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segunda-feira, 25 de maio de 2009

15 anos do GREM - Projeto MEMÓRIA DO GREM

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Dando continuidade as comemorações dos 15 anos do GREM, é publicado neste Blog a Apresentação ao livro de fotografias de Roberto Coura sobre a feira de Campina Grande, Paraíba, publicado em 2007. A referência completa do livro encontra-se no final desta Apresentação.
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A fotografia no cotidiano de relações sociais de um dia de feira

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury

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Entre as diversas possibilidades novas trazidas pela fotografia se encontra, sem dúvida, a do encantamento. O cotidiano parece ser repassado à eternidade através de flashes, de recortes através das lentes do fotógrafo, deixando um registro misto. Uma espécie de anotação de algo que aconteceu, como diria Barthes (1980), mas também de um olhar que busca captar o comum, mas que revela flagrantes que o ultrapassam e dão um novo sentido estético, artístico e social ao que não se vê fora das fotografias, porque, talvez, tão presente nas relações apressadas que a cotidianidade permite e expande a quem a freqüenta, encantando com o seu produto final revelado o olhar que observa.
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É nesse campo de possibilidades que o encantamento permite que o conjunto fotográfico sobre a Feira de Campina Grande pelas lentes de Roberto Coura entra em cena. Nele a Feira de Campina Grande é enaltecida e revelada em todo o seu esplendor cotidiano. A feira passa a ser fragmentada pelo olhar de Coura em magníficas representações de tipos humanos que dão colorido ao movimento do lugar: passantes, feirantes, clientes, vendedores, carregadores, barbeiros, prostitutas, pedintes, crianças, homens e mulheres, velhos e moços em atividade, em posição de espera, no posto de observantes em devaneio ao ato da paisagem ou da cena em torno, ou em pose de descanso e de entrega.
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Os olhos de Coura, atento às fisionomias, registra socialidades como máscaras de temporalidades que parecem impregnar os corpos de homens e mulheres com suas figuras, tipos, expressões, rugas, modos, posturas, comportamentos, formas de ação e organização. Faz uma espécie de inventário sobre as possibilidades do humano e das técnicas corporais nele socialmente incrustadas (MAUSS, 1974), com as marcas do tempo e dos hábitos que os caracterizam em um espaço social. Com a docilidade ou com a firmeza do olhar, ou na imponência de presença no mundo do seu lugar de origem, que é o espaço da feira, onde se movimentam e trafegam com naturalidade. Ponto de encontro e desencontro, de venda e compra, de oferenda e recebimento, de oferta e procura, de treinamento e socialidade, a feira é documentada pela sociabilidade que a informa e das formas de reciprocidade produzidas dos e pelos tipos humanos nela presentes.
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O fotógrafo Coura quebra o cotidiano com a sua câmera, invade o mundo do comum onde tudo parece ser visto e naturalizado e tonifica o espaço pela fragmentação do lugar, dando ambivalência ao olhar que posa, propositadamente ou de forma espontânea, e ao olhar que registra e documenta. Um e outro, olhar fotográfico e olhar dos que se deixam fotografar parecem tornar-se ambíguos na fotografia revelada (BURGIN, 1982). O olhar que observa, assim, é remetido ao encantamento que a ambivalência fotográfica permite, não se sabendo qual é real no instantâneo produzido pela interação entre fotógrafo e fotografados, através da máquina de fotografia.
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Ambivalência e ambigüidade reforçadas ainda, é claro, pela autonomia da foto revelada frente aos processos anteriores que possibilitaram o registro e os posteriores que a editaram. Depois de revelada e vinda a público, com sua beleza de fotografia única ou na sua expressão conjunta de ensaio fotográfico também sempre único, - como este magnifico presente ao público sobre a Feira de Campina, - com sua realidade de foto, passa a ser novamente objeto de novas realidades, posta à espera dos olhares públicos ou dos que a observaram, observam e observarão.
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Mais uma vez alterando a representação eternizada no documento fotografia e provocando no observador atento para novas possibilidades imaginárias de real. O que parece objetivar na objetividade da foto um multifacetado campo de possibilidades, de acordo com a experiência de cada um que as vê e de cada reflexão produzida pelos que a discutem.
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Consciente dos diversos jogos possibilitados pela ambivalência e pela ambigüidade do registro fotográfico Coura introduz como um amante, com segurança e sensibilidade, a máquina no cotidiano de relações sociais de um dia de feira. Provoca, seduz, produz, e é provocado, seduzido e produzido pela sua produção, e neste embate amoroso com a câmera individualiza tipos e atitudes, individualiza formas e propostas de organização e uso presentes em um dia de feira autonomizando-os.
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Os tipos e as atitudes, as formas e propostas de organização e uso na cotidianidade da feira também se deixam revelar pela introdução da câmera, produzindo uma mistura de novidade e, ao mesmo tempo, de situação acontecida, porque o documento fotografia não é mais o cotidiano fotografado mas o cotidiano fotografado pelo olhar de Coura fotógrafo, registrando poses e olhares em pose, disposições e usos de espaços e temporalidades, também fora da normalidade cotidiana da ação no comum diário, porque ao posarem ou deixarem ser fotografados os olhares e os objetos dos que são submetidos ao olhar do fotógrafo também deixam a cotidianidade em que parecem estar imersos e passam também a representarem atitudes para a máquina.
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Atitudes, gestos, jogos de corpos, disposições e sentidos quase oferendas à máquina fotográfica, ou totalmente oferecidos aos olhos de Coura, no prazer da entrega amorosa ou sapeca que a troca permite. As adultos e as crianças de Coura são ontológicas desta entrega, tanto quanto a prostituta no ato ilimitado da entrega, no prazer supremo de se mostrar aos olhos da máquina, ou aos olhos com a máquina de Coura, revelando seu corpo nu, seu prazer escancarado na face em expressão absoluta da novidade de ser possuída por uma máquina de eternização da relação estabelecida na entrega a Coura fotógrafo, que é a câmera.
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A fotografia de Coura constrói então uma realidade nova a partir do registro de situações quaisquer escolhidas pela relação entre o olhar do fotógrafo e os elementos registrados, humanos ou não. O real fotográfico parece tornar-se, assim, um real produzido. Um produto de várias interconexões e relações entre o olhar que registra, o olhar que se deixa registrar e o produto do registro que ganha autonomia e se encontra entre alguma coisa próxima entre os dois olhares iniciais (KOURY, 1998).
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Fora, é claro, os demais olhares que submetem este real fotográfico antes de sua realidade de foto revelada. Antes de sua objetificação apresentada ao público, como o olhar da edição das fotos que deixam para trás cenas que não interessam, por problemas técnicos, por repetição, por questões de luminosidade em excesso ou em falta, ou por simples escolha, ou ainda que recortam a cena documentada para dar mais realce ao que se quer mostrar.
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Os tipos humanos na Feira de Campina Grande de Roberto Coura, deste modo, são disponibilizados aos olhares do público para observação em sua inalterabilidade de fotografia e consciente das forças que as reconstroem como fotografias. Como realidades postas ao olhar observador, mas sempre em relação ao espaço e ao tempo que serviram para a sua produção.
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Homens, mulheres, velhos, novos e crianças são flagrados em ação, que os imobilizam em instantâneos na interface da cena em que se situam no momento do flagrante, dispondo aos olhos da máquina, sob o olhar de Coura, os espaços, os tempos e os ritmos da feira, objeto da produção e encantamento fotográfico disposto no ensaio: a diversidade de produtos: verduras, legumes, cereais, carnes, utensílios domésticos, cestarias, cerâmicas, vestuário, flores, alimentação, fumos, serviços, entre tantos mais; a distribuição de barracas, as formas de ocupação e uso de cada uma no jogo entre passantes, vendedores e possíveis compradores; o acompanhar do ritmo e das temporalidades da feira, desde a instalação até o final do dia com flashes memoráveis dos momentos dispostos e dos movimentos ritmados propensos a cada horário e atividade, são apresentados aos olhos que vêem na sua organização tumultuada do agito local. De um lugar de compra e venda e, ao mesmo tempo, de troca de afetos, de conversas, de procuras e de encontros e desencontros.
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O ensaio fotográfico sobre a Feira de Campina Grande de Roberto Coura mais do que um registro documental sobre o processo social de uma feira famosa na região provoca. Estimula o observador a mergulhar com ele no universo multifacetado captado na realidade cotidiana de um centro popular de abastecimento e compras, o decompondo na fragmentação deste universo em flagrantes e instantâneos de uma realidade fotográfica e o recompondo como ensaio de olhar, disponibilizado aos demais olhares públicos na viagem inaugurada e que requer novas transformações, redefinições e montagens pelos olhos que nele e com ele navegarão.
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O mundo de imagens registrado neste livro-ensaio de Coura, assim, é um mundo de sensações de um fotógrafo engajado com a vida, e com a arte. Um aprendizado para os olhos atentos da arte de fotografar de um fotógrafo amante do que faz.
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Referências
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BARTHES, Roland. La Chambre Claire. Paris, Gallimard, 1980
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BURGIN, Victor, Editor. Thinking Photography. London, The Macmillan Press, 1982
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KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. “Relações Imaginárias: A Fotografia e o Real”. In, L. E. R. Achutti, 0rg. Ensaios sobre o Fotográfico. Porto Alegre, Unidade Editorial, 1998, pp. 72 a 79.
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MAUSS, Marcel. “As Técnicas Corporais”. In, Marcel Mauss, Sociologia e Antropologia, v. II, São Paulo, EPU/EDUSP, 1974, pp. 209 a 234.
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Esta Apresentação se encontra no livro de COURA, Roberto. A Feira de Campina Grande. Campina Grande. Campina Grande, Editora Universitária UFCG, 2007. ISBN 85-89674-05-3.
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