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domingo, 31 de maio de 2009

15 anos do GREM - Projeto MEMÓRIA DO GREM - Série Parcerias

Parceiros do GREM
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Neste momento se dá continuidade a série parceiros do GREM, em comemoração aos 15 anos de atividade deste grupo de pesquisa, no projeto Memória do GREM.
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O Centro Josué de Castro esteve presente na vida do GREM muito antes da criação do grupo de pesquisa. A vinculação do GREM com o Centro Josué de Castro tem início em 1979, data da fundação do Centro, isto é, muito antes do nascimento do GREM, mas, tendo o fundador e líder do Grupo, o Professor Mauro Koury, como um dos pesquisadores sócio fundador do Josué de Castro.
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O Centro de Estudos e Pesquisas Josué de Castro, fundado em 1979 por um grupo de pesquisadores pernambucanos, tem por objetivo contribuir para a construção e fortalecimento da democracia e da cidadania na perspectiva do acesso aos direitos humanos, através da pesquisa e da intervenção social.
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Nesses 30 anos de existência, o Centro Josué de Castro construiu uma história de pesquisa e intervenção social séria e competente, influindo na elaboração e melhoria das políticas públicas e mobilizando a sociedade em favor da maior abrangência dessas políticas. *As principais áreas de estudo e intervenção social do Centro Josué de Castro têm sido a análise da realidade brasileira, especialmente da região Nordeste, através de pesquisas e intervenções nos diversos ramos das ciências humanas; a atuação em várias frentes voltadas para o conhecimento e superação das causas da fome e da pobreza; a capacitação de cidadãos para a participação na formulação de propostas, controle e acompanhamento de políticas públicas; o fortalecimento de redes e articulações voltadas para essa finalidade; e a atuação em fóruns e debates sobre políticas econômicas, sociais e culturais.
Este Blog convida a todos, para um melhor aprofundamento nos trabalhos e na filosofia do Centro a visitarem a sua página no endereço eletrônico: http://www.josuedecastro.org.br/index.php
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[Estes dados foram recolhidos diretamente da página do Centro Josué de Castro]
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sábado, 30 de maio de 2009

15 anos do GREM - Projeto MEMÓRIA DO GREM - Série Parcerias

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Parceiros do GREM
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Uma série de parcerias do GREM, nestes 15 anos de atividades, serão, a partir de então, comentadas. A primeira delas, abrindo a série, fala sobre o Human Dignity and Humiliation Studies.
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O Human Dignity and Humiliation Studies (HumanDHS), é um grupo de pesquisa vinculado a Universidade de Oslo, Noruega.
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O HumanDHS é uma rede de estudos globais e transdisciplinares sobre o desrespeito destrutivo e sobre as práticas de humilhação em termos mundiais.
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As pesquisas do HumanDHS são inspiradas por valores universais, tais como, a humildade, o respeito mútuo, a inquietação e a piedade, e por um sentido de direitos e de responsabilidades planetárias compartilhadas.
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O HumanDHS, por fim, é uma rede global que objetiva gerar a pesquisa interdisciplinar (intra e intercultural) e disseminar a informação entre os povos visando, e realçando, a consciência dos direitos e da dignidade humana.
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Desde 2002 o GREM é parceiro do HumanDHS. Na RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, revista eletrônica editada pelo GREM, desde o seu primeiro número, é possível encontrar contribuições de pesquisadores associados ao HumanDHS, como Evelin Lindner (Noruega), Linda Hartling (EUA), Mauro Koury (Brasil), Elizabeth Gross-Battesson (EUA), Katrine Fangen (Noruega) e outros.
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Este Blog convida a todos para fazeres uma visita ao endereço eletrônico do HumanDHS: http://www.humiliationstudies.org/index.php . Neste endereço, além de ter uma noção mais profunda do Grupo de Pesquisa Human Dignity and Humiliation Studies, o leitor poderá encontrar uma lista de atividades desenvolvidas e em desenvolvimento pelo HumanDHS, eventos programados e uma série de artigos e relatórios por eles desenvolvidos, de grande relevância temática para a área dos direitos humanos, da dignidade humana e para a área de estudos sobre humilhação.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

15 anos do GREM – Projeto Memória

As Imagens da Lagoa. Uma Etnografia Visual sobre Pertença e o Uso do Espaço Público
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Mauro Guilherme Pinheiro Koury
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Este artigo tem por objetivo elaborar uma narrativa das formas de ocupação e usos de um espaço urbano da cidade de João Pessoa de grande visibilidade local, o Parque Sólon de Lucena, mais conhecido como a Lagoa[1]. Parte de um levantamento do humano e da paisagem local, e procura elaborar um roteiro narrativo que abarque desde os diversos tipos que ali trafegam e como ocupam o lugar, os problemas e formas de enfrentá-los que apontam, até os desenhos de sociabilidades e da memória visual, espacial, temporal e afetiva que possuem do espaço.
Busca, deste modo, compreender o conceito e os sentidos de pertença vivenciados pela população de João Pessoa que freqüenta o local, através da narrativa dos informantes sobre o Parque. Para quase todos os informantes com quem conversei durante as várias caminhadas em vários dias da semana e diversos horários durante a minha estada em campo, bem como para o imaginário da cidade, da mídia e das agências de turismo local, o Parque Sólon de Lucena é visto como um grande cartão postal da cidade.
Situado no centro da cidade de João Pessoa, o Parque parece ser um espaço por onde se podem compreender os sentidos de pertencer a um determinado lugar (KOURY, 2003), e entender como os moradores desenvolvem esse sentimento. A questão que me proponho, então, é mostrar e pensar o Parque enquanto local onde se visualiza os elementos emocionais da pertença, enquanto construto subjetivo de viver a cidade.
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O Parque na Cidade
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O Parque Sólon de Lucena ou a Lagoa é um espaço público dos mais conhecidos de João Pessoa, inclusive considerado um dos cartões postais principais da cidade. O local era conhecido até as duas primeiras décadas do século XX pelo nome de Lagoa dos Irerês (Foto 1), como contam os cronistas da cidade, uma espécie de ave que habitava o lugar[2], ou simplesmente a Lagoa (AGUIAR & OCTÁVIO, 1985). Era uma área formada por um conjunto de pântano, vegetação e lagoa acumulada das águas das chuvas e, em suas imediações, e nas áreas a ela circunvizinhas existiam inúmeros sítios e chácaras (MAIA, 2000).
A área que circunda a Lagoa passou a ser chamada de Parque Sólon de Lucena através do Decreto Lei nº 110, de 27 de setembro de 1924, durante o governo de Sólon de Lucena, mas foi só nos anos trinta, durante a administração de Argemiro de Figueiredo, que o projeto ganhou forma urbanística, com “o calçamento dos anéis internos e externos da Lagoa” (O Norte, 20 de janeiro de 2004) e jardins.
Sua inauguração oficial como Parque urbanizado se deu em 1939 (Foto 2). Os jardins da Lagoa foram projetados pelo paisagista Burle Marx (Foto 3) e o projeto fez parte de um conjunto de modificações que visaram o disciplinamento, o embelezamento e o saneamento das vias urbanas, na nova racionalidade sobre as cidades que começa a ser implementada no Brasil, e na cidade de João Pessoa, em particular, desde os finais do século XIX e, principalmente, a partir dos anos vinte do século XX (KOURY, 1986).
O Parque foi tombado pelo IPHAEP - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico da Paraíba em 26 de agosto de 1980, através do decreto nº 8.653, e ocupa uma área desapropriada de 150 mil metros quadrados. Em 1985 seu espaço físico passou por um processo de recuperação e reordenamento.
Cartão Postal (Foto 4) e endereço turístico importante da cidade a Lagoa, hoje, é também um ponto central de trafego de veículos e fluxo de habitantes da cidade que por lá passam, ou pegam ou saltam de transportes urbanos para deslocamento pelo Centro da cidade ou para ida a outros bairros. A área onde se localiza é responsável por parte considerável da movimentação econômica através as lojas de departamento, escritórios, bancos, barracas de lanches e bebidas e, principalmente por causa do comércio informal que se amplia dia a dia.
O jornal O Norte, de 20 de janeiro de 2004, afirma que por lá circulam diariamente mais de 2,5 mil automóveis e todas, ou quase todas, as linhas de ônibus da cidade, além de um fluxo diário de mais de oitenta mil pessoas. O que torna o local em um dos pontos mais agitado e movimentado da capital.
A Lagoa, no presente, é uma área disputada por pedestres, com paradas obrigatórias de todas as linhas de transporte coletivo que por lá passam, e carros, que cortam o Parque em várias direções e disputa o seu espaço como forma de estacionamento. É também um local com concentração de flanelinhas e desempregados.
Na circunvizinhança do Parque funciona um variado comércio e os principais serviços públicos da capital, bem como lá estão estabelecidas as principais lojas de departamento da cidade. É um espaço também de pequenos delitos[3] e de acúmulo do comércio informal.
A Lagoa é uma área de múltiplas formas de ocupação e presença. Ocupações e presenças que vão desde o fluxo contínuo de transeuntes, a pé ou em carro e transportes coletivos, até como um espaço de lazer para várias categorias de moradores, para namoro de colegiais e comerciários e, à noite, local de prostituição tanto masculina e feminina e de boêmios que vivem a madrugada, tanto quanto de local de dormida para moradores de rua.
O Parque, também, é um núcleo central de festividades oficiais da prefeitura e do estado: festejos de natal, São João, entre outros, também fazem do espaço um centro de referência da cidade. Na década de cinqüenta e sessenta a Lagoa foi palco de uma passagem obrigatória para os movimentos estudantis e atos políticos na cidade, bem como no decorrer dos anos finais da ditadura foi palco de comícios pela redemocratização do país e pelas eleições diretas (KOURY, 1983).
Continua ainda hoje a preencher e dar visibilidade às várias formas de ação reivindicativas, sociais, esportivas, políticas e eleitorais da cidade. Em tempos de eleições, serve de palanque para políticos e suas margens e calçadas são ocupadas por uma variada onda de bandeiras e faixas de vários candidatos. Todas as manifestações públicas, de acampamento de sem terra (Foto 5) e passeatas de protesto e reivindicação também por lá circulam, começam ou acabam. Manifestações cívicas e esportivas também têm seu lugar na lugar na Lagoa.
Como espaço turístico, cartão postal da cidade, com vários tipos de usos e contornos na atualidade e através do tempo, o Parque Sólon de Lucena é um espaço de memória afetiva (KOURY, 2003) e um dos ambientes mais significativos para o estudo sobre a relação entre moradores e áreas públicas em João Pessoa.
Percorri por várias vezes o espaço público do Parque Sólon de Lucena, recompondo todo o seu trajeto e mapeando as avenidas, ruas e becos que nele deságuam. Esta caminhada, em vários horários do dia, objetivou conhecer os tipos permanentes e temporários que usam ou trafegam pelo Parque, e conversar com algumas destas pessoas que por ele andam, nos vários horários.
Esse trajeto que aqui começo a narrar buscou apreender e acompanhar o movimento sempre variado e as formas de apropriação, temporárias e permanentes, da população que o freqüenta. Bem como os motivos de frequentá-lo, o que possibilitou uma percepção de vários olhares sobre o local trabalhado nos diversos momentos de sua utilização pelos informantes que se propuseram a comigo conversar.
Os horários da caminhada foram distribuídos em diversos momentos. De passeios matinais ao redor da Lagoa, dando conta do afluxo da população para mais um dia de estudo, comércio, serviços, compras, passeios, turismo, ponto de transferência de um ponto a outro da cidade e outras diversas formas de utilização do espaço, até o esvaziamento do centro da cidade e da Lagoa no final de mais um período diurno. A estada em campo nas noites procurou identificar as formas de ocupação noturna do espaço por boêmios, prostitutas, travestis e michês e poucos transeuntes em busca de transporte público ou passagem para outro local da cidade. As caminhadas, assim, se deram nos seguintes horários, das 06 às 09hs; das 09 às 12hs; das 12 às 18hs; das 18 às 20hs e das 20hs às 06 hs da manhã[4].
O Parque Sólon de Lucena, para uma melhor apreensão do pesquisador, foi dividido em cinco núcleos. Os núcleos foram baseados nos diversos canteiros que dão o formato, obtendo uma visão conjunta da Lagoa, e possibilitando a apreensão das diferentes formas de ocupação por núcleo.
O primeiro núcleo compreendeu a parte da Lagoa que vai da Avenida Getúlio Vargas a Avenida Miguel Couto, espaço que envolve o ambiente das paradas de ônibus e os quiosques; o segundo núcleo abrangeu a parte que vai da Avenida Miguel Couto até a Rua Padre Meira, o lugar de flanelinhas, pontos de estacionamento de veículos e quiosques e, à noite, local de boêmios e prostituição feminina[5]; o terceiro núcleo abarcou a parte que vai da Rua Padre Meira até a Rua Rodrigues de Carvalho, espaço reservado, durante o dia, aos negociantes de carros usados e, à noite, ponto de prostituição masculina; o quarto núcleo, que vai da Rua Rodrigues de Carvalho até a Avenida Getúlio Vargas, onde se encontra o conhecido Cassino da Lagoa; e o núcleo cinco, a calçada em torno do lençol de água da lagoa, chamado de Passeio da Lagoa, parte interna do Parque, onde os moradores da redondeza costumam fazer suas caminhadas (Mapa I).
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Frequentadores e transeuntes
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O Parque Sólon de Lucena é um pulsar de diversos tipos humanos que o freqüentam de formas diversas e períodos distintos, ali trafegam, trabalham, namoram ou, até mesmo, fazem de suas árvores dormitórios ou moradias.
São moradores do centro que fazem caminhadas matinais, aposentados que freqüentam os grupos de dominó, estudantes, namorados, cambistas, boêmios, prostitutas, travestis, trabalhadores de diversas profissões, taxistas, policiais, guardadores de carro conhecidos por flanelinhas, donos de quiosques e barracas, camelôs, políticos, moças e rapazes que fazem panfletagens nos períodos de eleição, meninos de rua, pedintes, turistas, transeuntes, - vistos de uma forma geral, como pessoas que freqüentam o local apenas de passagem, seja estacionando o carro, ou nas paradas de transportes coletivos (Foto 6), e ou esperando alguém, ou utilizando o serviço gratuito de ônibus para a orla marítima [6], entre outros.
A Lagoa, das 09 horas da manhã às 20 horas é um centro nervoso e agitado. Entre seus canteiros passam milhares de pessoas diariamente, possui um tráfego pesado que a circunda entre suas várias artérias, e uma variedade de tipos humanos que por lá circulam ou permanecem cotidianamente, de quase todos os bairros da cidade. À noite, fora os dias de festas e comemorações públicas, que atrai uma enormidade de pessoas, ganha uma aparente calma.
Os tipos que por lá transitam escasseiam e transmudam. Os quiosques, abertos vinte e quatro horas, começam a acolher trabalhadores que saem do trabalho e esticam um pouco sua permanência, - até as 21 hs, de segunda a quinta feira, e 22 e 24 horas na sexta feira, - na região Central da cidade onde se localiza o Parque, “jogando conversa fora” ou esperando diminuir o afluxo nos ônibus e transportes coletivos e retornarem a seus bairros.
Outros freqüentadores começam a usar o espaço a partir de então, e em certos horários de forma simultânea. Boêmios, que por lá trafegam durante toda à noite, prostitutas, travestis, michês e moradores de rua que dormem entre as árvores e nos bancos espalhados pelos diversos canteiros do Parque dão o novo colorido ao ambiente e um novo modo de apropriação do lugar.
O policiamento escasseia, a partir das 20 horas, e a Lagoa ganha um novo formato para os usuários da noite, com linguagem estética própria, que a diferencia e atemoriza o cidadão joãopessoense que a freqüenta nos períodos diurnos.
Nos finais de semana a ocupação diurna da Lagoa se distingue. O comércio fechado faz com que os freqüentadores habituais da semana fiquem em suas casas ou vão se divertir em outros locais, como a orla, seus bares, praia e shopping, ou outro Parque, como o Arruda Câmara, também conhecido como a bica, entre outras formas de inserção de descanso e lazer da cidade.
O local é, então, ocupado por grupos evangélicos que assumem vários canteiros do Parque em rodas de pregação, moradores em seus footings matinais e de final de tarde e alguns turistas, principalmente os vindo do interior do estado, passeiam pela Lagoa e usam os seus quiosques para almoçar ou lanchar com a família e tirar fotografias. A agitação, o trânsito e transeuntes diminuem. À noite, o comércio de prostituição masculina e feminina prossegue, a freqüência de boêmios, mendigos e meninos de rua diminui um pouco.
O Parque Sólon de Lucena, apesar de ser um dos locais mais agitados da cidade, tem uma peculiaridade na sua freqüência. Mesmo contanto com os transeuntes temporários, quem freqüenta ou transita o Parque, em sua maior parte, são indivíduos com até 10 salários mínimos de renda, isto é, com uma renda até três mil reais, e que estudam ou trabalham nas imediações do centro, ou que vão resolver negócios ou transações nas repartições públicas da cidade.
Com o desenvolvimento da orla marítima como não apenas local de moradia, mas também em comércio e lazer, a partir dos anos cinquenta e, principalmente a partir dos anos setenta do século passado, o centro da capital começou a passar por um processo de decadência. O seu comércio é áreas públicas de lazer hoje, são disputados, principalmente, pelas camadas populares da população da cidade, a classe média e média alta circulam principalmente pelos shoppings e áreas de lazer da orla.
O que não quer dizer que a cidade como um todo, grosso modo, não passe pelo Parque pelo menos uma vez por dia. No survey aplicado pelo GREM em apenas um único dia, durante todo o dia 04 de agosto de 2004, com uma amostra de 181 indivíduos, foram entrevistados moradores de cinqüenta e cinco bairros da cidade. Bairros situados e espalhados por toda a rede urbana que compõe o município de João Pessoa[7].
Os bairros considerados de classe média e média alta são 7,74% do total da amostra. Os demais bairros são de classes média baixa e popular. Somados dão um total de 72,38% dos freqüentadores do local entrevistados durante o survey.
Outra parcela de entrevistados é formada por moradores de cidades da região metropolitana que trabalham em João Pessoa, 18,78% dos entrevistados[8], ou moradores de cidades do interior paraibano em negócio ou passeio pela capital, 1,10%. Para os moradores da região metropolitana a Lagoa é sinônimo de trabalho, os entrevistados são, em sua maioria, camelôs ou trabalhadores diretos, garis, garçons, garçonetes, entre outros, do Parque. Para os das cidades do interior, o viver a Lagoa ou o ir visitar e freqüentar o Parque é um sinônimo de conhecer e viver a cidade. Ir a João Pessoa e não visitar a Lagoa é não ter estado na cidade.
Durante as minhas caminhadas durante a semana e fins de semana, conversei com vários interioranos deslumbrados pelo espaço físico do Parque Sólon de Lucena e da necessidade de tê-lo incluído em seu roteiro pela cidade. Vários ônibus com turistas aportam nos canteiros do Parque, principalmente nos fins de tarde, trazendo levas de turistas do interior que vêm conquistar a Lagoa.
É interessante notar que, mesmo os que se mudam para a capital, por alguns anos ainda registram a Lagoa como um ponto de encontro e lazer na cidade. Muitos dos que circulam nos finais de semana, ou mesmo durante a semana na cidade, fazem suas refeições nos quiosques da Lagoa, e “tomam uma cerveja com amigos” e familiares, ou marcam encontro tendo por referência o Parque. O Parque Sólon de Lucena, deste modo, para os moradores de outras cidades, é um ponto de referência da cidade e na cidade, um símbolo da capital.
Amor e desamor: a ambivalência da emoção pertença
É importante lembrar, contudo, que para o conjunto dos moradores da cidade o Parque Sólon de Lucena simboliza também um marco importante de reconhecimento de João Pessoa. Quando se pergunta sobre os pontos que são o rosto e a alma de João Pessoa, um dos primeiros a serem lembrados é o Parque, conhecido por a Lagoa.
Em um estudo realizado para obtenção do grau de mestre por Rossana Honorato (1999, p. 87), por exemplo, entre produtores culturais da cidade de João Pessoa, a resposta à questão dos pontos de referência que eram “a cara”, entre outros, esteve sempre presente a Lagoa. Como corrobora um dos seus informantes, o arquiteto Mario Di Láscio, “A Lagoa era uma poça d’água, foi urbanizada em 1937, eu já era rapazinho. Hoje é a cara de João Pessoa”.
Cartão postal, como muitos afirmam, embalados pela beleza do Parque decantado em todos os anúncios governamentais e de empresas de turismo sobre a capital, a Lagoa é também sinônimo de amor e desamor. O desamor se refere entre outros aspectos às intervenções municipais que modificaram o projeto original do Parque e a luta pela manutenção do seu desenho e estrutura ambiental, mesmo após o tombamento pelo Patrimônio Histórico na década de oitenta do século passado.
Refere-se também ao crescimento acelerado da cidade desde as últimas três décadas finais do século XX, com o aumento da intensidade do trânsito no local, bem como a tentativa de desfiguração do local com o alinhamento dos espaços de estacionamento de veículos e avanço nos canteiros do Parque modificando o seu aspecto, ou por ter o Parque se tornado um ponto de prostituição e ação de pequenos roubos. Refere-se também ao estranhamento que sentem quando vêem o Parque sendo utilizado por pessoas ou grupos que parecem não se reconhecer. Pelo anonimato da multidão que vaga pela área da Lagoa.
Muitos dos informantes falaram, também, evitar o Parque pela insegurança que o mesmo provoca no cidadão. A insegurança reflete-se em um plano moral, pela presença noturna e diurna, embora de uma forma um pouco menos visível, da prostituição masculina e feminina no local, como também em um plano físico, seja pelo número crescente de veículos que por lá trafegam, dificultando a vida dos pedestres, seja pelos acidentes (Foto 7), atropelamentos e invasões do espaço do Parque por motoristas que perderam a direção. A insegurança também se reflete nos pequenos furtos de carteiras e objetos pessoais, que incomodam e assombram a população que passa ou permanece na Lagoa.
Fala do desamor ao local, também, associado à decadência do lugar, pelos equipamentos urbanos lá instalados se encontrarem quebrados e sem manutenção, pela sujeira e o pelo odor do lugar. Mas não só os informantes falam da sujeira e do odor local, a própria mídia relata cotidianamente.
Em um irônico artigo, intitulado “Estrovenga e fedorentina”, o jornalista e cronista urbano da cidade de João Pessoa descreve o odor que emanava da Lagoa, no momento em que a prefeitura realizava um fórum sobre o Parque Sólon de Lucena, em outubro de 2001 (ARANHA, 2001). O joãopessoense associa o desamor, também, ao público que a freqüenta, associado quase sempre a pessoas consideradas como marginais, boêmios e vagabundos.
É interessante que, mesmo que vários informantes confirmem trafegar pela Lagoa uma ou mais de uma vez ao dia, alegam que são apenas transeuntes e não freqüentadores do Parque. Dissociam assim o estar lá do permanecer lá, e assim colocam um distanciamento entre si e os freqüentadores do local.
No estranhamento e separação, podendo colocar-se de fora e apontar o local como um lugar inseguro por culpa de quem o freqüenta. Afirmam que os que freqüentam são os outros, e imputam a esses outros uma parcela da decadência da Lagoa e culpam a administração da cidade por uma ação não eficaz na área de segurança e disciplinamento do lugar.
Os próprios moradores da região central, que freqüentam nas manhãs e finais de tarde o Passeio da Lagoa, realizando o footing, também fazem questão de demonstrar a insegurança do lugar e se dizem desamparados e com medo de agressão e assédio. Muitos destes, porém, asseguram a sua presença como uma forma de amor ao lugar e de amor à cidade. Um deles, inclusive foi enfático ao afirmar:
“É uma forma de resistência nós permanecermos a fazer nossa caminhada aqui no passeio. Lugar mais bonito impossível, já foi comparado as cinco maravilhas do mundo moderno e hoje é isso aí, sujeira, fedor, assaltos e atentados ao pudor. (...) Mas eu e minha mulher não largamos de vir aqui de manhãzinha e de tardinha, todo santo dia. É uma forma de dizer que o Parque é nosso, é uma forma de chamar a atenção para que cuidem dele, de sua beleza e ainda o coração verde da cidade”.
Outra forma de desamor está associada à decadência do centro de João Pessoa, e por extensão, do Parque. As ilhas nobres da cidade e o fluxo do comércio e lazer transferidos paulatinamente para a orla marítima, desde os anos sessenta do século passado, transformaram o centro em um lugar freqüentado por pessoas de baixo poder aquisitivo, as autoridades desviando os recursos de infra-estrutura para os ambientes nobres da capital e deixando o centro ao “Deus dará”.
Com este argumento alegam o descaso e a insegurança no local. É interessante notar, porém, que esta alegação faz parte do conjunto dos informantes perguntados sobre o porque do desamor e de não freqüentarem o Parque Sólon de Lucena. Neste contexto, até moradores de áreas periféricas e de baixo poder aquisitivo afirmam igualmente a insegurança e descaso com o local pela freqüência de pessoas menos nobres ao Parque, e por extensão ao centro.
Nesta referência ao menos nobre, contudo, está presente um valor moral embutido no aspecto de honestidade e trabalho. Os freqüentadores do Parque, assim, são aqueles vistos como suspeitos socialmente, vagabundos, ladrões, prostitutas e “desvalidos[9]” de um modo geral, e não aqueles que estão informando. Muitos, inclusive, possíveis de serem apontados por outros informantes dentro do cenário geral do que consideram os outros, os socialmente suspeitos.
O Parque Sólon de Lucena, todavia, é um local onde as interações amorosas e de apego ao lugar e a cidade se estabelece. Sua referência conota um aspecto importante de um sentimento de pertencer à cidade de João Pessoa, de ter em si o lugar. O Parque é sentido pela maioria dos informantes como um cartão postal da cidade. Um espaço turístico que marca e dá identidade a cidade e, por extensão, aos seus habitantes.
O Parque Sólon de Lucena, a Lagoa, é narrado, neste momento, através de um espelho afetivo que reflete a cidade e o lugar. A atualidade através do tempo identifica e compara vários tipos de usos, contornos e valorações, e a Lagoa torna-se um espaço de memórias afetivas.
O que acaba mostrando os diversos usos do espaço e os contornos de sua ocupação e a inter-relação entre os usuários e freqüentadores, e obviamente suas redes de relações sociais. Os informantes, então, identificam e narram o lugar de uma forma e de um jeito únicos, que qualificam sua individualidade enquanto cidadãos e ao mesmo tempo, revelam o hábito, a tradição, e o costume que o faz membro de um todo.
O sentimento de pertença está relacionado à aproximação e ligação com o local de origem. É uma idéia de enraizamento, onde o indivíduo constrói e é construído, planeja e se sente parte de um projeto, modifica e é por ele modificado. Como declarou um dos informantes sobre o Parque e por extensão á cidade de João Pessoa,
“Há momentos em que eu sou tomado por um emaranhado de lembranças que me fazem dissertar sobre cada pedaço desse meu chão. Nestes meus sessenta e quatro anos de vida acompanhei muito do crescimento desta cidade. Eu lembro de quando criança brincava entre as árvores da Lagoa, lembro das minhas escapadas do Liceu para fumar e conversar com meus colegas, ah, como eu lembro! ... Eu lembro das idas com a família ao Cassino da Lagoa, lembro dos passeios com a minha noiva e depois com os meus filhos pequenos. Eu lembro da Lagoa se transformando em comércio ao redor, as famílias se mudando... eu lembro da cidade crescendo e se estendendo em direção a praia, em direção ao sul, lembro depois, já casado e com filhos, me mudando com a família para o bairro de Castelo Branco, lembro me dirigindo ao Paraiban anos a fio até a minha aposentadoria e sempre passando por aqui pela Lagoa, antes e depois do expediente”.
E continua:
“A Lagoa, assim, faz parte sempre da minha vida. Até hoje, eu saio toda manhã para cá para ver os amigos que sobraram. Para jogar conversa fora e jogar dominó. Tenho medo que esse espaço seja destruído. Ele já não é mais aquele do meu tempo, embora tombado o Parque é uma área muito cobiçada e uma área muito maltratada pelo poder público, que mal cuida dos seus jardins, mal cuida da limpeza, e pelos cidadãos que não respeitam o sagrado, a importância deste lugar para a cidade. Eu vejo a Lagoa, assim, e vejo nela refletida a minha vida e a da minha cidade, a Lagoa é um lugar que cabe dentro de mim”.
A emoção de fazer parte, de pertencer, neste sentido, ultrapassa as barreiras do desagrado. As críticas ao lugar tornam-se uma espécie de querer bem, de alertar a degradação, de reclamar a falta de cuidado, o desmazelo do Parque que traz consigo na memória, no coração, isto é, na memória afetiva também chamada de coração.
Os mais velhos retornam e retomam o lugar para rever amigos e recordar, e na recordação comparam e sentem receio de não ver mais a Lagoa de sua imaginação, de sua experiência do passado. Têm medo de ver a Lagoa destruída, e olham o processo de ocupação atual do lugar com certo estranhamento, por não mais reconhecerem nas pessoas que a freqüentam o núcleo básico das tradições que fundaram a sua curva de vida.
Suas reflexões então soam com um misto de sentimentalismo e medo. Soam também como uma experiência sempre pronta a ser narrada a quem quiser ouvir (e dela tirar proveito). Os mais novos, por sua vez, vêem a Lagoa com certo desdém jovem, ou a remetem ao cenário de namoros ou como passagem obrigatória, menos como local, por eles considerados como de freqüência e lazer, vistos como algo que os desclassifica enquanto habitante da cidade.
O lugar de lazer é a orla, seus bares, o shopping, os cinemas. Porém, ao falarem da importância da Lagoa para a cidade, remetem sempre ao aspecto turístico do lugar e a imagem de cartão postal, e aí se identificam com o lugar como um dos espaços mais bonitos da cidade, e falam da falta de infra-estrutura, da insegurança do lugar com um sotaque afetuoso, de morador zeloso que gostaria de ver restabelecido a importância que o lugar merece na cidade.
Os comerciantes radicados no Parque, desde os estabelecidos nos quiosques oficiais até os camelôs que inundam o local com o seu comércio variado falam da importância do Parque para a cidade e para o comércio local. Criticam, porém, da falta de infra-estrutura, da falta constante de limpeza, da insegurança do lugar. Os estabelecidos, oficiais, reclamam e acusam os camelôs da decadência do Parque, da sujeira e do ambiente de suspeita sobre o lugar.
Os camelôs acusam os comerciantes estabelecidos de modificarem clandestinamente a estrutura dos jardins do Parque em benefício da expansão de seus negócios, desfigurando o lugar. Acusam também de os jogarem contra o poder público e a polícia, e amedrontarem os cidadãos que circulam no local. Uns e outros, porém, vêem o Parque como um sinônimo de sobrevivência, e é desta relação comercial que constroem as suas narrativas sobre o lugar.
O policial com quem conversei, falou sobre sua meninice no Parque. Como morador do bairro do Roger[10] sempre freqüentou o Parque desde tenra idade, foi lá que, como disse, “me tornei homem”, em uma noite de São João[11] com uma turma de amigos, com duas prostitutas que faziam ponto em um dos canteiros do Parque. “Foi entre as árvores do Parque mesmo”, disse ele. Quando está de folga freqüenta o Parque, ainda bebe umas cervejas com os amigos nos quiosques espalhados, ainda pega “umas meninas” por lá.
Quando perguntei sobre os problemas do Parque ele informou que em questão de violência o Parque não é um dos locais mais perigosos da cidade, embora seja temido pelos populares que o freqüentam. Acredita que os temores da população são motivados pela existência do que ele chama de “pequenos meliantes”, “espertos que cuidam do descuido alheio, principalmente, das senhoras e das pessoas idosas”, “são roubos de bolsa, de carteira, vez ou outra da pensão de um velhinho, e por aí”.
Conta cenas de perseguições a “esses elementos” que terminam, na maior parte dos casos, nos perseguidos se jogando nas águas da Lagoa tentando escapar da perseguição e, muitas vezes, “aí é que dão trabalho para serem resgatados de lá”, seja pela lama no fundo da lagoa, seja pelo tempo perdido até a sua rendição. No jornal O Norte, de 20 de outubro de 2003, foi noticiado uma das cenas comentadas pelo informante. Diz a manchete: “Assaltante é perseguido pela população e se joga na Lagoa”, e relata o fato de um rapaz de dezoito anos, após tentar roubar a bolsa de uma senhora e ser perseguido por policiais e por populares, se jogar na Lagoa, e as peripécias do ato até a chegada do corpo de bombeiros e a retirada e prisão do rapaz.
Conta que fora os pequenos furtos e agressões, de cenas de desordem e bebedeiras, a Lagoa não é palco de grandes violências. À noite, a turma dos “travecos” e “piranhas” às vezes dão uma limpa nos “descuidados” que chegam até eles, mas é um ou outro caso, pois a turma que freqüenta mesmo vai em grupo e já são conhecidos das “moças”.
Para o informante, os que dão mais trabalho são “as turmas que puxam um fumo”, na maioria “rapazes e poucas moças ali do Liceu que se junta com uns desocupados que passam o dia rolando pelo Parque”. Segundo o informante, “dão trabalho mais pelo barulho que fazem e as brincadeiras que fazem, assustando os transeuntes e espantando a freguesia dos comerciantes da região. Mas tudo fogo de palha...”.
Na fala do policial, assim, o Parque também é vivenciado e lido através da memória afetiva, de um lugar que o viu crescer e de que ele hoje também é parte de sua manutenção, como lugar seguro. É através destas imagens que decodifica o seu limite e o freqüentador, ao mesmo tempo extensão de seu lazer e de seu fazer, simultaneamente lugar de identificação de laços pessoais com outros freqüentadores de agora ou de antes do lugar, e lugar também de tipologia e identidade de pessoas e grupos sob a ótica da segurança local.
As prostitutas, quase sempre moças vindas do interior do estado ou moradoras da periferia da cidade, freqüentam o Parque durante todo o dia, mas assumem o local quando chega à noite, o comércio fecha as portas e o público maior já retornou para suas casas. Ocupam alguns canteiros do Parque, perto dos quiosques e levam os seus fregueses para os hotéis e pensões baratos ao redor do Parque ou para o aconchego de suas árvores. A freguesia é constituída, principalmente, de trabalhadores, comerciários, bancários, camelôs e de serviços gerais que tem o centro como local de trabalho e, muitas vezes, moradia.
Os travestis são um grupo à parte. Usam os canteiros da Lagoa em profusão, quase nus invadem os anéis viários que circundam o Parque durante todos os dias a partir das 22 horas. São conhecidos pelas performances que costumam realizar, bem como, pelos roubos e pequenos delitos que submetem às vitimas que chegam até eles desavisadas. A maior parte deles são de rapazes pobres que usam a prostituição como sobrevivência.
Ao conversar com algumas prostitutas e travestis que vivem à noite do Parque e lá fazem seu ponto de trabalho, eles revelam também a sua vinculação afetiva ao local, embora, muitas vezes, associado aos diversos tipos de descriminação e repressão por parte das rondas noturnas policiais e da população em geral. Mas se acham “a cara da Lagoa”, sem eles, para eles, à noite, “a Lagoa não seria a Lagoa”, como afirmou com euforia um dos informantes.
Não se vêem como um grupo perigoso, acham que esta visão é mais
“uma arma preconceituosa contra nosso trabalho e forma de vida, se o negócio é com a gente travesti então é que a coisa fica braba. Chamam a gente de tudo e, às vezes vêem em bando querendo tirar sarro de nós, dar na gente, quando não comem e não querem pagar. Aí vai o troco. A gente se defende apenas. Tamos fazendo o nosso trabalho e se vem uns caras querendo engrossar a gente engrossa junto”.
As prostitutas atuam isoladas, olhadas de perto pelos seus “donos”, circulando pelas mesas dos quiosques, ou paradas nas marquises das lojas de departamento fechadas, ou nos bancos dos canteiros do Parque. São sempre ariscas com novas candidatas a fazerem ponto no local, muitas delas agredidas e o dinheiro conseguido na noite tomado. É mais difícil uma nova mulher assumir o ponto local, do que entre os travestis.
Mais do que as prostitutas, os travestis formam um bloco coeso, se agrupam em um só canteiro do Parque, todos se conhecem e marcam o ponto. Novos pretendentes ao lugar, por sua vez, passam por determinados “vexames”, quase uma prova, antes de serem aceitos e começarem a usar o ambiente comum. Enquanto não acontece ficam às margens do núcleo central onde se instala o comércio homossexual e não recebem a proteção do grupo, pelo contrário, muitas vezes são perseguidos pelos próprios travestis locais, que tomam sua “féria”, ou os apurados da noite[12].
Como os travestis, se acham “a cara da Lagoa”, e muito do que se fala da Lagoa hoje reflete o colorido que impregnam ao local. Acha que não incomodam ninguém, fazem os seus trabalhos, mas se as pessoas “mexem com a gente leva o troco”.
Às vezes existem rusgas entre prostitutas e travestis, às vezes se unem contra agressores. No conjunto, fazem à noite local junto com os boêmios, os comerciantes e trabalhadores dos quiosques, mendigos, moradores de rua e alguns transeuntes que por lá trafegam ou usuários de transportes urbanos que chegam no ponto de ônibus durante o final da noite e madrugada (Foto 8).
Quando o sol começa a tomar conta da Lagoa, os seres noturnos começam a dar lugar a mais um dia de caminhada pelo passeio do Parque, de chegada para o trabalho, para as compras ou estudo, para o tráfego que começa a aumentar, para o burburinho e diversas sonoridades que vai invadindo o espaço, até chegar ao seu auge entre dez da manhã às oito da noite, quando se reinicia mais esvaziamento da cidade e mais um turno da noite no Parque.
Conclusão
O Parque Sólon de Lucena, como se pode ver até agora pelas descrições, é de muitas vozes, é um lugar polifônico de onde se ouve quase toda a cidade. O burburinho que alimenta a Lagoa, deste modo, é composto pelos diversos usos que atravessam o local no cotidiano da cidade. Formas de apropriação do espaço que vão gerando núcleos de construção imaginária e real sobre o lugar e a sua significação para a cidade e para a vida de cada um que nela habita.
Que vão compondo um painel afetivo, de relações delicadas recheadas de amor e desamor, preocupação e indiferença, participação ou anomia, presença física no Parque e negação de freqüentá-lo, grupos que se sentem incluídos no espaço da Lagoa e os que se sentem excluídos, grupos que se sentem excluídos do espaço da cidade, mas que se acham a cara da Lagoa, apesar da perseguição da cidade.
Relações multiformes, enfim, embora sempre ambivalentes, na maior parte das vezes polares, norteiam os sentidos e emoções do joãopessoense com o Parque Sólon de Lucena. Preenche o significado do querer a cidade, de referendar a cidade que queriam ter, seus ápices, suas diversas faces, - onde a Lagoa sempre está presente como uma das mais importantes, - seus desvelos, e o sentimento quase naturalizado de quase perda, misto de indiferença e quase desamor, pela degradação que o espaço está sujeito, ou porque o mesmo já não é aquele vivido no tempo vivido pelo morador, ou sonhado por outro como deveria ser. O espaço do Parque, contudo, está presente na memória visual e afetiva da cidade.
Em uma rápida excursão pela Internet, o viajante encontra mais de novecentas páginas que retratam o cartão postal Lagoa e declaram o seu amor, a sua preocupação e críticas, mas de todas emanam os vínculos de pertença ao lugar. É importante frisar que, a maior parte delas, traduz a imagem oficial da cidade, através de sites do governo estadual e municipal, mas muitas delas indicam apenas o afeto com o local, mesmo que povoadas, às vezes, de preocupações e provocações irônicas da degradação ou da mudança de costumes na cidade e, aqui, principalmente, no Parque Sólon de Lucena, a Lagoa.
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Referências Bibliográficas
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ARANHA, Carlos. Estrovenga e fedorentina. Informativo Para'iwa, João Pessoa, 05 de outubro de 2001.

LEITÃO, Cláudia, Org. Gestão Cultural: significados e dilemas na contemporaneidade. Fortaleza, Banco do Nordeste, 2003.

HONORATO, Rossana. Se essa cidade fosse minha... A experiência urbana na experiência dos produtores culturais de João Pessoa. João Pessoa, Ed. Universitária, 1999.

KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Medos Corriqueiros: a construção social da semelhança e da dessemelhança entre os habitantes urbanos das cidades brasileiras na contemporaneidade. Projeto de pesquisa. João Pessoa, GREM / DCS / UFPB, 2001.

KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. O local enquanto elemento intrínseco da pertença. In: Cláudia Leitão (Org.), Gestão Cultural: significados e dilemas na contemporaneidade. Fortaleza, Banco do Nordeste, 2003.

KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Parque Sólon de Lucena: espaço público, potencial de urbanidade e desenvolvimento da cidade. Projeto de extensão. João Pessoa, GREM / DCS / PROBEX-PRAC /UFPB, 2004.

KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Rastros de Tragédia: os movimentos sociais na Paraíba. João Pessoa, Textos UFPB-NDIHR, n. 01, 1983.

KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Trabalho e disciplina. Os homens pobres nas cidades do Nordeste – 1889-1920. In: Vários Autores, Relações de Trabalho e Relações de Poder: mudanças e permanências, v. 1. Fortaleza, Banco do Nordeste, 2003.

MAIA, Doralice Sátyro. Tempos Lentos na Cidade: permanências e transformações dos costumes rurais em João Pessoa – PB. Tese. São Paulo, USP, 2000.

Artigos de Jornais:

Lagoa: cartão postal da cidade. O Norte, João Pessoa, 20 de janeiro de 2004 (http://www.onorteonline.com.br/paraiba/) (lido em 04/09/2004).
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Notas
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[1] Este artigo apresenta as primeiras discussões da pesquisa de campo do projeto de extensão “Parque Sólon de Lucena: espaço público, potencial de urbanidade e desenvolvimento da cidade” (KOURY, 2004) - que tem como base a pesquisa “Medos Corriqueiros: a construção social da semelhança e da dessemelhança entre os habitantes urbanos das cidades brasileiras na contemporaneidade” (KOURY, 2001). Os dois projetos encontram-se em desenvolvimento no GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia da Emoção, sob coordenação do Professor Mauro Guilherme Pinheiro Koury.

[2] Os irerês (Dendrocygna viduata) são aves migratórias e estão presentes em todo o Brasil, e também na África. Os adultos, de aproximadamente 44 cm, possuem uma máscara branca, asas negras bicos e pés escuros. São mais ativos ao entardecer, quando sobrevoam assobiando, principalmente durante as chuvas. Durante o dia, descansam em bandos pequenos, permanecendo de pé à beira dos lagos, onde se alimentam. (Lido em http://www.terra.com.br/avesmigratórias/, em 09/09/2004).

[3] Notícias de prisões por motivos de pequenos furtos, desordem, brigas, bebedeiras, atentado ao pudor, agressão verbal, desacato, acontecidas no Parque são freqüentemente registradas pela impressa local. Ver, por exemplo, o jornal O Norte, João Pessoa, de 19 de junho e 20 de outubro de 2003.
[4] No dia 04 de agosto de 2004 foi aplicado, também, pelos do curso de Ciências Sociais da UFPB, bolsistas e estagiários do GREM, Patrick César da Silva, Ana Karolina de Araújo, Clara Bezerril Câmara e Alexandre Paz de Almeida, com supervisão de campo pela pesquisadora do GREM, Professora Maria Sandra Rodrigues dos Santos, sob a minha orientação, um survey entre os passantes e freqüentadores do Parque Sólon de Lucena. O survey foi aplicado nos turnos diurnos, manhã e tarde, de ocupação, e teve a finalidade de mapear as formas de percepção e uso do Parque através da categoria de pertença.
[5] É bom frisar que a prostituição feminina está presente em todos os núcleos do Parque, durante a maior parte do dia. Á noite é onde o espaço de prostituição, porém, fica mais visível.
[6] Existe um ônibus do Manaira Shopping para transportar, gratuitamente, pessoas que querem ir ao Shopping fazer compras.
[7] A população entrevistada no survey o Parque Sólon de Lucena é moradora dos bairros: Torre, Treze de Maio, Expedicionários, Jaguaribe, Mandacaru, Roger, Varadouro, Ilha do Bispo, Tambiá, Padre Zé, Alto do Mateus e Centro, Castelo Branco, Miramar, Estados, Ernani Satyro, Bancários, Cidade Universitária, Jardim Luna e Ipês Mangabeira, Cristo, Geisel, José Américo, Valentina e Jardim Planalto Funcionários I, II, III e IV, Cruz das Armas, Industrias, Distrito Mecânico, Costa e Silva, Novais, Esplanada, Rangel, Jardim São Paulo, Bessa, Manaira.

[8] Bayeux, Cabedelo, Conde e Santa Rita.
[9] O termo desvalido utilizado por dois informantes fala sobre uma questão moral da exclusão social importante de ser pensada. Desempregados, viciados – em álcool e droga, meninos de rua, entre outras categorias são vistas pelo aspecto moral de pessoas menores socialmente e que precisam de proteção institucional para uma possível reintegração social, antes que “afundem de vez no lodo sem volta da marginalidade”. É uma visão compartilhada, principalmente por pessoas e grupos de pessoas com tendência a uma moral religiosa, seja evangélica, seja católica carismática, entrevistadas durante a estada em campo.
[10] Bairro popular e central da cidade de João Pessoa.
[11] Desde os anos oitenta as festas de São João têm comemoração oficial, com bandas e barracas de comida típicas no Parque Sólon de Lucena.
[12] Conversei com membros de uma organização não governamental, a Mel, que trabalha com a questão da dignidade homossexual e dá apoio logístico aos travestis e michês da noite joãopessoense. De acordo com a Mel, os travestis da Lagoa são, em sua maior parte oriundos do interior do estado e de bairros pobres da periferia da cidade. A noite é o único recurso da sobrevivência. Embora informados pelas doenças venéreas, muitos deles por um pouco de dinheiro a mais não usam proteção. Muitos já morreram ou estão contaminados pelos mais diversos tipos de doenças sexualmente transmissíveis. O apoio logístico da Mel é, de um lado, estabelecer bases de informação e ajuda na questão de saúde e em relação ao estigma social. Mas, segundo os próprios organizadores da entidade, o acesso é ainda muito restrito, embora o universo homossexual de João Pessoa já os respeitem como movimento social. O mesmo ocorre com a associação que lida com a questão da prostituição feminina. Estas falam das agressões de que são vítimas as mulheres que se dedicam ao ofício e, que o ambiente da prostituição da Lagoa é um dos mais severos da cidade.
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Fotos e Mapas
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Foto 1 – A Lagoa (dos Irerês) antes da urbanização e de se tornar Parque Sólon de Lucena (Créditos: Walfredo Rodriguez)
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Foto 2 - Parque Sólon de Lucena nos anos quarenta (Foto: Luiz Farias).
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Foto 3 - O traçado do Parque Sólon de Lucena tendo como centro o espelho d’água da lagoa. (Créditos: PBTUR)
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Foto 4 – Vista aérea atua do Parque Sólon de Lucena (Foto: Mazaomi Mochizuki).
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Foto 5 - Acampamento na Lagoa pelo MST. (Crédito: Jornal O Norte On-line, de 12 de abril de 2004).
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Mapa 1 - Mapa do Parque Sólon de Lucena. (Créditos: http://www.terra.com.br/mapas/ - retirado em 09/09/2004)
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Foto 6 - Uma das paradas de ônibus no Parque Sólon de Lucena (Foto: Mano de Carvalho – Agência Ensaio)
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Foto 7 - Veículo pega fogo após bater em palmeira imperial da Lagoa. (Créditos: O NORTE On-line de 07 de agosto de 2003)

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Foto 8 – A Lagoa de madrugada. (Foto: Leandro Neves)

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Este artigo, com algumas reformulações foi publicado:

KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Pertença e uso do espaço público: um passeio através do Parque Sólon de Lucena. Revista Studium, n. 19, ISSN 1519-4388, Instituto de Artes, Unicamp, 2005. http://www.studium.iar.unicamp.br/19/06.html

KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Um passeio através do Parque Sólon de Lucena. Uma narrativa sobre a emoção pertencer e uso do espaço público. Os Urbanitas. Revista de Antropologia Urbana, vol. 2, n. 2, ISSN 1806-0528, NAU Núcleo de Antropologia Urbana, USP, 2005. http://www.aguaforte.com/osurbanitas2/Koury.html

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quarta-feira, 27 de maio de 2009

Utopias Urbanas na Revista Cronos


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Acaba de ser lançado on-line, o novo número da Revista Cronos (vol. 9, n. 1) , ISSN 1982-5560, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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Este novo número tem como chamada principal o Dossiê sobre Utopias Urbanas.

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Vale conferir!

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Outros dossiês elaborados pela Revista Cronos, ISSN 1982-5560, podem ser lidos integralmente no endereço:


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terça-feira, 26 de maio de 2009

2a.Comunicação sobre a enquete "Sujeira e Imaginário Urbano no Brasil - 2009" a cidade do Recife (PE)

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O que é sujeira ou sujo para os habitantes da capital pernambucana - 2009


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Mauro Guilherme Pinheiro Koury


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Neste momento damos continuidade aos resultados da Enquete "Sujeira e Imaginário Urbano no Brasil - 2009", aplicada em seis capitais de estados do Brasil entre março e abril de 2009. Como já se falou anteriormente na 1a Comunicação sobre esta enquete, ela é um subproduto de uma pesquisa maior em desenvolvimento no GREM, sob a coordenação do autor, intitulada "Medos Corriqueiros e Sociabilidade Urbana no Brasil". Para alguns resultados desta pesquisa ver Koury (2008, 2007, 2006 e 2005).

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Esta enquete surgiu como uma necessidade de averiguar o aparecimento da noção de sujeira usada por vários entrevistados na pesquisa Medos Corriqueiros, associada à noção de medo no urbano brasileiro contemporâneo.

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Assim, entrando na terceira fase da pesquisa Medos Corriqueiros, e na visita a várias capitais de estados brasileiros para o aprofundamento do questionário aplicado as 27 capitais de estados do país, em entrevistas personalizadas com pessoas que se dignaram a conversar com o pesquisador após terem respondido o questionário, se aproveitou a visita a estes estados e foi aplicada nas cidades de João Pessoa, Paraíba; Recife, Pernambuco; Belém, Pará; Brasília, Distrito Federal; São Paulo, São Paulo; e Curitiba, Paraná uma enquete sobre o que é sujo a 390 informantes das seis capitais assinaladas.

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Os resultados desta enquete estão em processo de tabulação, e este Blog ficou com a responsabilidade de divulgar os primeiros dados desta enquete. No dia 22 de maio de 2009 foram divulgados os primeiros dados da enquete para a cidade de João Pessoa, capital do estado da Paraíba. Neste momento, se divulga os primeiros dados da tabulação para a cidade do Recife, capital do estado de Pernambuco. Nas próximas semanas se divulgarão os dados para as demais cidades pesquisadas e culminará com um balanço comparativo entre as seis capitais onde a enquete foi aplicada.

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Como já se falou anteriormente, quando da divulgação dos dados iniciais para a cidade de João Pessoa neste Blog, não se tem intenção, neste momento, de uma análise mais aprofundada a nível teórico e metodológico da questão relacionada à noção de sujo ou de sujeira e sua vinculação com a noção de medo urbano, mas, de apresentar elementos que vislumbrem o alcance analítico e a riqueza dos dados conseguidos pela enquete para uma interpretação da cultura política no Brasil urbano de hoje. Uma análise mais acurada deverá em breve aparecer em forma de artigos a serem apresentados a revistas acadêmicas nacionais e internacionais, a partir do segundo semestre de 2009. O primeiro desta série de artigos deverá aparecer no número de dezembro de 2009 da RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção (v. 8, n. 24, dez. 2009) do GREM.



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Nesta série de comunicações para este Blog sobre cada cidade trabalhada na enquete haverá, apenas, um único cruzamento de dados. Tal como para a cidade de João Pessoa, para a cidade do Recife, bem como nas demais cidades onde a enquete foi aplicada, os informes para o Blog contarão, exclusivamente, com uma apresentação das categorias de respostas para a questão O que é sujo ou sujeira para você cruzada com a categoria sexo do entrevistado. As demais questões serão apresentadas no relatório final da pesquisa e na série de artigos acima mencionados.



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Portanto, para a cidade do Recife, como já o foi para a cidade de João Pessoa, será apresentado dois gráficos: o primeiro, apresentando as categorias para a questão O que é sujo ou sujeira sobre o total dos respondentes; e o segundo, cruzando as categorias sobre O que é sujo ou sujeira com a categoria sexo dos informantes.

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A enquete na cidade do Recife, Pernambuco

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Foram aplicados 60 questionários na cidade do Recife para a enquete "Sujeira e Imaginário Urbano no Brasil – 2009". Estes questionários foram aplicados em locais de grande movimentação da cidade, como os shoppings, universidades, as estações de metrô, a praia de Boa Viagem e o centro da cidade, durante dois dias de intensa atividade. Dos 60 informantes, 26 eram do sexo feminino e 34 do sexo masculino, com idades que variaram de mais de quinze anos a mais de oitenta anos. A escolaridade também variou do analfabeto ao pós-graduado (especialização, mestrado e doutorado), e as profissões foram as mais diversas, de desempregado a dona de casa, de ambulante a empresários, de diversas profissões liberais, a professores de todos os graus, políticos profissionais, membros das forças armadas, da polícia civil e militar, entre outras.



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O elenco de religiões dos entrevistados, também, variou entre a maioria católica, e uma gama de evangélicos, passando por espíritas, umbandistas até ateus. Como já se falou um pouco acima, nesta comunicação apenas se abordará a categoria sexo com as categorias apresentadas à questão O que é sujo.


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O que é Sujo para os Recifenses

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Aqui se apresenta o Gráfico 1 com a totalidade dos respondentes à questão O que é sujo ou sujeira para você. Este Gráfico 1 dispõe sobre as categorias apontadas pelos 60 entrevistados, independente de qualquer variável, para a questão mencionada. Como para a cidade de João Pessoa, e para as demais cidades que responderam a esta enquete, as respostas dos entrevistados foram listadas e depois tabuladas a partir de um conjunto de categorias retiradas das próprias respostas dos informantes à questão. Assim, chegou-se a uma série de categorias com que foram submetidas as 390 respostas dos entrevistados, possíveis e passíveis de serem comparadas em uma análise posterior, nas seis cidades em que a enquete foi aplicada.



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Na cidade do Recife, os 60 entrevistados apresentaram respostas com relação ao que consideram sujo, comparáveis com as de João Pessoa e demais cidades que constaram da amostra da enquete. Em relação a João Pessoa, uma nova categoria apareceu: esta nova categoria relaciona sujo ou sujeira à Falta de Consciência Ecológica. Esta nova categoria vem aparecendo em algumas outras capitais estudadas, mas não em todas, e está ligada a questão do desmatamento das matas e florestas, da poluição dos rios e do ar, ao aterramento dos mangues, enfim, a uma política de desenvolvimento que não leva em conta uma visão de sustentabilidade e, sim, a "uma visão de progresso pela ganância e destruição", de acordo com as palavras de um entrevistado, professor de biologia da rede pública municipal da cidade do Recife.



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O Gráfico 1, como já dito, representa as respostas da totalidade dos respondentes da cidade do Recife à questão O que é sujo para você. As sessenta respostas foram agrupadas nas categorias Desrespeito ao Cidadão; Falta de Confiança; Falta de Consciência Ecológica; Falta de Higiene; Falta de Zelo com a Coisa Pública; Fluídos; Gente Fraca; Homossexualidade; Imoralidade; Mendicância e Violência Urbana, como categorias associadas à sujeira ou ao sujo pelos entrevistados. De acordo com o Gráfico 1, a categoria que foi mais indicada pelos entrevistados em recife foi a do Desrespeito ao Cidadão, com 23,3% das respostas.


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A categoria Desrespeito ao Cidadão é uma categoria que engloba respostas associadas à qualidade de vida dos habitantes da cidade, e onde se vê respostas ligadas desde aos problemas de saneamento básico, de esgotamento sanitário, de falta de infra-estrutura de transportes públicos, das condições das vias expressas (calçadas e ruas e avenidas), da iluminação pública e, principalmente, da condição de higiene da e na cidade. É sobre a indicação da sujeira associada à falta de higiene na cidade do Recife que as respostas dos entrevistados apontam com maior frequência.



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"Cidade imunda", com "lixo pelas ruas"; a "cidade do Recife é o esgoto de Pernambuco"; "a gente pula excrementos e lixo ao andar pela cidade", são algumas das respostas dos entrevistados que associam o viver na cidade de Recife com o viver na sujeira. Este é um problema que sempre marcou o imaginário recifense: o Recife como uma linda, porém, mal cuidada cidade. No entanto, no momento da aplicação do questionário, como até o momento atual, a cidade vive um problema conjuntural grave com o problema do lixo urbano. Desde que o atual prefeito da cidade assumiu a gestão da cidade, em janeiro de 2009, que o lixo urbano não tem sido recolhido regularmente, estando a cidade com um acúmulo grande de detritos e entulhos por toda à parte, principalmente, nos bairros mais periféricos e nos morros da cidade, onde moram a população mais pobre.



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A construção de um boneco apelidado de "João Lixão", por uma comunidade de moradores de um bairro periférico, ligado ao nome do prefeito da cidade João da Costa, que faz visita periódica ao acumulo de lixo nas ruas da cidade, tem sido o elemento de humor (trágico) a esta questão. A mídia, por seu turno, não se cansa de especular em relação ao problema do lixo na cidade, que é assunto em todos os bares, esquinas, cafés, filas de banco e outras, metrô e ônibus, ou onde se encontre mais de um recifense reunido. O prefeito por seu lado pede mais um tempo para resolver a questão, mas esta é adiada e, na nas duas primeiras semanas do mês de maio de 2009 deu para faltar a compromissos com receio de ser cobrado por populares e jornalistas de plantão.



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O caso do problema do lixo que a cidade do Recife vivencia desde o início da gestão do atual prefeito é um indício, talvez, dos informantes a enquete apontar com uma frequência grande a falta de gerenciamento da cidade em relação ao lixo urbano como um grande desrespeito ao cidadão recifense. E 23,3% dos entrevistados o associarem diretamente ao que é sujeira para eles.



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Ainda como desrespeito ao cidadão encontra-se relacionado às respostas dos 5% dos entrevistados que ligaram o que é sujo à Falta de Consciência Ecológica. Embora com um discurso mais articulado ligando a questão com o conceito de desenvolvimento sustentável, e com uma crítica ao plano diretor da cidade, as respostas vinculadas a esta categoria apontam como sujeira a poluição dos rios e do ar, ao lixo acumulado nas encostas dos morros ou jogado diretamente nos rios e canais da cidade, a falta de saneamento, a destruição das matas e aos detritos jogados pelas indústrias nas cabeceiras dos rios. As duas categorias, em certa medida, encontram-se relacionadas e se completam. Ambas remetem para a questão do desrespeito ao cidadão, embora a segunda implique uma questão mais ampla ligada à problemática da ecologia e do desenvolvimento sustentável.


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Pode-se juntar a ela, também, a questão trazida pela categoria Fluídos, com 3,3% das respostas. Algumas das respostas que apontam os Fluídos à sujeira, a remetem para a questão da saúde pública. Os gases poluentes, o fedor da cidade, o chorume e os gases produzidos pelo lixo acumulado, a água contaminada causando epidemias, entre outros aspectos, são apontados como males à saúde pública na cidade do Recife e associados à sujeira e à falta de respeito ao cidadão.



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A categoria Fluídos, porém, também está associada a outros tipos de poluição, a principal delas liga sujeira ao sangue menstrual ou ao sangue derramado, outros tipos de respostas indicam Fluídos como sujeira dentro de uma prática comportamental que, se também encontra-se associada à saúde pública, tem aqui mais uma conotação moral, como uma ponte direta ao que muitos chamaram de 'falta de educação familiar'. Entre os Fluídos com conotação mais moral estão o cuspir nas calçadas, o escarrar, o soltar gases intestinais em público, entre outros.



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Esta segunda conotação da categoria Fluídos, no seu sentido moral, está mais associada, deste modo, a outra categoria, a Falta de Higiene apontada por 11,7% dos entrevistados como sujeira. A categoria Falta de Higiene, por sua vez, embora associada a questões morais e disciplinares ligadas a higiene pessoal, está relacionada, especificamente, nos respondentes, à questão da organização privada da vida.



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A vida doméstica é apontada como suja quando associada à falta de limpeza: banheiros, cozinhas, e seus utensílios cuidados displicentemente, pragas domésticas, aspecto pessoal malcuidado, são os elementos mais apontados como falta de higiene ou limpeza e associados com sujeira. O cuspir, o escarrar, os gases intestinais, são associados também à falta de higiene pessoal, e têm uma conotação como sujeira, principalmente, quando em público, ou quando deixados visíveis para o público. Então, nestes casos, são associados à sujeira enquanto expressão comportamental, isto é, de falta de educação doméstica, estando relacionados, assim, à base privada da vida social que se expressa no público como uma ação não educada ou não disciplinada.



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Daí se confrontar também com outra categoria que responde por 11,7% dos entrevistados, que é a categoria que liga a pobreza à sujeira. A categoria Mendicância, Gente Pobre, Gente Suja, como os termos já delimitam por si o conteúdo, associam preconceituosamente a pobreza à sujeira. O ser pobre é associado a um ser sujo, que não tem higiene, que não tem educação, que não ter caráter, que não é digno de confiança, e com alguém que se deve olhar com receio, em seus diversos significados: receio de ser importunado com pedidos de esmolas; de ser roubado; de ser contaminado por doenças, entre vários outros receios.



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Muitos dos entrevistados exemplificam o grande número de mendigos e meninos de rua pela cidade como um caso típico da sujeira com que o cidadão é obrigado a conviver no cotidiano recifense. Ora pelo assédio a que são submetidos, ora pelo aspecto de repugnância que causam ao cidadão comum, ora pelo receio de contaminação, ora, ainda, pelo medo de assalto e outros tipos de violência urbana.



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Os homens pobres, assim, não são vistos como cidadãos, mas como um entulho que incomoda, como uma sujeira a mais na cidade. Daí muitos vincularem os pobres a outra categoria que também responde por 11,7% dos informantes da enquete sobre sujeira, aqui trabalhada, que é a categoria Violência Urbana.



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Recife é considerada como uma das cidades mais violentas do Brasil. O medo da violência é, portanto, visível entre os habitantes da cidade e, talvez, por motivos conjunturais que levaram os respondentes a indicar o problema do lixo como o desrespeito à cidadania mais gritante na cidade, no momento da aplicação dos questionários desta enquete, não tenha sido a principal categoria apontada como sujeira da cidade. Em todo caso, porém, a Violência foi a terceira categoria apontada pelos entrevistados como sujeira, junto com as categorias de Mendicância... e de Falta de Higiene, ambas também com 11,7%.



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Ao se juntar a categoria Violência Urbana com a Categoria Mendicância... as duas indicam que juntas, comportam 23,4% dos entrevistados que responderam a questão. Sob a ótica do imaginário dos respondentes, a pobreza é a principal causa e a causadora da violência da cidade. Uma mulher associando a os meninos de rua e a mendicância à sujeira informa que só sai à "rua porque é o jeito, mas morro de medo de ser assaltada pelas calçadas, pelos arrastões que fecham ruas inteiras quando o sinal (de trânsito) fica vermelho, e de ser agredida (moralmente e sexualmente) por um bandido desses que invadem a cidade". Outra indica a "escória humana se arrastando pelas ruas cheirando cola (de sapateiro), dormindo e fazendo suas necessidades nas calçadas, assediando as pessoas e agredindo principalmente as mulheres, as crianças de família e as pessoas mais velhas... eu mesma já fui roubada mais de uma vez por esses marginais... por mim iriam todos para a cadeia e, lá, deviam ser mortos... prá eles não tem jeito e prá nós é um problema sem fim... vivemos confinados e com medo. A cidade é dessa escória...". Outros indicam as Gangues que controlam as favelas da cidade como mais um problema da Violência Urbana associada à pobreza e a miséria da cidade.



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Uma questão apenas levemente indicada entre os respondentes, com 1,6% das respostas, associa sujeira a Gente Fraca. A categoria Gente Fraca está associada à fraqueza de caráter, a pessoas que se deixam levar facilmente pelo vício. São casos associados, principalmente, ao alcoolismo e ao uso das drogas. No único caso apontado na cidade do Recife, uma mulher fala do "lixo humano que são as pessoas fracas que se deixam levar pelo vício" e que estes "devem ser dignos de pena" e que são as "vítimas preferenciais" das gangues que invadem as favelas e os bairros da periferia da cidade e "controlam o tráfico de entorpecentes", acabando e "desfigurando famílias de bem" quando um dos seus membros é fraco e se deixa levar pelo vício.



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No caso presente, embora veja o vicio como uma fraqueza de caráter e como algo sujo, a entrevistada os vê como vítimas do tráfico. Estes, sim, são vistos como a principal causa da destruição das "famílias de bem" e são eles, em última instância, a sujeira que contamina e destrói os lares que se deixam tocar pelo vício de que são culpados de espalhar.



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Junto com a questão da fraqueza de caráter, ligada ao alcoolismo e ao uso de drogas, encontra-se a categoria Imoralidade, como uma categoria indicada por 6,7% dos entrevistados na enquete sobre o que é sujo na cidade do Recife. A categoria Imoralidade como algo sujo remete diretamente para a pornografia e a permissividade e instabilidade das relações entre as pessoas, que, segundo os informantes que a indicaram, são produtos de uma sociedade sem moral e bons costumes e muito presa a "lei do desejo e as coisas materiais", nas palavras de um respondente.



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A Imoralidade, deste modo, é vista pela maior parte dos entrevistados que a indicaram como sujeira, como problemática do comportamento humano e social contemporâneo, e ligado à dissolução dos costumes e da moral na cidade. Os casamentos se fragmentam com uma facilidade imensa, as mulheres e os homens já não reconhecem mais o seu lugar social, não há mais respeito à castidade, os jovens trocam de parceiros com muita facilidade, a poluição visual a que o sexo é exposto desde as bancas de revistas até a televisão "que invade nossas casas", segundo uma entrevistada, são explicações para a indicação do que acreditam ser Imoral como sujeira.



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Outra categoria presente entre os entrevistados recifenses é a da Falta de Confiança, que responde com 5% do total dos entrevistados. Esta categoria está associada, principalmente, por um lado, a categoria Imoralidade: a questão da traição, do ser corno, do não respeitar os parceiros (homens ou mulheres) dos outros, são indicados como comportamentos atuais e são vistos como sujos através da ótica da dissolução dos costumes e da fragmentação dos laços familiares e da perda de um lugar de reconhecimento dos papéis sexuais entre homens e mulheres no social. Por outro lado, porém, a categoria Falta de Confiança remete para a problemática da lealdade e da fidelidade nos laços sociais entre as pessoas envolvidas. O individualismo crescente na cidade vem quebrando laços de pessoalidade outrora existentes, baseados na reciprocidade e na confiança entre parceiros, isolando cadê vez mais os indivíduos e aumentando a concorrência entre eles.


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A categoria Homossexualidade, com 6,7% dos respondentes na cidade do Recife a enquete sobre 'Sujeira e imaginário urbano no Brasil – 2009' é uma categoria ligada à questão da dissolução dos costumes e a imoralidade nas relações sociais no Brasil e na cidade do recife, em particular. A questão da opção sexual e da sexualidade é vista como sujeira e como um dos males da modernidade, onde a falta de reconhecimento dos papéis atribuídos aos homens e às mulheres cria um fosso moral que deveria ser combatido pelas pessoas honestas.


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A categoria homossexualidade, portanto, indica o comportamento homossexual como sujo e como um dos vetores que levam a dissolução da moral e dos bons costumes. Expressa o preconceito a livre opção sexual e a sexualidade que não é regida pelos códigos da heterossexualidade.


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A última categoria indicada pelos informantes da enquete Sujeira, como já acontecido na cidade de João Pessoa, surpreendeu o pesquisador. Esta última categoria foi indicada por 15% dos entrevistados e têm como sujeira a Falta de Zelo com a Coisa Pública. Esta categoria indica como sujo o comportamento e a ação política nacional e local. Fala da politicagem como um dos males do Brasil contemporâneo e da corrupção, do mau uso dos gastos públicos, da falta de moral dos políticos e gestores brasileiros e da hipocrisia parlamentar e do poder executivo que vêem a política como um argumento para o enriquecimento ilícito e rápido pessoal: "e o povo que se lixe", como informou uma entrevistada que indicou esta categoria como o que considerava sujo no Recife e no Brasil.


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A surpresa do pesquisador é que o mesmo não esperava uma tão maciça correlação da política como sujeira no país. Esta correlação tem a ver, por outro lado, com a desesperança com a política e com as instituições brasileiras e locais. Não é sentida, como na questão da categoria Desrespeito ao Cidadão, quando remetida explicitamente à problemática do lixo pelas ruas da cidade, como algo conjuntural. A categoria Falta de Zelo é sentida como algo estrutural no Brasil como um todo e os políticos e os gestores como preocupados "em encher os bolsos", segundo as palavras de um entrevistado, e "o povo que se exploda" (o exploda tendo o sentido de ser mais explorado, mais humilhado, mais desrespeitado no cotidiano brasileiro e da cidade), como disse outro informante.


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Uma rápida comparação entre a catgegoria Sexo e a categoria O que é Sujo na cidade do Recife
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O Gráfico 2, abaixo, faz uma comparação entre o que os homens e a mulheres da cidade do Recife indicam como sujo ou sujeira. Nesta comunicação apenas haverá uma indicação de como se situam homens e mulheres em relação às categorias apresentadas, sem entrar em nenhuma análise sobre os dados comparados. Estes dados serão posteriormente analisados no relatório final da pesquisa e na série de artigos que deverá aparecer nas revistas acadêmicas a partir de novembro de 2009.

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Como apresentação apenas das diferenças nas respostas dadas pelos homens e mulheres recifenses que responderam a enquete, se lembra ao leitor, aqui, que as mulheres respondem por 43,3% dos respondentes e os homens por 56,7% dos 60 entrevistados.
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As mulheres recifenses apontaram com evidencia maior o que consideravam sujeira junto às categorias de Desrespeito ao Cidadão, com 26, 8% das entrevistadas contra 20% dos homens; a Falta de Consciência Ecológica, com 6,7% das respostas contra 3,3% dos homens; a Falta de Higiene, com 13,3% de indicações contra 10% dos homens; a categoria Gente Fraca, com o total de 3,3% das respostas contra nenhuma resposta masculina; a categoria Imoralidade com 6,7% das respostas contra 3,3% dos homens, a categoria Mendicância, Gente Pobre, Gente Suja com 13,3% de indicações femininas contra 10% dos homens; e, finalmente, a categoria Violência Urbana, também com 13,3% de mulheres contra 10% dos homens.

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No caso dos homens, estes indicaram em maior número as categorias de Falta de Confiança, com 6,7% de indicações contra 3,3% das mulheres; a Homossexualidade com 13,3% de indicações contra nenhuma indicação feminina; e a Falta de Zelo com a coisa Pública: categoria indicada por 20% dos homens entrevistados, contra 10% das mulheres.


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Nota Final
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Tanto quanto já indicado pelos dados apresentados neste Blog em 22 de maio de 2009 na comunicação "O que pensam os moradores da cidade de João Pessoa, Paraíba, sobre o significado de sujeira", os dados para a cidade do Recife mostram a riqueza analítica trazida pela categoria Sujo ou Sujeira para a compreensão da cultura política e comportamental dos habitantes urbanos no Brasil de hoje.



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Nos próximos dias serão apresentados os dados para a cidade de Belém, capital do estado do Pará, e em seguida para as diversas capitais restantes onde foram aplicados os questionários da enquete "Sujeira e imaginário urbano no Brasil – 2009". A última comunicação apresentada fará um balanço comparativo das respostas entre as diversas capitais onde a enquete foi desenvolvida.




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Lembra-se, apenas, que nestas primeiras notícias divulgadas neste Blog sobre a enquete Sujeira... não há intenção de uma análise mais aprofundada, o que será feita posteriormente, como indicado, mas uma indicação do imaginário urbano no Brasil sobre o que é sujo.


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Bibliografia


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KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro Koury. "O que pensam os moradores da cidade de João Pessoa, Paraíba, sobre o significado de sujeira". Blog GP em Antropologia e Sociologia das Emoções, comunicação publicada em 22 de maio de 2009. http://grem-sociologiaantropologia.blogspot.com/2009/05/o-que-pensam-os-moradores-da-cidade-de.html



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KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. De que João Pessoa tem Medo? João Pessoa, Editora Universitária UFPB, 2008.
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KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Sofrimento Social. João Pessoa, editora Universitária UFPB, 2007.
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KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. O Vínculo Ritual. João Pessoa, Editora Universitária UFPB, 2006.

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KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro, (Org.). Medos Corriqueiros e Sociabilidade. João Pessoa, Editora Universitária UFPB, 2005.

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segunda-feira, 25 de maio de 2009

15 anos do GREM - Projeto MEMÓRIA DO GREM

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Dando continuidade as comemorações dos 15 anos do GREM, é publicado neste Blog a Apresentação ao livro de fotografias de Roberto Coura sobre a feira de Campina Grande, Paraíba, publicado em 2007. A referência completa do livro encontra-se no final desta Apresentação.
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A fotografia no cotidiano de relações sociais de um dia de feira

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury

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Entre as diversas possibilidades novas trazidas pela fotografia se encontra, sem dúvida, a do encantamento. O cotidiano parece ser repassado à eternidade através de flashes, de recortes através das lentes do fotógrafo, deixando um registro misto. Uma espécie de anotação de algo que aconteceu, como diria Barthes (1980), mas também de um olhar que busca captar o comum, mas que revela flagrantes que o ultrapassam e dão um novo sentido estético, artístico e social ao que não se vê fora das fotografias, porque, talvez, tão presente nas relações apressadas que a cotidianidade permite e expande a quem a freqüenta, encantando com o seu produto final revelado o olhar que observa.
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É nesse campo de possibilidades que o encantamento permite que o conjunto fotográfico sobre a Feira de Campina Grande pelas lentes de Roberto Coura entra em cena. Nele a Feira de Campina Grande é enaltecida e revelada em todo o seu esplendor cotidiano. A feira passa a ser fragmentada pelo olhar de Coura em magníficas representações de tipos humanos que dão colorido ao movimento do lugar: passantes, feirantes, clientes, vendedores, carregadores, barbeiros, prostitutas, pedintes, crianças, homens e mulheres, velhos e moços em atividade, em posição de espera, no posto de observantes em devaneio ao ato da paisagem ou da cena em torno, ou em pose de descanso e de entrega.
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Os olhos de Coura, atento às fisionomias, registra socialidades como máscaras de temporalidades que parecem impregnar os corpos de homens e mulheres com suas figuras, tipos, expressões, rugas, modos, posturas, comportamentos, formas de ação e organização. Faz uma espécie de inventário sobre as possibilidades do humano e das técnicas corporais nele socialmente incrustadas (MAUSS, 1974), com as marcas do tempo e dos hábitos que os caracterizam em um espaço social. Com a docilidade ou com a firmeza do olhar, ou na imponência de presença no mundo do seu lugar de origem, que é o espaço da feira, onde se movimentam e trafegam com naturalidade. Ponto de encontro e desencontro, de venda e compra, de oferenda e recebimento, de oferta e procura, de treinamento e socialidade, a feira é documentada pela sociabilidade que a informa e das formas de reciprocidade produzidas dos e pelos tipos humanos nela presentes.
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O fotógrafo Coura quebra o cotidiano com a sua câmera, invade o mundo do comum onde tudo parece ser visto e naturalizado e tonifica o espaço pela fragmentação do lugar, dando ambivalência ao olhar que posa, propositadamente ou de forma espontânea, e ao olhar que registra e documenta. Um e outro, olhar fotográfico e olhar dos que se deixam fotografar parecem tornar-se ambíguos na fotografia revelada (BURGIN, 1982). O olhar que observa, assim, é remetido ao encantamento que a ambivalência fotográfica permite, não se sabendo qual é real no instantâneo produzido pela interação entre fotógrafo e fotografados, através da máquina de fotografia.
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Ambivalência e ambigüidade reforçadas ainda, é claro, pela autonomia da foto revelada frente aos processos anteriores que possibilitaram o registro e os posteriores que a editaram. Depois de revelada e vinda a público, com sua beleza de fotografia única ou na sua expressão conjunta de ensaio fotográfico também sempre único, - como este magnifico presente ao público sobre a Feira de Campina, - com sua realidade de foto, passa a ser novamente objeto de novas realidades, posta à espera dos olhares públicos ou dos que a observaram, observam e observarão.
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Mais uma vez alterando a representação eternizada no documento fotografia e provocando no observador atento para novas possibilidades imaginárias de real. O que parece objetivar na objetividade da foto um multifacetado campo de possibilidades, de acordo com a experiência de cada um que as vê e de cada reflexão produzida pelos que a discutem.
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Consciente dos diversos jogos possibilitados pela ambivalência e pela ambigüidade do registro fotográfico Coura introduz como um amante, com segurança e sensibilidade, a máquina no cotidiano de relações sociais de um dia de feira. Provoca, seduz, produz, e é provocado, seduzido e produzido pela sua produção, e neste embate amoroso com a câmera individualiza tipos e atitudes, individualiza formas e propostas de organização e uso presentes em um dia de feira autonomizando-os.
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Os tipos e as atitudes, as formas e propostas de organização e uso na cotidianidade da feira também se deixam revelar pela introdução da câmera, produzindo uma mistura de novidade e, ao mesmo tempo, de situação acontecida, porque o documento fotografia não é mais o cotidiano fotografado mas o cotidiano fotografado pelo olhar de Coura fotógrafo, registrando poses e olhares em pose, disposições e usos de espaços e temporalidades, também fora da normalidade cotidiana da ação no comum diário, porque ao posarem ou deixarem ser fotografados os olhares e os objetos dos que são submetidos ao olhar do fotógrafo também deixam a cotidianidade em que parecem estar imersos e passam também a representarem atitudes para a máquina.
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Atitudes, gestos, jogos de corpos, disposições e sentidos quase oferendas à máquina fotográfica, ou totalmente oferecidos aos olhos de Coura, no prazer da entrega amorosa ou sapeca que a troca permite. As adultos e as crianças de Coura são ontológicas desta entrega, tanto quanto a prostituta no ato ilimitado da entrega, no prazer supremo de se mostrar aos olhos da máquina, ou aos olhos com a máquina de Coura, revelando seu corpo nu, seu prazer escancarado na face em expressão absoluta da novidade de ser possuída por uma máquina de eternização da relação estabelecida na entrega a Coura fotógrafo, que é a câmera.
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A fotografia de Coura constrói então uma realidade nova a partir do registro de situações quaisquer escolhidas pela relação entre o olhar do fotógrafo e os elementos registrados, humanos ou não. O real fotográfico parece tornar-se, assim, um real produzido. Um produto de várias interconexões e relações entre o olhar que registra, o olhar que se deixa registrar e o produto do registro que ganha autonomia e se encontra entre alguma coisa próxima entre os dois olhares iniciais (KOURY, 1998).
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Fora, é claro, os demais olhares que submetem este real fotográfico antes de sua realidade de foto revelada. Antes de sua objetificação apresentada ao público, como o olhar da edição das fotos que deixam para trás cenas que não interessam, por problemas técnicos, por repetição, por questões de luminosidade em excesso ou em falta, ou por simples escolha, ou ainda que recortam a cena documentada para dar mais realce ao que se quer mostrar.
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Os tipos humanos na Feira de Campina Grande de Roberto Coura, deste modo, são disponibilizados aos olhares do público para observação em sua inalterabilidade de fotografia e consciente das forças que as reconstroem como fotografias. Como realidades postas ao olhar observador, mas sempre em relação ao espaço e ao tempo que serviram para a sua produção.
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Homens, mulheres, velhos, novos e crianças são flagrados em ação, que os imobilizam em instantâneos na interface da cena em que se situam no momento do flagrante, dispondo aos olhos da máquina, sob o olhar de Coura, os espaços, os tempos e os ritmos da feira, objeto da produção e encantamento fotográfico disposto no ensaio: a diversidade de produtos: verduras, legumes, cereais, carnes, utensílios domésticos, cestarias, cerâmicas, vestuário, flores, alimentação, fumos, serviços, entre tantos mais; a distribuição de barracas, as formas de ocupação e uso de cada uma no jogo entre passantes, vendedores e possíveis compradores; o acompanhar do ritmo e das temporalidades da feira, desde a instalação até o final do dia com flashes memoráveis dos momentos dispostos e dos movimentos ritmados propensos a cada horário e atividade, são apresentados aos olhos que vêem na sua organização tumultuada do agito local. De um lugar de compra e venda e, ao mesmo tempo, de troca de afetos, de conversas, de procuras e de encontros e desencontros.
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O ensaio fotográfico sobre a Feira de Campina Grande de Roberto Coura mais do que um registro documental sobre o processo social de uma feira famosa na região provoca. Estimula o observador a mergulhar com ele no universo multifacetado captado na realidade cotidiana de um centro popular de abastecimento e compras, o decompondo na fragmentação deste universo em flagrantes e instantâneos de uma realidade fotográfica e o recompondo como ensaio de olhar, disponibilizado aos demais olhares públicos na viagem inaugurada e que requer novas transformações, redefinições e montagens pelos olhos que nele e com ele navegarão.
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O mundo de imagens registrado neste livro-ensaio de Coura, assim, é um mundo de sensações de um fotógrafo engajado com a vida, e com a arte. Um aprendizado para os olhos atentos da arte de fotografar de um fotógrafo amante do que faz.
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Referências
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BARTHES, Roland. La Chambre Claire. Paris, Gallimard, 1980
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BURGIN, Victor, Editor. Thinking Photography. London, The Macmillan Press, 1982
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KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. “Relações Imaginárias: A Fotografia e o Real”. In, L. E. R. Achutti, 0rg. Ensaios sobre o Fotográfico. Porto Alegre, Unidade Editorial, 1998, pp. 72 a 79.
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MAUSS, Marcel. “As Técnicas Corporais”. In, Marcel Mauss, Sociologia e Antropologia, v. II, São Paulo, EPU/EDUSP, 1974, pp. 209 a 234.
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Esta Apresentação se encontra no livro de COURA, Roberto. A Feira de Campina Grande. Campina Grande. Campina Grande, Editora Universitária UFCG, 2007. ISBN 85-89674-05-3.
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