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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Por que as sociedades criam e conservam rituais envolvendo seus mortos?

Mauro Guilherme Pinheiro Koury
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Por que as sociedades criam e conservam rituais envolvendo os seus mortos? Em geral, qual a função desses rituais para as mesmas? Estas são questões que perpassam a mente da maioria das pessoas, preocupadas com a questão sobre a vida e a morte e, principalmente, do processo de passagem entre vida e morte, individualmente e socialmente.

Em uma abordagem antropológica, é possível verificar que o ritual de passagem simbolizado pelo ritual mortuário toca questões fundamentais para a compreensão da relação indivíduo, sociedade e natureza. O rito de passagem mortuário discute a continuidade do social e o novo equilíbrio societário entre as forças da natureza e da sociedade, a partir de uma morte singular, individual. Todo processo ritual funerário e do luto a ele relacionado prevê e dá importância aos processos de reintegração do social consigo mesmo, e dos indivíduos envolvidos pela morte, seja este sujeito o próprio morto, - para onde se busca uma reintegração do social pelas barreiras impostas a ele, e aos novos significados sociais também a ele atribuídos, - seja as que ficam e lamentam a perda.

O ritual dos mortos é uma prática social que tem como função, entre outras, a de dominar e integrar a morte no interior de uma sociabilidade dada. A morte passa a ser social, através dos rituais impostos a ela. Em sociedades onde o espírito de coletividade era mais evidenciado, a morte trazia em evidência um corpo individualizado daquele que morreu criando uma espécie de tensão entre a composição biológica do sujeito e a composição social do mesmo, deixando as sociabilidades onde ocorreu a morte em crise. Os rituais da morte serviriam para repor o corpo morto (biológico) individualizado nas malhas do social. Servia como uma espécie de integração do morto (e da morte) ao social.

A morte, através do corpo morto, deixava de representar uma ameaça a uma dissolução do social, ou a partes dele, e passava a integrar todo uma composição de re-socialização do sujeito morto (e os entes queridos que permanecem) à prática e a visão de mundo de uma sociabilidade específica.

Os rituais servem como uma espécie de domação da morte pelo social. Ela passa a fazer parte de regras sociais, ditadas pelo social e com uma função específica naquele social. Uma delas é a integração do sujeito morto e da dor dos que ficam ao cotidiano societário, outra delas é domar a natureza, integrando o corpo morto ao social e sentindo-se transformador da morte: a cultura dispondo a natureza às suas regras e controle, como forma de subsistência da própria sociedade. A outra, esta relacionada como o mundo sobrenatural. O corpo morto não entregue a prática ritual é um corpo morto em possível danação, que pode querer vingar-se dos vivos e da sociedade onde emergiu. Desta forma, os rituais também buscam domar o sobrenatural através da indicação da passagem do morto para o além. Desta forma, os rituais funerários, os rituais do luto são rituais integradores do sujeito morto e da dor dos que ficam a uma cotidianidade de uma sociabilidade qualquer, como forma de domesticação da morte à visão de mundo desta mesma sociabilidade.

O luto tem o papel de reintegração dos que ficam na cotidianidade de suas vidas, e na cotidianidade de uma sociabilidade específica onde vivem. A dor do luto é uma dor necessária. A psicanálise diz que não é doença, mais uma forma de introjeção do morto nos que ficam. Uma forma de suprir o outro que se foi, o fazendo viver sentimentalmente no interior dos sujeitos que ficam e para quem o morto era querido.

Poderia-se, aqui, perguntar porque a pessoa, por mais pobre que seja, quer tratar seus mortos com dignidade e respeito? A resposta a esta questão está relacionada ao papel dos indivíduos na sociedade, aos sentidos atribuídos socialmente aos sujeitos sociais em vida, onde crenças, desejos, projetos, expectativas dão movimento às práticas sociais e, aos significados indicativos da esfera da morte e dos mortos como extensão e configuração de um social dado.

Pode-se indicar, assim, que a pessoa que perde alguém é uma pessoa ligada a uma prática social específica, tanto quanto a que morreu. Uma pessoa socializada dentro de uma perspectiva de mundo, onde uma ética, um conjunto de emoções, e uma espiritualidade específica, formam um olhar específico sobre si mesmo e os outros próximos e distantes. Esta forma de olhar, é sempre socialmente datada, faz parte de um tempo e um espaço determinado, e comanda noções de dignidade e respeito, que tem a ver com o acesso ao corpo e os exercícios do transpasse do morto pelos rituais funerários e pelos rituais religiosos onde também estão ligados.

É importante, neste momento, pensar aqui que a Religião, para a antropologia, é vista como uma construção social também, mas que remete a uma forma de sociabilidade onde o coletivo é superior aos atos individualizados. A crença na outra vida, uma forma de domar a morte pela vida eterna, faz com que não se deseje o espírito morto vagando. É necessário encaminhá-lo, através dos rituais a um destino específico. As flores, por exemplo, sempre tiveram um significado de ligação com o conceito de paraíso a um jardim, o jardim de éden. Por isso, no Brasil, nas práticas cristãs funerárias, a partir do século XIX, são incorporadas à preparação do corpo morto e as homenagens para com ele.

Tratar os mortos com dignidade e respeito é uma forma primeira de referenciá-los através das práticas sociais a que os indivíduos sociais estão submetidos enquanto pessoas, isto é, é também uma forma de referenciar a si mesmo, enquanto cidadão e enquanto família, e enquanto religião, e enquanto laços de amizades e vizinhança. É uma forma também de se permitir saber que o corpo morto é um corpo domado. A ausência de um corpo na morte da insegurança aos entes queridos sobre a própria morte do sujeito, e não permite que os que ficam façam luto. O luto é uma forma de internalização do sujeito morto nos que ficam. Para a psicanálise, uma dor necessária para uma reintegração dos que sofrem à vida, para a antropologia e a sociologia, uma dor que precisa ser ritualizada para que os que a sofrem possam reintegrar-se a uma cotidianidade, e ao dia a dia social.

Por outro lado, a crença nos rituais integradores, onde os funerários então inclusos, além da necessidade de visualização do corpo morto, do certificar-se de sua morte, precisa também de práticas outras que o permitam fazer o transpasse deste corpo morto para novas realidades, do sobrenatural, por exemplo. Cheio de regras e formas rituais de passagem. Além da questão de higiene pessoal, dos que ficam, e societárias. Um corpo morto necessita de um destino, senão contamina os vivos, pela putrefação do cadáver, entre outros elementos nocivos à saúde pública, e também pela visão simbólica que diferencia o corpo humano do corpo animal. O tratamento não humano aos humanos parece tornar o corpo descuidado em um corpo animalesco, e os próprios entes queridos animais, se não há cuidado ritual com o corpo que se foi. De novo a relação natureza versus cultura.

Porque a maioria das sociedades enterra seus mortos

Outra questão significativa, quando se procurar refletir sobre a prática ritualística mortuária, e conseqüência do que vem discutindo até aqui neste ensaio, é o porquê a maioria das sociedades enterra seus mortos. Daí uma pergunta antecedente: houve alguma sociedade ou existiu um tempo em que isso não acontecia? O que leva a uma análise comparativa e se chega à conclusão inicial de que a prática de enterro dos mortos não é necessariamente a única prática ritual de despacho dos mortos. Existem sociedades que cremam os corpos, a hindu, por exemplo, e as cinzas do sujeito são jogadas nos rios para serem levadas para o mar, como um simbolismo de passagem para o além.

Várias sociedades, no entanto, caminham para a prática do enterro como uma forma de reintegração do sujeito a terra: uma espécie de simbolismo entre natureza, sociedade e sobrenatural. O sujeito se decompõe, e a decomposição acompanha, em muitas sociedades, a natureza dos rituais. Algumas sociedades africanas fazem mais de um enterramento do cadáver, entre o ato da morte e o ato final de retirada dos ossos. Cada ato ritual acompanha o desenterramento e o novo enterro e tem funções específicas do controle do espírito do que se foi e do luto dos que ficam até a liberação dos que permanecem e do que se foi à restauração de suas vidas na cotidianidade social.

Na sociedade ocidental, os enterros tal como nós os vemos no hoje é algo recente e diz respeito ao tipo de sociabilidade que emergiu onde o indivíduo tem uma supremacia relativa sobre o social. Podemos pensar nesse processo de individualização do social na sociedade ocidental a partir do século XII, mas as formas rituais ditas modernas têm sua configuração no final do século XVIII em diante.

Na idade média, os mortos importantes, clérigos e alguns reis e poderosos, eram enterrados na igreja, no interior da igreja. Os mortos comuns eram enterrados nas estradas, ou em covas comuns perto das igrejas. Os corpos eram jogados uns acima dos outros, num buraco constantemente aberto.

Posteriormente, com a higienização das cidades, os cemitérios foram afastados das cidades e os mortos começaram a ser neles depositados. Os cemitérios eram de ordens religiosas e eram tidos como uma espécie de campo santo. Nele, os mortos tinham um destino mais perto do Senhor.
Tem histórias que relatam fatos tragicômicos: a maioria dos homens comuns não possuía renda suficiente para enterrar os seus mortos nos cemitérios. Era comum, então, que na calada da noite corpos mortos fossem arremessados de fora para dentro dos cemitérios, ou se penduravam corpos em árvores que tivessem galho para dentro do cemitério, como forma de proteger os seus mortos.

A briga para se ter um corpo morto salvo era premente.

Por outro lado os cemitérios não causavam medo ou receio, como agora. Os cemitérios eram locais onde sociabilidades emergiam: feiras livres, locais de namoro clandestino, ou de paquerar, trocas e encontros diversos eram realizados no interior dos seus muros.

Só com a política de higienização do século XIX é que as regras de saneamento passam a reconfigurar os rituais fúnebres. Os sete palmos de terra mínimos, as covas individualizadas, os mausoléus indicando a importância dos mortos, a cova rasa com uma cruz, simbolizando entrega do morto para Cristo, etc, bem como a distribuição espacial interna ao cemitério revelando uma hierarquização dos mortos em seu interior.

Os cemitérios desde os finais do século XIX passam simbolicamente a representar a sociedade dos vivos. A distribuição por alas e quarteirões, o valor econômico depositado em cada ala, quadra ou quarteirão, os materiais utilizados, mármores, granito, até o cimento comum à cova rasa, significando um assentamento posicional significativo do sujeito morto ou dos familiares mortos, que correspondiam ao valor simbólico, econômico, político e social, do seu status e da família do qual faz parte e que continua no mundo dos vivos, assegurando o prestígio e a importância familiar na sociedade.

Daí a arquitetura representar o morto com as expectativas dos vivos que o rememoram e aos demais que circundam e reverenciam o seu poder, até as covas rasas, alugadas por dois anos e cujos ossos, não reclamados pelos familiares, são depositados em um ossuário comum; reprodução, também que satisfaz as hierarquias e situações de classe na nossa sociedade.

Até os modernos cemitérios como parques com grife, daí já significativamente determinado para uma classe social específica, ou os novos cemitérios verticais, cujos mausoléus são vendidos de acordo com a paisagem oferecida, da cidade onde eles existem etc. Estes, também, são cemitérios com grife e destinados a um público especial.

Em nossa sociabilidade, a ocidental, então, emerge e revigora o comércio fúnebre e as relações mercantis de troca, condizentes com o espírito do capital que norteiam as suas relações sociais até na morte.

O comércio fúnebre no Brasil tem início também nos finais do século XVIII e se desenvolve no XIX para cá. Antes existia o comércio religioso sobre os atos fúnebres. As famílias pagavam ou doavam casas, propriedades, dinheiro a Igreja como uma forma de conseguir um cantinho mais fácil no céu. Os enterros no interior das igrejas também eram coisas para poucos, e eram os de posse que conseguiam.

A pobreza enterrava os seus mortos em covas coletivas, pertos dos locais santos, como Igrejas e conventos, ou em terrenos próximos de suas casas e, em último caso, nas beiras de estrada. Este último, quase sempre, ligados a mortes por motivos de acidente, assassinato, ou outros tipos de mortes ocorridas no local. Com o disciplinamento dos cemitérios e a questão da higienização das cidades, as regras do enterro e a prática de uma forma de enterro específico fazem vigorar o comércio e instituições voltadas para o serviço fúnebre. Isso se dá principalmente no final do século XIX.

Implicações sociais e psicológicas de um comércio fúnebre

Na sociabilidade moderna e ocidental, onde o Brasil faz parte como legado da colonização, o comércio fúnebre visa a facilitar o despacho e o transpasse do morto. Ninguém tem mais tempo de fazer sozinho o caixão, sair colhendo flores no campo, sair com ele (o caixão e o defunto dentro) nas costas, e não se pode por enterrar ou depositar o corpo em qualquer lugar, por quebrar normas de higiene, e normas de propriedade de uma sociabilidade.

O comércio fúnebre vem suprir uma prática cada vez mais individualista do ritual fúnebre. Serve também como elemento de status social, quanto mais rico e com mais adornos, quanto mais vistoso o velório e mais pomposo o enterro, mais status social o sujeito, e logicamente a família que fica possui.

No século vinte, os serviços funerários se especializam, ornamentos e enfeites, como os tipos de flores, de adornos, e outros, ficam nas mãos de especialistas. Os caixões também, os locais de velórios, o cortejo, a vaga nos cemitérios, - que deixam de ser ligada a igreja e se secularizam, passando a ser administrados pelas prefeituras locais, e dos anos setenta para cá, por setores privados, - bem como as ajudas psicológicas ao luto, psicólogos, psicanalistas, assistentes sociais, entre outros, tornam-se objetos de trabalhos especializados. Esses serviços passam a exercer uma função que antes era exercida pela sociedade como um todo, ou pela Igreja ou forma religiosa, em particular.

Os serviços de restauro, do re-equilíbrio psicológico e social da pessoa em dor, passam a ser um serviço de acompanhamento individualizado, feito por especialistas. No Brasil, por exemplo, existem Núcleos de Apoio à Pessoa Enlutada, serviços que envolvem psicólogos, médicos, assistentes sociais, sociólogos e antropólogos, que tem como função amenizar a dor do luto nos que ficam e reintegrá-los a prática cotidiana social.

Isso sem falar nos cartórios e instâncias ligados à advocacia, para discussões e repasses de possível herança dos sujeitos mortos, e dos problemas deixados por eles em vida, entre outros assuntos. Serviços que se propõem servir como intermediário, ajudando os que ficam a re-situar-se no social, pela restauração e equilíbrio moral, ético, econômico e de dignidade do que se foi. É comum aflorar vários problemas após o transpasse da pessoa, necessários de serem resolvidos para que os que ficam possam retornar a normalidade.

Sem falar na religião, que ainda detém um papel importante, tanto psicológico, - na restauração e amenização da dor dos que ficam, - como na integração do morto na outra vida, ou pelo menos nas formas de vidas que cada religião particular invocada no hoje, constrói.

Sem falar ainda nos hospitais. O homem moderno deixou de morrer em casa e passou a morrer nos hospitais. O serviço médico tornou-se imprescindível para o serviço fúnebre. O atestado de óbito, por exemplo, só pode ser dado por um médico. A medicina, na sociedade ocidental contemporânea, e no Brasil em particular, desde o final do século XIX, passam a deter o poder da vida e da morte social. Sem um atestado de óbito o sujeito não pode ser considerado morto, com todos os problemas que daí surge para os que ficam. Problemas psicológicos, econômicos, morais, etc. que dificultam os que ficam fazer o luto e retornar a uma cotidianidade específica.

A partir do século XX, por fim, a morte é comandada por uma enorme e diversificada e especializada indústria funerária.
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Indicações Bibliograficas

KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Sociologia da Emoção. O Brasil Urbano sob a Ótica do Luto. Petrópolis, Vozes, 2003

BORGES, Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890-1930). Belo Horizonte, Editora C/Arte, 2002

ARIÈS, Philippe. The Hour of Our Death. New York, Alfred A. Knopf, 1981
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[Texto publicado no Diário de Santa Maria (Caderno Mix), Santa Maria, RS, p. 14 - 15, 24 jan. 2004].
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