incompletude distinta da sociedade a que faz parte, e que o faz uma totalidade diferente, enquanto subjetividade.

Nos dois tipos de amor também se pode achar, como conseqüência dessa individualidade resgatada, outra característica comum à época e a mentalidade que vinha se formando, que Susan Sontag no romance O amante do vulcão (São Paulo: Companhia das Letras, 1993) chama de espírito de colecionador. Em ambos os caráteres a coleção é fundamental para o constructo amoroso.

Reduzido a tédio, o amor a la Don Juan funda-se pela coleção de conquistas e de sua publicização, é exterior, social, e representa-se como ou enquanto vaidade. A enumeração das conquistas perfaz a coleção que norteia a construção da memória através de sua quantificação e estratificação.

Condenado ao desespero solitário, o amor a la Werther é construído pela coleção de lembranças. Pergunta Stendhal (op. cit. pp. 71): “como retratar a felicidade se ela não deixa lembranças?”. Alguns fios de cabelo ao vento, um olhar que comove, um gesto ao acaso, uma cor, uma flor, um odor que trazem o objeto amado à recordação firmando-o naquele presente pela substituição e, assim, presentificando-o e gratificando o amante pela ilusão da retenção do amado, e de sua compreensão. Ou, a repetição de cenas de rejeição do objeto amado, da insegurança de não se saber também amado, de uma mão que se retira, de um olhar que não se cruza, ou de aparente desdém.

De o ser amado nunca estar no local que deveria ser localizado, como diz Roland Barthes no livro Fragmentos de um Discurso Amoroso (10ª edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990), faz parte dessa coleção. Uma coleção formada por sinais que preenchem de sentido o ser e o estar enamorado, em criações de júbilo ou temor. A felicidade amorosa assim seria essa coleção de lembranças, esse depositário ambíguo de um prazer em dor, que arrasta, que envolve, ao mesmo tempo em que se quer desligar, e no esforço de desligamento retoma o encanto: “com seus mesmos tristes/velhos fatos/que num álbum de retrato/insisto em colecionar”.

O espírito de colecionador, deste modo, dá significado ao amor na contemporaneidade das sociedades ocidentais a partir dos finais do século XVII até a atualidade. A arte de amar, o sentimento amoroso, passa pelo registro das conquistas efetivadas Don Juanescamente, ou pelo registro das lembranças do processo amoroso, solitário e obcecante do repassar contínuo dos fatos ou símbolos amorificados. Das marcas do amor.

Para Proust, no seu Em Busca do Tempo Perdido (07 vols.. 12ª edição. São Paulo: Globo, 1994), a conquista do processo amoroso só advém a partir da morte da relação amorosa. É quando o sujeito pela perda consegue reconstruir a totalidade do ato, dissecando-o e recompondo. Estranhando-o e retendo em si apenas os liames sentimentais que o fizeram apaixonado. É o que Freud no seu trabalho Luto e Melancolia (Obras Completas. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Pags. 275-292) irá chamar, um pouco mais tarde, de processo de luto, onde a perda irá ser interiorizada no sujeito que a sofre, retendo em si os elementos reconstruídos e sentimentais daquele ou daquilo que se perdeu.

“Trago o peito tão magoado/de lembranças do passado/e você sabe a razão./Vou colecionar mais um soneto/outro retrato em branco e preto/ a maltratar meu coração”. O repassar contínuo das marcas de amor feito coleção, que acrescenta a cada repassar mais um soneto ampliando o álbum-memória; o soneto como um retrato em branco e preto a maltratar o coração de quem vive uma paixão ou sofre uma perda amorosa.

Retrato em branco e preto. Roland Barthes escrevendo sobre fotografia em A Câmara Clara. Uma Nota sobre a Fotografia. (4ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984) revela o lado subjetivo do olhar de quem vê. Os retratos guardados de um amor são mais do que registros do real, diz da relação a quem nela permanece em um tempo posterior, ou que a viveu. Fala de um passado, e presentifica esse passado como um marco de sua existência, como prova de um real, e ajuda simultaneamente a encarar esse registro sentimentalmente, a dar vida às situações passadas e agora fixas no retrato.

Para outro olhar qualquer, aquelas fotos não significam nada além do que registros corriqueiros sobre desconhecidos e enquanto tais nada representam do que o registro em si.

A fotografia como registro sentimental e como registro real. Sentimento e realidade se confundem no processo imaginário do fotográfico. As lembranças agora são mais visíveis e é possível buscá-las no álbum de retratos. Como retratos em branco e preto, isto é, como um registro imaginado através da névoa que a fotografia em preto e branco permite. A realidade fica como que envolta no mistério das nuances de cinzas. Tonalidades que demarcam o contorno dos registros e ao mesmo tempo lançam possibilidades de atuação colorida das lembranças, como em um soneto.

Colecionadas, as lembranças fotográficas permanecem como uma curva de vida. Na coleção encontra os sentidos dos amores passados e presentes, como uma prova à imaginação da realidade do que foi sentido.

A marca ambígua da individualidade entre ser social e ser individual, e, portanto, não social por excelência, é refeita socialmente pela prova dos sentimentos como lembranças que podem ser compartilhadas e comprovadas via fotografia. Prova-se a si mesmo e aos outros os sentimentos vividos.

Como diz a amostragem das conquistas ao estilo Don Juan: as mulheres ou os homens conquistados no transcurso da vida por um ser amante.

Sempre posterior, a fotografia representa o sentimento vivido no que já passou. Freud, em uma carta endereçada a sua futura mulher, Martha Bernays, em 1882, revela o valor da fotografia enquanto recordação do que se tem e não está presente, ou do que não se tem mais. “Teu retrato encantador. Apreciei-o pouco enquanto tinha o original diante dos olhos; mas, agora, quanto mais olho para ele, mais ele se parece com a minha amada. Fico esperando as faces pálidas se ruborizarem, ganhar o tom que tinham nossas rosas, e os braços delicados saírem do quadro para pegar minha mão; mas a querida imagem fica imóvel, apenas parece dizer: paciência! Paciência! Sou apenas um sinal, uma sombra lançada sobre o papel” (Freud, Correspondance 1873-1939. Paris: Gallimard, 1966. Pags. 17-20). Revela também o outro lado da fotografia, é apenas um registro; se vale como prova do real não é o real em si, mas uma realidade que foi como “uma sombra lançada sobre o papel”, ou como um soneto: um retrato em branco e preto a maltratar o coração ou a aliviar o coração (paciência! Paciência!) do olhar que procura o consolo no retrato estampado.

Pode indicar também outros predicados de conteúdo moral. Em outra carta a sua futura mulher Freud, apaixonado, revela sua fraqueza diante de um tipo feminino que o chamou a atenção e o papel do retrato de sua amada como um balizador moral de seus sentimentos. Diz Freud: “Fiquei desagradavelmente impressionado pelo fato de que as duas vezes em que ela esteve aqui tua foto, que geralmente não se move, caiu da minha escrivaninha. Não gosto destes sinais e, se fosse necessária uma advertência... mas não foi necessário” ( Freud, Op. Cit.., pags. 229-230).

A fotografia, assim, coleciona os sentimentos de amor, bem como sedimenta conteúdos sociais morais sobre ações involuntárias ou voluntárias da ou na conduta amorosa. Na extensa literatura folhetinesca e romanesca, a presença do retrato revela estas duas facetas, a de suprir a presença do objeto amado, ou de situações fixas no presente passado da fotografia que remetem sentimentalmente ao fato amorificado, e a de impor um argumento moral de presença ausente do outro da relação amorosa. Em Freud, o retrato parece insinuar o desejo aflorado e proibido. Nos folhetins e romances a fotografia do outro da relação amorosa ou reclama o olhar proibido ou é sempre coberta ou guardada nos momentos do desejo desperto por um terceiro na relação.

A ausência do original é presentificada, enquanto culpa através do registro fotográfico. O desejo proibido porque comprometido com as regras da monogamia ou do casamento resignado e feliz, instauradas pelo cristianismo na modernidade ocidental, como um contraponto às paixões. Como um controle social ao mito das paixões exaltadas (Kristeva, Histórias de Amor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.). A presença da fotografia amada impõe regras de conduta, e ao desviar-se dela, mesmo não intencionalmente, o retrato revela sua condenação.

Daí os amantes sistemáticos, os de caráter Don Juan, que querem conservar uma relação duradoura, afastarem o olhar do retrato do seu olhar. Como se o retrato falasse, os condenando moralmente.

O retrato porem é ambíguo na sua caracterização moral. Em sua visão pública personaliza e dá status as relações nominadas socialmente e que se quer permanentes: o namorado, a namorada, o noivo, a noiva, o esposo, a esposa. Expostas são referências necessárias ao estatuto social de quem as tem, comprovam a estabilidade familiar ou sua construção. São reverenciadas como símbolos significativos da vida social, isto é, pública do sujeito.

Podem as fotografia, porém, representar a linguagem da sedução e do pecado. Como também a da solidão e do sofrimento. Guardadas a sete chaves são atributos pessoais das conquistas ou das não realizações. Umas e outras contornando uma história pessoal que se contrapõe com a história social do sujeito e que às vezes se mesclam, vindo à tona a linguagem do desejo e das paixões sobre o discurso resignado e feliz socialmente aceito. Pequenos momentos de individuação, onde a vaidade e a tragédia se mesclam no conclamo público de um trajeto pessoal, que dependendo da circunstância, pode ser reverenciado ou condenado. A descoberta das paixões encoberta dão prestígio a Don Juans ou levam à morte aos Werthers.

Transformadas em lembranças íntimas ou em desafios secretos, a coleção de fotografias, ou a fotografia especial de alguém amado revelam-se em instrumento de individualidade: através desses registros se estrutura um conjunto de significados que condicionam o olhar para o interior de si mesmo. A fotografia criando um liame entre as sensações subjetivas do vivido e a prova exterior desta mesma vivência.

Secretas ou públicas enumeram vestígios de um passado, marcam este passado, o torna objetivamente real. Melhor, um real sempre presentificado. Um álbum de retrato que insisto em colecionar, que permite retornar nos já conhecidos passos desta estrada, cujo segredo eu sei de cor. Atemporal como são as paixões, a fotografia provoca no olhar que a evoca a presença de momentos passados que são remetidos ao olhar como presentes passados corporificados na sua fixidez de registro.

No registro fotográfico evoca-se imagens passadas como presente, sem tempo e sem espaço onde o olhar é remetido a evocar e, nesse trazer para si, possuir. Um peito tão magoado de lembranças de um passado que insisto em colecionar e, no manuseio desta coleção de retalhos de amores em fotos fixados apossarem-se do outro, mesmo que na proximidade distanciada presente que o olhar fotográfico permite.

Sempre íntima nas leituras de cada olhar é ao mesmo tempo prova eficaz de sua realidade, de sua sociabilidade. Através da coleção fotográfica é possível provar, em todos os sentidos do verbo. Através dela a individualidade ganha instâncias de sociabilidade na sociedade ocidental, onde o real e sua prova permitem a troca baseada na mercantilização dos objetos, pela vaidade ou pelo desprendimento. Onde o secreto é sempre acrescido de valor. Como retrato em branco e preto onde a prova do acontecido é revista nas brumas do olhar em tonalidades cinza, que remetem ao social com o sabor sempre de inadequação; mas uma espécie de inadequação sentimental, atenuada pela posse real que o registro fotográfico onipotencializa.

*
[Publicado no Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 15 ago. 1998. Caderno de Cultura, p.1; 5.]
* * *
[Uma segunda versão ampliada deste ensaio pode ser lido na Revista Política & Trabalho, n. 16, Setembro / 2000 - pp. 115-122, sob o título: "A MARCA AMBÍGUA DA INDIVIDUALIDADE: A FOTOGRAFIA E O SENTIMENTO AMOROSO". Pode ser visto, também, on-line na página da revista, no endereço: http://www.geocities.com/ptreview/16-koury.html ]
* * *

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Revista Rua, n. 14, traz artigo do Professor Mauro Koury

Acaba de sair um novo número da Revista Rua - (Número 14 - Junho 2008 - ISSN 1413-2109), - do Laboratório de Estudos Urbanos do Núcleo de Desenvolvimento e Criatividade da UNICAMP, no novo formato online.
*
Esse número 14 da Revista Rua, conta com seis artigos, um ensaio fotográfico e uma resenha.
*
A seção Estudos, reflete sobre questões relativas a processos de identificação muito próprios ao espaço urbano, com efeitos de políticas de gestão do espaço público e, finalmente, com a atualidade de um campo de saber: o da Ambiência Urbana.
Sentidos de pertencimento são trazidos delicadamente ao leitor, por meio de análises que se sustentam na antropologia e na Análise de Discurso:
*
A construção das representações identitárias: o brasileiro clandestino deportado” de Marcos Barbai toca na relação entre a imigração e a deportação como lugar possível ou impossível do sujeito identificar-se;
*
Futebol no Brasil: sentidos e formas de torcer” de Simone Hashiguti, ao refletir sobre a identificação social, mostra-nos como ela se constitui na prática da torcida em jogos de futebol;
*
Identidade e Pertença: Estilo de vida e disposições morais e estéticas em um grupo de jovensde Mauro Guilherme Pinheiro Koury analisa a articulação de grupos no que tange a dimensão social da emoção e processos de criação humana.
*
Efeitos de sentido de práticas urbanas e de gestões urbanas são também analisados:
*
Mídia e espaço público: excesso de sentidos” de Guilherme Carrozza trata de sentidos disponíveis no espaço público – seja pela presença ou pela ausência da publicidade como no caso de leis de proibição de outdoors;
*
Un futuro frente al río. Gestos de interpretación en el discurso de lo urbano” de María del Rosario Millán, mostra como a gestão pública e urbana, em um caso específico na Argentina, afeta a configuração física e simbólica da cidade legitimando sentidos já postos.
*
Finalmente, “A ambiência trilhando caminho: em direção a uma perspectiva internacional” de Jean-Paul Thibaud trata dos rumos do campo das ambiências arquiteturais e urbanas, mostrando que esse se consolida internacionalmente e as conseqüências desse cenário internacional.
*
A seção Ensaio Fotográfico: conta com o ensaio "Via Sacra" de Rosângela Morello
*
A Seção Resenha: conta com uma resenha do livro "Um campo de concentração francês. Os ciganos alsacianos-lorenos em Crest, 1915-1919", de Emmanuel Filhol.
*
Leiam. Excelente número!

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Dois artigos sobre Medos Urbanos publicados na revista E do SESC-SP em 2008.

Revista E: Medos Urbanos . Artigos dos Professores Nancy Cardia e Mauro Koury
Revista E (SESC-SP). Nº134 - Julho de 2008

Andar sozinho pelas ruas à noite, parar no farol vermelho de madrugada, ser abordado por estranhos, sair de casa com objetos de valor. O que poderia ser definido como hábitos comuns se torna práticas de risco diante dos atuais índices de violência. O principal efeito dessa transformação é a instituição de um verdadeiro estado de pânico – sobretudo nas grandes cidades. "A presença do medo da violência dentro de uma sociedade tem profundo impacto sobre a vida social, cultural, econômica e política de um país", afirma a coordenadora adjunta do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP) Nancy Cárdia. Para o antropólogo e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba Mauro Guilherme Pinheiro Koury o sentimento pode levar o indivíduo a uma clausura social. "Sobretudo de classe média, que tem dificuldades de relacionamento e sentimento de solidão amplificado". A seguir a integra dos artigos dos dois especialistas que analisam os danos, em diversas dimensões, de uma sociedade assombrada.
*
"Medos urbanos"
por Nancy Cárdia
*

Quando falamos de medo urbano estamos, em geral, nos referindo a um tipo de medo: o medo da violência. Esse medo se refere tanto ao medo de ser vítima da violência criminal, como da violência interpessoal, motivada por qualquer tipo de conflito ou desentendimento entre desconhecidos, e por fim o medo por outros, isto é, o medo de que parentes sejam vítimas da violência, em especial da violência criminal (também conhecido como medo altruísta). A presença do medo da violência, dentro de uma sociedade, tem profundo impacto sobre a vida social, cultural, econômica e política de um país. Reduz a disposição das pessoas para ações coletivas, aumentando a desconfiança entre elas, inibindo o exercício de capital social, porque o reduz o diálogo e, portanto, a identificação de que problemas são compartilhados, afetando ainda o exercício da solidariedade.

Além disso, o medo inibe investimentos econômicos, onerando tais investimentos e drenando recursos de setores produtivos para a segurança de pessoas e/ou de empreendimentos, entre outros. Afeta a vida social, introduzindo a necessidade do planejamento e do monitoramento de atividades rotineiras, de modo a reduzir a percepção de risco de serem vítimas de violência e resultando em restrições de comportamentos. O medo da violência tem ainda impacto sobre a política, visto que se atribui aos governantes a maior parte da responsabilidade por sua redução, entrando, assim, na agenda política, quer como bandeira em campanhas políticas, quer como exigência da população – e, quando isso ocorre, pode ser manipulado para se justificar a adoção de medidas arbitrárias, contanto que dêem a sensação de que serão capazes de reduzir o medo.
Para os governantes, um dos grandes desafios que o medo da violência apresenta é que, uma vez instalado em uma sociedade, ele não desaparece com a simples melhora das estatísticas oficiais, isto é, com a redução da violência criminal, registrada pelos órgãos encarregados da segurança pública. As estatísticas oficiais podem apresentar uma forte queda, como ocorreu em São Paulo no caso dos homicídios (que nos últimos seis anos teriam se reduzido à metade do que eram em 2000) sem que o medo sofra uma redução semelhante. Como podemos afirmar que o medo permanece alto? Várias pesquisas de opinião conduzidas com a população revelam que a violência continua sendo um dos principais problemas para a população de São Paulo, a indústria da segurança privada continua a crescer acima do crescimento da economia, e os prêmios de seguro por bens de consumo duradouro e propriedade continuam elevados.

Mas isso não basta para dizer que o medo continua alto, não fora o fato de que o Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV) realiza pesquisas na cidade de São Paulo, para monitorar os efeitos do contato com a violência sobre uma série de fatores, há nove anos coletando dados especificamente sobre o medo e sobre as providências adotadas pela população para reduzir sua insegurança. Esses dados demonstram que, ao longo desse período, o medo não desapareceu. Não só a população continua a ter medo como até cresce sua disposição a pagar por itens de segurança privada: monitoramento eletrônico, vigilância eletrônica, serviços de escolta, blindagem de veículos, uso de helicópteros, moradias em condomínios (horizontais e verticais) que utilizam a segurança como principal atrativo e prêmios de seguros.

Qual o tamanho do medo e o que explica sua não-redução, na medida em que caem os números dos homicídios? Nossas pesquisas revelam que, entre 2001 e 2006, de 1/5 a 1/3 da população da cidade de São Paulo não se sentiu segura para andar, durante o dia, por ruas de seu bairro. Os dados mostram ainda que cerca de 10% da população não sai à noite por medo, sendo que o percentual máximo de pessoas que declarou "sentir-se muito segura" para sair à noite foi 6%.

A insegurança ao sair à noite afetava a maioria dos moradores da cidade (51%), mas esse percentual já fora maior, havia atingido 60% em 2003. Nossos dados surpreendem porque o medo é disseminado: é sentido por jovens, jovens adultos, adultos e pessoas acima dos 60 anos, por homens e mulheres, moradores de áreas de alta renda, de renda média e de baixa renda. Parece ser universal e é maior quando há mais experiência com vitimização violenta, isto é, quanto mais as pessoas são vítimas de delitos violentos, em particular roubo à mão armada, maior é o medo que fica como seqüela da experiência. Deve-se lembrar que as pessoas são vítimas não só quando são o alvo da agressão ou do delito, mas também quando os assistem, ou ainda quando as vítimas são seus parentes próximos. Vale lembrar que esse estudo do NEV tem demonstrado que é alto o número de pessoas vítimas "alguma vez na vida" de roubo com o uso de uma arma de fogo: 1 em cada 4 pessoas da cidade já teve essa experiência na vida.

Se os efeitos do contato com a violência não desaparecem com a queda nos registros dos homicídios, isso se deverá à combinação de fatos: nem todos os delitos considerados graves pela população diminuem; há um efeito acumulado de experiências negativas que não são facilmente apagadas da memória das pessoas; isso se soma a condições ambientais que estimulam o medo, tais como: o abandono de certas regiões da cidade, consumo e venda de drogas e álcool em vias públicas, iluminação pública deficiente, prédios abandonados, veículos abandonados em vias públicas etc. Todos são sinais da ausência de um poder público que aplique as leis e que favorecem a manutenção do medo. Assim, o medo não é conseqüência só da experiência de ter sido vítima da violência, mas também da presença nos locais por onde há indícios de desordem e abandono.

O medo, combinado com a sensação de ausência de um poder público capaz de prover segurança coletiva e com a impotência dos cidadãos para exercer controle sobre as autoridades, estimula a adoção de estratégias individuais para diminuir o risco percebido de serem vítimas da violência ou pior, de que seus parentes próximos o sejam.
As pessoas adotam estratégias de sobrevivência cônscias de que estas não substituem o papel do Estado. A abrangência e a diversidade das medidas variam de acordo com o poder aquisitivo. As mais freqüentes se referem a mudanças de rotinas: evitar sair à noite, mudar o trajeto de casa para trabalho ou escola, deixar de usar linha de ônibus, ou evitar andar com dinheiro. Outras freqüentes se referem a aumentar a segurança da moradia: subir muros, colocar grades nas janelas, arrumar um cão de guarda (haja vista a proliferação de cães ferozes pit bulls, rottweillers e outros não devidamente treinados e mantidos nas periferias dos centros urbanos ocasionando os acidentes fatais que daí decorrem) ou colocar cadeados em portões. Outras medidas, que exigem maiores investimentos, como a instalação de alarmes, porteiros eletrônicos e vigilância eletrônica são adotadas por menos de 10% da população, porém observamos que, à medida que caem os preços, vem crescendo a adoção desses equipamentos em toda a cidade, inclusive nos bairros de menor renda. O distanciamento de vizinhos, evitando conversas entre si, ou que seus filhos brinquem uns com os outros, ocorre com menor freqüência. O aspecto da vida social que parece ser mais afetado é aquele entre pessoas que não se conhecem: se ao menos 20% da população não se sente segura para caminhar por ruas do seu bairro, durante o dia, pode-se inferir que dificilmente haverá oportunidade para que pessoas do bairro se conheçam. Quando a população evita as ruas, elas ficam vazias, o que aumenta a oportunidade para que ocorram delitos. Não é só a possibilidade de contato entre vizinhos mais distantes que é afetada, a saúde física das pessoas sofrerá, como testemunham vários estudos que comprovam que o medo da violência impede que crianças, jovens e idosos usem espaços públicos para exercícios físicos, sendo isso considerado como um dos fatores responsáveis pelo crescimento da obesidade infantil e juvenil.

Se o medo não parece afetar a relação entre vizinhos próximos, mas reduz as oportunidades de contato entre moradores de um bairro, ele também afeta a percepção de civilidade: quanto maior o medo, maior a tendência por parte das pessoas de identificarem, dentro de seus bairros, comportamentos incivis: lixo jogado em áreas públicas, brigas em locais públicos, uso de linguagem ofensiva entre pessoas em vias públicas etc. Mais grave ainda é o fato de que, nessas condições, há menor percepção de disposição dos moradores de agirem em defesa da comunidade ou de grupos mais frágeis dentro da comunidade, como crianças e idosos. Isso é o que o estudo do NEV vem demonstrando: maior o medo, menor a disposição para ação coletiva em defesa da comunidade e menor a sensação de que as pessoas fazem parte de uma comunidade. Se o bairro é apenas um lugar para morar, sem vínculos afetivos, haverá pouca disposição para agir em sua defesa. Assim, o círculo vicioso é mantido: com medo, as pessoas se retraem e continuam a buscar estratégias individuais de proteção, ainda que saibam que estas não serão suficientes para lhes devolver a tranqüilidade que tanto anseiam. O que reduz o medo é a sensação de que a comunidade detém o poder de exercer controle social, e esta exige, por sua vez, diálogo com os encarregados de aplicar as leis e com a administração local, para que aquelas condições que reforçam o medo dentro da comunidade sejam reduzidas.

"Para os governantes, um dos grandes desafios que o medo da violência apresenta é que, uma vez instalado em uma sociedade, este não desaparece com a simples melhora das estatísticas oficiais".

Nancy Cardia é coordenadora adjunta do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP)

Apesar de estarmos nos referindo aos medos urbanos, devemos ter em mente que hoje em dia esses medos não são um fenômeno exclusivo dos grandes centros urbanos, afetando também moradores de cidades de médio e pequeno porte e até mesmo moradores de áreas urbanas localizadas nas proximidades de grandes regiões metropolitanas.
* * * * * * * * * * * * * * * *

"Cultura do medo e juventude: uma análise do Brasil atual"
por Mauro Guilherme Pinheiro Koury
*
O medo do outro no Brasil atual parece enclausurar a pessoa, sobretudo de classe média, que tem dificuldades de relacionamento e sentimento de solidão amplificado, provocando uma sensação nostálgica do que passou, de um tempo que não volta mais, em que os vizinhos se comunicavam entre si, havia mais cordialidade e menos agressividade.O entorno das moradias vem se tornando, real ou imaginariamente, ameaçador; os habitantes mais pobres da cidade são evitados e objetificados por meio de uma ótica perversa, construída pela cultura do medo, como 'marginais', como delinqüentes. O sentido da violência torna-se, desse modo, endêmico, banalizando a vida e tornando o ato de viver um instrumento de segurança pessoal e privada. De forma simultânea, as mortes violentas e as chacinas começam a se tornar toleráveis, e não provocam mais indignação e são até mesmo desejadas como forma de diminuição das ameaças pessoais.

De acordo com uma pesquisa recente realizada pelo Sebrae, 63% dos entrevistados nas capitais e regiões metropolitanas brasileiras, com idade entre 15 e 24 anos, demonstraram preocupação com a violência e com a falta de segurança no país (Jornal do Comércio, 21/02/2008), o que parece sinalizar para uma descrença nas políticas públicas nacionais e para um receio pessoal crescente de freqüentar espaços públicos, ou mesmo de aproximar-se de outros cidadãos, principalmente de jovens como eles próprios. Embora reforcem o medo nos indivíduos jovens de classes mais baixas, o receio estende-se a todos os jovens de camada social igual ou mesmo superior.

A cultura do medo parece vir construindo uma barreira invisível que separa e isola as pessoas, e as faz temer tudo e todos, deixando de confiar no outro. Entre os jovens, esse embaraço ganha contornos mais nítidos, pois está associado a um distanciamento maior e cada vez mais alongado do poder de consumo, que vai desde o tempo e a qualidade da educação formal, à questão da inserção no mercado de trabalho precoce e cada vez mais difícil, até a aquisição de objetos de moda, o que amplia a distância entre classes, com a exclusão e banalização dos miseráveis, ao mesmo tempo em que, também, demanda um estranhamento geral, já que jovens de classe média baixa e, às vezes, alta são cada vez mais apontados como executores de atos de delinqüência juvenil.

Atos que se estendem da participação em roubos e furtos, espancamentos de outros jovens, envolvimento com drogas, não apenas como consumidores, mas também como integrantes do tráfico (Folha de S.Paulo, 12 de novembro de 2007), à prática do estupro, seqüestro e morte.Várias reportagens na mídia nacional dão destaque a grupos de jovens de classe média alta envolvidos em espancamentos e lutas corporais, por motivos banais, em todas as capitais dos estados brasileiros. Desde tocar fogo em um índio que se encontrava dormindo em um ponto de ônibus na cidade de Brasília, ou espancar mendigos nas ruas, como tem acontecido nas cidades de Recife e do Rio de Janeiro, até espancamentos de outros jovens por rixa de grupos rivais, ou porque estavam com a ex-namorada de um outro, ou porque um dos participantes de um grupo achou que houve insinuações para outro dos membros do seu grupo – do sexo masculino e, sobretudo, do feminino – por um ou mais dos membros do grupo oposto, e envolvimento com estupros e com drogas, entre outros casos, são fatos de destaque na mídia nacional, desde os anos finais do século 20. Isso quase sempre causa comoções e alarme por parte das famílias brasileiras, pelo receio do que possa acontecer a um dos seus filhos na saída inocente para uma festa, um bar ou boate e, sobretudo, pela impunidade dos jovens causadores desses atos. Impunidade, na maior parte das vezes, ocasionada pela morosidade da Justiça ou, o que é muito mais grave, pela importância econômica ou social dos pais dos participantes.

A cultura do medo faz as famílias dos jovens desconfiarem de todos os colegas dos seus filhos, mesmo os de famílias conhecidas, pois, como confidenciaram mais de um casal de pais de adolescentes e adultos jovens em entrevista ao autor, "nunca se sabe, na verdade, quem é que está com o nosso filho", ou, "às vezes é filho de um conhecido de muito tempo, mas que se revela um pequeno delinqüente, podendo estar envolvido com drogas ou com coisa pior", "até meu filho chegar em casa eu não descanso, pois não sei até onde vai o espírito dos coleguinhas dele", "será que ele vai ser assaltado por um marginal na rua", "será que vai se envolver com brigas puxado por outros", "vai ser objeto de chantagem de policiais em busca de dinheiro fácil", "será que vai ser vítima de estupro", entre outras indagações e medos imaginários e possíveis, tendo em vista a construção cotidiana da mídia sobre a fragmentação social e sobre a exposição dos jovens a um mundo de maldades e sem lei. Como exemplos, citam-se casos expostos cotidianamente na mídia de adolescentes e jovens vítimas de assaltos, estupros, intimidações várias por outros jovens "de rua", como são considerados no geral os jovens pobres que freqüentam a cidade, ou por gangues de jovens, na maior parte – no pensamento mágico, influenciado pela mídia, que expande a cultura do medo no país –, composta por jovens marginais ligados ao tráfico de drogas ou ao desmanche de carros. Citam-se, também, as relações intraclasse nas disputas entre jovens pobres intimidando os que querem seguir o "caminho do bem", ou grupos de jovens pobres na disputa de espaços nos bairros e ruas onde moram, ou entre jovens mais ricos e mais pobres de classe média e média alta como relações perigosas. Os de classe média e média baixa têm medo das relações travadas com outros jovens de classe média alta, pelo uso do poder e impunidade desses últimos. Lembram notícias publicadas em jornais e na mídia em geral de jovens espancados por outros, envolvidos em disputa de espaço ou de namoradas, sendo os espancadores todos de classe média mais alta, ou no caso de estupros e mortes de adolescentes patrocinados por grupos de jovens de classe média alta e alta, e a impunidade que cerca esses crimes, por causa do poder político ou econômico dos pais.Os pais de classe média alta ou alta, por sua vez, se dizem com receio das amizades dos filhos com colegas de escola e universidade, muitas vezes autores de seqüestros ou mortes dos amigos, se não de toda a família da vítima. Por motivo de "querer um dinheiro mais fácil" para comprar tal ou qual objeto de consumo da moda, assim, esses jovens de classe média mais baixa, segundo os pais das vítimas e, sobretudo, pelas notícias veiculadas pela mídia, "aproveitavam do fato de serem amigos dos de classe mais alta" e os faziam de vítimas para alcançarem os seus objetivos. Citam, como forma de comprovar seus medos, notícias veiculadas na mídia nacional sobre jovens seqüestrados ou mortos por outros jovens, que freqüentavam a mesma universidade ou classe escolar e eram amigos de saídas para estudo ou lazer e freqüentavam a casa um do outro, quando não o assassinato de todos os familiares dos jovens das casas que freqüentavam, por motivos banais, ou para roubar aparelhos eletrônicos, ou por simples inveja, ou a influência nefasta de namorados que, por vingança dos pais que não permitem o namoro, induzem o parceiro ou a parceira a matar os pais.Ao mesmo tempo, a violência, de forma concomitante e simultânea, parece ter se tornado banal e até democrática na contemporaneidade brasileira. A violência e o seu corolário, o medo da violência, parecem funcionar, desse modo, como meio de expressão e estilo de vida, especialmente entre os jovens.

A violência e os atos violentos ocupam o espaço deixado pela fragmentação dos valores sociais mais pessoalizados em uma sociedade de mudanças profundas nas esferas comportamentais e caminhando para um individualismo "selvagem" como modo de vida, já que as devidas regras sociais do novo momento da sociabilidade brasileira não se encontram de todo claras, nem sequer esboçadas. Os valores que criam a identidade do indivíduo, dessa forma, pulverizados e questionados no seu potencial de pertença, parecem colocar-se no social de forma frágil e transitória, ampliando a solidão dos sujeitos e amplificando o imaginário social do outro como concorrente, como inimigo ou estranho, contribuindo para os contornos sociais de onde se visibilizam as interações entre indivíduos para esse novo caráter da violência expressa de diferentes maneiras pela mídia e que parece conformar o imaginário dos cidadãos, o que parece gerar nos jovens e adultos uma enorme obsessão pelo medo, entre outros atributos, usados pela cultura do medo como um sustentáculo e ampliação da indústria que a mantém.

Desse modo, todos os jovens tornam-se sob suspeição. Os mais pobres, comumente, são os considerados marginais ou bandidos pelo simples fato de serem pobres. O que equivale à visibilidade concreta da barreira social que está presente de modo claro, separando os que têm algum acesso aos benefícios sociais, culturais e econômicos de um cidadão e os que simplesmente ousam existir (a maioria da população). Os demais das classes médias (baixa, média e alta e suas variações em torno de cada faixa) e da classe alta são suspeitos uns em relação aos outros, provocando um medo generalizado sobre as ações possíveis que envolvam cada jovem em particular como vítima ou autor de um ato de maldade.Digo maldade porque a cultura do medo termina por levantar uma discussão geral e presente no imaginário do brasileiro médio, da relação entre o bem e o mal intrínseco, na qual o bem é sempre visto do lado do seu ou meu jovem e o mal em relação aos outros jovens em geral. Relação imaginária que provoca a suspeição de todos como universo de precaução pessoal.

“A cultura do medo parece vir construindo uma barreira invisível que separa e isola as pessoas, e as faz temer tudo e todos, deixando de confiar no outro”.

Mauro Guilherme Pinheiro Koury é coordenador do GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba.

[Artigos publicados na Revista E (SESC-SP). Nº134 - Julho de 2008]

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

O GREM recebe novas revistas acadêmicas

*
Revista de la Escuela de Antropología. v. XIII, agosto de 2007.
A Revista é uma publicação da Escuela de Antropología da Universidad Nacional de Rosario Argentina. ISBN: 978-950-673-629-3.
*
Espacio Abierto. Cuaderno Venezolano de Sociología. v. 17, n. 1, enero-marzo 2008 e v. 17, n. 2, abril-junio 2008. ISSN: 1315-0006.
A Revista é uma publicação da Escuela de Sociología da Universidad del Zulia, Maracaibo, Venezuela. Destaque deve ser dado para o n. 2, inteiramente dedicado à Sociologia do Corpo e das Emoções.

*

domingo, 8 de fevereiro de 2009

Resenhas publicadas na Revista The European Legacy, ISSN 1084-8770, Online ISSN: 1470-1316

*
City of Quarters:
Urban Villages in the Contemporary City.
By David Bell and Mark Jayne (Aldershot, UK: Ashgate, 2004), XIII - 287 pp.
*
By Mauro Guilherme Pinheiro Koury
*
City of Quarters is strongly influenced by contemporary urban and cultural studies in anthropology and geography. It explores the growing presence of distinct social and spatial areas in cities throughout the world, urban villages, cultural and ethnic quarters. These spaces are sites where capital and culture intertwine in new ways. The study addresses the economic, political, socio-spatial and cultural practices and processes that surround these urban spaces and the role of urban villages in contemporary cities.

The book is divided into four parts that highlight the ways in which the production and consumption cultures, lifestyles, identities and forms of sociability found in specific urban villages are discursively and differentially constructed.

Part 1, ‘‘Urban Regeneration,’’ presents essays that address how cultural quarters have been utilized as motors of economic and physical regeneration: George Waitt on the Newest Chic Quarter of Sydney, Malcolm Miles on El Raval, Barcelona, and James DeFilippis on Lower Manhattan. Part 2, ‘‘Production and Consumption,’’ looks at the interface of production and consumption in urban quarters as cities try to compete in a post-industrial urban hierarchy characterized by intense competition: Graeme Evans addresses the contemporary form of the post-industrial cultural quarter; Tom Fleming examines the role of the state in supporting or developing creative and cultural quarters; Abigail Gilmore focuses on popular music and urban regeneration; and Stephanie Rains discusses the process of quarterization in a case study on Dublin.

Part 3, ‘‘Identities, Lifestyles and Forms of Sociability,’’ examines the conflict that surrounds urban space and focuses on the relationship between identity, lifestyles and forms of sociability, and the construction and experience of urban villages. Jim Shorthose’s essay presents a case study of a cultural quarter, the Lace Market in Nottingham, England; Jon Binnie’s essay is on gay villages and sexual citizenship in Britain; and, finally, Wun Chan’s essay addresses the question of ethnocentrism in relation to urban planning.

Part 4, ‘‘Rethinking Neighbourhoods / Rethinking Quarters,’’ examines marginalized neighbourhoods and offers an alternative approach to planning for urban living. Chris Murray examines the problem of neighbourhoods in the transformation of urban villages to cultural hubs. Maggie O’Neill and others reflect on a particular phenomenon of the urban red-light districts in Walssall, Britain. Phil Denning, in turn, investigates regeneration initiatives in former industrial neighbourhoods in Scotland, Germany and Hungary. Finally, Franco Bianchine and Lia Ghilardi’s essay examines the European perspective on the culture of neighbourhoods and offers an alternative agenda for their development.

The concluding chapter, ‘‘Afterword: Thinking in Quarters,’’ summarizes the main aspects discussed in the book. David Bell and Mark Jayne reflect on the process of entrepreneurial urban governance and the rise of the symbolic economy of cities.

City of Quarters offers a comprehensive view of the subject and will interest researchers in urban studies, anthropology, sociology, architecture, urbanism, geography and other related sciences.
*
[Publicado na revista The European Legacy, Vol. 11, No. 3, pp. 349–350, 2006]
Pierre Bourdieu: Agent Provocateur.
By Michael Grenfell (London: Continuum, 2004), VIII + 214 pp. ISBN: 0826467083
*
By Mauro Guilherme Pinheiro Koury
*
In Pierre Bourdieu: Agent Provocateur, Michael Grenfell, a recognized authority on the subject, examines the work and the life of the recently deceased French sociologist. As suggested by the subtitle, Agent Provocateur, Grenfell affirms that Bourdieu’s work stirs men to action.
The book is divided into three parts. The first presents a brief biography of Bourdieu and examines his main theoretical concepts.

The second offers a deep analysis of Bourdieu’s attitude to the Algerian Crisis, presents Bourdieu’s views on education as the training field of the state, and discusses the relationship between his conceptions of the aesthetic and the media with those of culture and society.

The third part is devoted to Bourdieu’s political views, and calls attention to his book published in 1993, La Misere du Monde, on the poverty of experience of common citizens based on a series of ‘‘eyewitness’’ accounts.

This section still focuses on the militant side of Bourdieu, emphasizing his critique of capitalism and his opposition to the military actions of the West in Iraq, Yugoslavia, and Afghanistan.

This book offers a coherent and valuable reading of Bourdieu’s work, addressing the key questions of the social and political world, the links and alliances of present day society. Grenfell discusses the implications of Bourdieu’s work, evaluating the use and continuity of his ideas for the twenty-first century.

Pierre Bourdieu: Agent Provocateur presents a comprehensive picture of Pierre Bourdieu — as man, militant and intellectual. Without doubt, this work is of incalculable value for students, researchers and scholars working on social theory.
*
[Publicado na revista The European Legacy, Vol. 11, No. 4, pp. 457–458, 2006]
*
Le pouvoir de l’identite´: L’ère de l’information.
By Manuel Castells (Paris: Fayard, 1999), 538 pp. E30.35 cloth.

Book Review by Mauro Guilherme Pinheiro Koury



Le pouvoir de l’identité is devoted to the comprehension of the political world, viewed at the end of the millennium, with the advent of corporate networks on the one hand, and the assertion of identities, on the other. For Manuel Castells, three independent processes begin at the end of the 1960s which together with principles of the 1970s converge in creating a new world. These processes are: (1) the revolution of information technologies; (2) the economic crisis of capitalism and the subsequent reorganization of state agencies; (3) the emergence of numerous social and cultural movements—including, among others, feminism, environmentalism, human rights, and sexual freedoms.
The first process, the revolution of information technologies, remodels society by defining information as the material base of a new society. Its significance is equal if not greater than the changes brought about by the Industrial Revolution. Information technologies become the indispensable tools in the generation of wealth, in the exercise of power, and in the creation of new cultural codes. These technologies acquire particular importance as emerging networks, which replace old forms of social organization, becoming the predominant form of organization of human activities, transforming all aspects of social and economic life.
The second process, the crisis of capitalism and the state, gradually transformed economic life from the mid-1970s. The state apparatus was shown to be incapable of sustaining the transition to the Age of Information, while, in the capitalist economies, firms and governments adopted measures and politicies that led to a new form of capitalism. This form is characterized by the globalization of economic activities and by greater organizational flexibility, to facilitate the relations of management and workers. In this new form of capitalism, informational capitalism has prevailed. The basic consequence of this process is that, for the first time in history, the world is organized on a set of common economic rules. Capitalism has been found to be more flexible than any one of its predecessors: in adopting the new information technologies it has become fixed in the culture and is driven by the new technology.
However, Castells affirms: ‘‘A technology does not determine societies.’’ Multiple factors intervene in the configuration of any given society at each stage of its history.
Thus, the third process, the cultural process, centered on the powerful movements that rose in 1968 in their confrontation with society, reacting in various forms to the arbitrary use of authority. In essence, they were cultural rather than political movements: what they wanted was to change life and not to assume political power. It is this that explains why they were not defeated. In their fight, they questioned the bases of society and rejected established values. However, these social movements were in principle cultural and independent of economic and technological transformations. Their libertarian spirit influenced, to a considerable degree, the change toward a more individual and decentralized use of technology. Their advocacy of an open culture stimulated experimentation, with its manipulation of symbols, and their cosmopolitanism established the intellectual bases for a culturally interdependent world.
The interaction of these three parallel processes, in the last decades of the twentieth century, redefined the relations of production, the individual, and the social, and culminated in the creation of a new society. This society is characterized by a new dominant social structure dependent on the network; by a new economy, the global informational economy; and by a new culture, the culture of real potentiality. However, in the network society it is not knowledge and information that is the defining feature, for, knowledge and information have always been central elements in all forms of society. What is new is the information technologies with which we deal, centered on communication, based on microelectronics and genetic engineering. It is these that are transforming the social fabric of life, giving rise to new forms of organization and social interaction.
According to Castells, then, we have entered a new scientific paradigm, as described by Thomas Kuhn, that is, a space that induces a standard of discontinuity in the material bases of the economy, of society, and of culture. The main characteristics of our information–technological paradigm are: (1) information is the basic raw material; (2) information processing is present in all fields of our eco-social system, which thus transforms it; (3) the logic of networks, adapted to the increasing complexity of interactions and to unexpected developments; (4) flexibility, understood as the capacity of constant reconfiguration without destroying existing organization; (5) the convergence of specific technologies in a highly integrated system. For the first time in history, Castells says, the human mind is a direct productive force and not only a decisive element in a system of production.
In this kind of paradigm, a new culture emerges, in which human expression and creativity are standardized in a global electronic hypertext that substantially modifies the social forms of space and time. This hypertext electronic world, synthesized for the Internet, becomes the landmark of common reference for symbolic processing of all sources and all messages. Potentiality is our reality, affirms Castells, because we live in a world in which reality (the material and symbolic existence of people) is totally immersed in an environment of virtual images. In this environment, the dominant values and interests are constructed without reference to the past or to the future, but in the atemporal landscape of computer networks and electronic media.
These interactive information networks are the components of our social structure and the agents of social transformation. They define the social morphology of our societies. With the development of information technologies, flexibility can be reached without sacrificing performance; and because of their superior performance capabilities, the networks gradually eliminate, in each specific area of activity, the hierarchical and centered forms of organization.
Even networks that are based on alternative values share the same morphology. Thus, social conflicts also depend on networks. The networks try to retrace other networks, inscribing new codes and new values so as to organize the performance of opposing networks. The main objective in the age of information is to redefine cultural codes, which reside, ultimately, in the human mind. The mind has thus become the main center of power.
Social change in the network society is highly complex, because networks have the capacity to absorb new developments or to neutralize them. Change can either come through the negation of the logic of networks or through the affirmation of values that cannot be processed by the network alone. That is, by developing alternative networks with alternative projects that goes beyond its specific auto-definition. In this context, because political parties seem to have lost their potential as independent agents of social change, it is the potential citizens of the Age of Information who become social movements, and it is they who will produce alternative cultural codes.
However, social movements must develop across infinite social distances, across the metanetworks of international financial systems, the global flows of wealth, power and images, as well as across enormous numbers of people and activities. Globalization is a great web connecting everything to the instrumental needs of the market and, at the same time, disconnecting everything that is not instrumental to the market. In this scene, people tend to regroup around primary identities (religious, ethnic, territorial, national), to search for personal security and for possibilities of (re)organizing their lives.
Thus appears the bipolar opposition between the Network and Being and, in manifesting their primary identities, people start opposing the network society. The enormous drive to affirm and articulate specific identities gives rise to social movements, especially of those who feel excluded by the existing system. Castells affirms that the rising tide of religious fundamentalism from the mid-1990s was therefore not accidental. It seems logical to exclude the agents of exclusion. ‘‘When the Networks disconnect from Being, individual or collective Being constructs its meaning outside the global instrumental frame of reference: the disconnection process becomes reciprocal, with the excluded rejecting the unilateral logic of structural domination and social exclusion’’.
*

[Publicado na revista: The European Legacy, Vol. 10, No. 7, pp. 759–761, 2005]
*