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segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Fotografia, Família e Luto (1)

Mauro Guilherme Pinheiro Koury (2)

A fotografia como organizadora de códigos de conduta e de orientação, e como busca de controle dos espaços cotidianos de uma vida em família, é o que se pretende discutir neste ensaio. Tem por base uma única entrevista, realizada em 1998 na cidade de Aracaju, Sergipe. O entrevistado foi um senhor de oitenta e cinco anos de idade, na época da entrevista, que estava em trabalho de luto pela morte de sua esposa, com quem tinha vivido por mais de sessenta e cinco anos.
Apesar do objetivo central da entrevista ter sido o luto vivido pelo entrevistado, a fotografia e, principalmente, a reordenação da vida em comum através dela, permitiu ao mesmo elaborar para o entrevistador as formas pelas quais se processavam o seu trabalho e vivência do luto e da introjeção da morte de sua esposa. Através do movimento de cristalização proporcionado pelas fotografias, foi possível adentrar no ordenamento lógico e na organização específica desta criação, propostos e desenvolvidos pelo casal, sob o comando da mulher, que cobre todo o processo de vida comum, desde o casamento até a morte da esposa.
Repetidos atos através dos quais se permite construir pontes que levam a percepção dos detalhes mais significativos do processo vivido, que se quer reviver e manter.
Construções e perfeições erigidas e nomeadas, para o casal em si mesmo e do casal para os demais membros da família e do circulo social mais amplo, do que há de eterno na relação, segundo o entrevistado. Cristalizações que advogam e ao mesmo tempo evocam as trilhas percorridas e que fornecem o fundamento do casal, de sua história comum e, ao mesmo tempo, particular de cada um dos envolvidos.
A configuração específica expressa no sentido declarado de uma vida em comum, presentificada pelo entrevistado, e que o permite viver tranqüilo, por tê-la como apropriação em seu interior (dentro dele) e no exterior (na sala de fotografias). Local onde se encontram afixadas as fotografias codificadoras das verdades satisfeitas ou elegidas como memória da vida comum de um casamento de mais de meio século.
. O álbum afixado nas paredes da sala, iniciado por sua esposa e por ela acrescentado e corrigido durante toda a vida, e acompanhado pelo entrevistado como um coadjuvante, foi pontuado como ato final na afixação da última fotografia por ele, após as exéquias de sua esposa, e no auge do seu sofrimento pela perda recente.
Agora a sala, como que um templo, guarda as recordações e acende e acalenta a memória de sua vida com ela, do seu casamento, da construção da família, da chegada de filhos, de netos, de nascimentos, comemorações diversas e mortes. Vida em comum compactuada, mas construída enquanto álbum ou sala de fotografias, enquanto momentos a serem referenciados como significativos para a vida do casal, por e através dela, a esposa.
Agora palco do eterno, dos elementos distribuídos, ordenados, codificados, afixados nas paredes e internalizados dentro de si. Solidez da construção imaginada dos momentos que singularizaram a vida em comum e que cristalizaram possibilidades de encantamento que tornam possíveis as lembranças, não do real, mas da construção desejada e objetivada de uma realidade vivida em comum, enquanto perfeição, isto é, enquanto a vida do entrevistado com sua esposa e por ela.
Lugar de memória do conjunto da vida comum estabelecida a partir do casamento e condicionada na afixação do conjunto fotográfico, no dia a dia de sua construção como paredes-álbum e como tecelagem da vida da família em cotidiana elaboração. Lugar de inteireza e de busca de integridade de um sentido de vida comum, presente nos códigos da construção fotográfica e de sua disposição nas paredes da sala.
O olhar, ao revisitar as paisagens da memória além do registrado em cada foto e aquém do mostrado pelo conjunto do álbum disposto nas paredes da sala, revigora e reatualiza os códigos de sua elaboração e os sentidos atribuídos à codificação enquanto encantamento e solidez, enfim, enquanto cristalização.
A sala de fotografias tornou-se assim, após a morte da esposa, o canto preferido do entrevistado. O lugar onde flui e presentifica a memória de uma vida, enquanto necessidade de rememoração e apreensão do sentido comum que objetivou a sua vida com sua esposa e o fez pessoa na instituição familiar com ela e por ela construída.
Em busca de adentrar no universo do entrevistado, a entrevista teve início pelo encantamento do entrevistador do lugar onde se encontrava realizando a entrevista.
O lugar era uma sala grande, fechada por uma porta de vidro e madeira de quase igual extensão a um dos lados. Uma verdadeira preciosidade de fotografias pelas paredes, desde pequenas fotos três por quatro até ampliações de bom tamanho. Todas com molduras simples ou elaboradas e afixadas como se obedecessem a um critério qualquer que não o estilístico.
O álbum de fotografias disposto pelas paredes da sala, não apenas serviu de introdução à conversa, mas adentrou pelos meandros da construção simbólica da vida em comum do entrevistado com sua esposa, da construção da família, dos tempos familiares, dos sentidos de vida atribuídos pelo entrevistado, do seu sofrimento e processo de luto após a morte de sua mulher.
O entrevistado iniciou a sua narrativa introduzindo o entrevistador ao conjunto de fotografias dispostas na sala onde se realizava a entrevista.
De forma didática, o entrevistado começava a situar o entrevistador na lógica da construção em que se elaborou ao longo dos anos a sala de fotografias. A primeira fotografia presa na parede na verdade são duas, emolduradas em um mesmo caixilho. Um rapaz e uma moça, de aproximadamente dezoito anos, representando o futuro marido e a futura esposa, um pouco antes de se conhecerem e namorarem.
A segunda fotografia afixada pela esposa na parede são os noivos ladeados pelos pais de cada um. A terceira fotografia revela os noivos no altar, no momento final do enlace matrimonial. Uma série de dez fotografias ordenam momentos da lua de mel, o retorno a Aracaju, a casa onde iriam morar durante toda a vida, e o primeiro ano do casal.
A seguir, encontra-se afixada uma moldura de bom tamanho com seis fotografias que mostram o prolongamento da gravidez do seu primeiro filho. A partir de então, todas as demais fotografias afixadas nas paredes da sala retratam a chegada, o cotidiano e o crescimento dos filhos. Menos a última, presa à parede um pouco depois do falecimento da esposa do entrevistado, por ele. Uma fotografia colorida de uma senhora bem maquiada, bem vestida, com um olhar sonhador e como que perdido em algum ponto distante e ausente do recorte fotográfico, mas denotando segurança, confiança e amor na e pela vida. Esta fotografia fecha o álbum fotográfico disposto nas paredes da sala.
O primeiro conjunto fotográfico até as primeiras fotos com a chegada do primeiro filho e os dois primeiros anos de sua existência, foram aquelas que nunca foram retiradas de suas posições e distribuição originárias. A partir do nascimento do segundo filho, as fotografias são recolocadas e assumem novas posições e distribuição nas paredes, segundo o crescimento e desenvolvimento de cada filho.
"As fotos, vão do mais antigo ao mais novo ", informa o entrevistado ao entrevistador. Neste momento, busca estabelecer uma ordem temporal, uma cronologia, na distribuição espacial do conjunto da mostra fotográfica. Busca informar o olhar do entrevistador e as formas que deve nortear este olhar para a compreensão do resultado da disposição das fotos na sala de fotografias.
Do antigo ao mais novo, quer significar, deste modo, que a afixação de cada fotografia representou um momento específico na vida do casal. Deles em separado até o casamento e os diversos estágios de reprodução com o nascimento dos seis filhos que tiveram ao longo da vida em comum.
Do antigo, ou seja, das bases de formação que deu origem ao casal, ao mais novo, isto é, ao último filho gerado. Esta é a lógica que o olhar deve se submeter, se quiser compreender na observação do conjunto o projeto executado no cotidiano fazer-se do álbum-paredes, pela esposa, e pelo entrevistado, coadjuvante da constituição simbólica da mostra, e prisioneiro encantado dela.
Após submeter o olhar do entrevistador à totalidade do conjunto fotográfico e a seqüência coerente, regular e necessária do formato das disposições de cada foto nas paredes, enquanto organização de uma história de vida, o entrevistado passa a revelar uma segunda possibilidade de leitura.
Esta outra seqüência, a que o olhar observador deve se acostumar, está ligada a um ordenamento de histórias singulares, individuais, no interior da história geral do casal.
Esta nova viagem permite o olhar observante acompanhar o desenvolvimento de cada filho, do nascimento, das festinhas de aniversário, da formatura ao casamento, o nascimento dos filhos dos filhos, o desenvolvimento de cada neto, bem como, acontecimentos felizes, acontecimentos não de todo felizes e mortes, sempre relacionados a cada filho e a cada neto.
Os pais, passam a ser coadjuvantes nas fotos dispersas e afixadas pelas paredes. Os filhos e os netos ganham então a primazia da mostra.
A antropóloga Myriam Lins de Barros (1987), discute a família brasileira de classe média, na cidade do Rio de Janeiro, tendo como foco os avós. No seu trabalho demonstra como a trajetória de vida de um casal vai mudando e conformando-se pouco a pouco a partir do momento da opção pela reprodução e chegada dos filhos e, posteriormente, com a chegada dos netos.
Afirma que estes novos momentos não aniquilam a vida individual de cada membro da relação conjugal, isto é, marido e mulher, mas são momentos de revisitação singular do compromisso de cada um com as novas fases da constituição da família, de referenciar-se através dos espaços abertos aos filhos e netos no processo do seu crescimento e autonomia.
O casal não fica prisioneiro de sua prole, por assim dizer, mas sua vida transmuda-se para novas formas de apreensão do real vivido familiar. As referências pessoais do eu e do nós passam a ser direcionados para uma subsunção a este nós ampliado, e os significados de realização também se ampliam e passam a estender-se para os projetos de realização dos filhos e netos.
Embora fonte de tensão e conflito, as relações entre pais e filhos são prenhes de significados de trocas sociais gratificantes. Para os pais, principalmente, cheias de cuidados e interesses pelos projetos de realização dos filhos, estas relações, muitas vezes, se transformam em sentido do núcleo familiar, tanto no sentido de perpetuação biológica e reprodução social, quanto no sentido de ascensão social. Ambos os aspectos revestidos no caráter de afetividade e de relações de troca afetivas.
Não é o propósito deste ensaio trabalhar com as questões de tensão e conflito, ou de produção de ajustamento e equilíbrio nas relações entre pais e filhos, nem mesmo discutir a questão da família moderna de classe média e alta no Brasil. A referência à questão é significativa, aqui, porém, para informar o papel dos filhos e seu crescimento na composição da memória de uma família nuclear, enquanto projeção dos pais e busca de retenção do que se quer guardar para a lembrança futura, do que se construiu.
No caso do álbum-paredes estudado e a sua composição, este elemento da memória que se quer reter, através da fotografia, é significativo. A história fotográfica dos pais torna-se secundária, a partir do momento do nascimento do primeiro filho, e na seqüência dos demais nascimentos. Este fato é assumido pelo entrevistado, que chama atenção do entrevistador para os primeiros registros da sala-álbum, e para o planejamento e caráter da organização geral da mostra.
Os pais, daí em diante, são fotografados secundando os filhos e, posteriormente, os netos. São os filhos e os netos que são mostrados, como que tornando palpável a evolução e os ganhos (algumas vezes também, as perdas) da construção familiar, dos laços de consolidação e perpetuação da família enquanto bem simbólico.
Miriam Moreira Leite (1993) e Myriam Lins de Barros (1989), em seus estudos sobre família e memória através dos álbuns de fotografias, revelam também este aspecto familiar de demonstração pública dos filhos, nas e pelas fotografias, sendo nelas secundado pelos pais. A cena fotográfica expõe a criança, conferindo-lhe um lugar de absoluta centralidade. Seja em cenas onde a criança permanece imóvel, posando, como na maioria das fotos dos filhos do casal em crescimento, seja nas fotos onde a criança é tomada em movimento, como nas fotografias mais recentes, envolvendo os netos.
Tanto no primeiro formato, quanto no segundo, as fotografias expostas revelam as crianças, sozinhas ou sendo secundadas, como fontes de apoio, enquanto bebês, por exemplo, ou como complemento ao cenário, pelos pais. Mesmo adultos, os filhos, nas fotos presas nas paredes da sala de fotografia, ganham primazia em relação às fotos dos pais. Parecem ser assim, os momentos galgados em cada estágio da vida pelos filhos que interessam eternizar.
A história familiar passa a ser a história dos filhos e seu desenvolvimento. Parecem apresentar o projeto familiar em se fazendo, como desejo realizado e alcançado, apesar de alguns deslizes (por exemplo, descasamentos e mortes), mas retomados e refeitos no interior de um ideário projetivo familiar, eternizado nas fotografias, do casal.
As fotografias presas nas paredes da sala, a partir do nascimento do primeiro filho, tornam-se, assim, na disposição projetiva da organizadora do álbum-sala, segundo as palavras do entrevistado: "uma cronologia pessoal, de cada membro".
Indica, a seguir, Na exposição didática do entrevistado para o entrevistador, um terceiro momento de visualização da gestão organizadora da mostra. Informa o entrevistado: "E se o senhor quiser enxergar verá que elas (as fotografias) mudaram de lugar com o passar dos anos ".
Esta era a forma de garantir a "cronologia pessoal" de cada filho e de cada neto. Esta lógica de continuidade cronológica por filho, na organização do álbum, faria, no decorrer do tempo, no momento em que uma nova fotografia fosse fixada, mudar o lugar das demais já dispostas, e pertencentes a outros filhos e netos. Com o passar dos dias, dos meses e dos anos, o álbum ganhava novo formato, mudando de lugar todo um conjunto de fotografias abaixo da ordem cronológica desejada, por filho, no acrescentar de uma nova foto à parede. Uma ordem, ou ordenamento, em constante atualização e revisão, como a vida familiar na sua extensão de cada filho e de cada passo dado por este, seja profissional, seja no casamento, seja nos diversos estágios de procriação de cada um deles. O mesmo se fazendo a cada neto, filho de cada um dos filhos.
Cada novo filho de um filho, bem como cada momento da evolução e conquistas sociais de cada neto, por filho, modificava a ordem disposta pelo conjunto da fotografia, na cronologia daquele filho, como uma sub-cronologia autônoma do desenvolvimento de cada neto.
Eterno recomeço na busca de aproximação da extensão e crescimento familiar conseguido ou dos passos conquistado pela família como um todo, a partir do núcleo familiar básico, que o casal deu origem. Recomeço que deixava suas marcas no movimento contínuo do deslocamento das fotos para a colocação de uma nova, dentro da ordem cronológica proposta pela realizadora do álbum, a mulher do entrevistado. Por uma opção do casal, por solicitação da esposa, segundo o entrevistado, "(as) paredes nunca foram pintadas, estão com as marcas de cada quadro, daqueles que ficaram por cima e daqueles que ultrapassaram ou não as marcas anteriores, ocupando o novo lugar".
A opção por não atualizarem a pintura da sala-álbum, de manterem as marcas do deslocamento continuado das fotos, por se só é significativo.
As marcas nas paredes do álbum-sala induzem o olhar para o movimento das fotos, mas também e, principalmente, para a estabilidade familiar e sua consolidação, que o movimento das fotos agenda e demonstram. As marcas nas paredes, assim, são como as marcas da maturidade de cada estágio galgado pela família, a partir do núcleo originário de sua criação.
São as marcas das marcas do processo de maturidade. Importantes, então, serem deixadas, na composição de um álbum-sala, porque registram o movimento de maturação que precisa ser vista e eternizada como um valor (KOURY, 1998), como um bem simbólico de representação da família, daquela família em particular. Porque revelam o fundamento da existência, consolidação e manutenção de laços, a serem passados de geração e geração, e serem visualizados por aqueles a quem se abre a porta da sala-álbum adentrando a intimidade publicitada da memória familiar desta família em questão.
A decisão do entrevistado pela conclusão do álbum-sala parece permiti-lo ocupar de novo o lugar de autonomia, após o luto de sua esposa, necessário para o prosseguir da vida. A opção pela foto escolhida da esposa que conclui a mostra recoloca à memória o papel da sua mulher na feitura do álbum e reforça, também, o encantamento que a sala de fotografias provoca no narrador.
É referindo-se à mostra que pode falar sobre a falta provocada pela morte de sua companheira, bem como na minoração desta ausência pela presença constante dela na e através da sala de fotografias. Ao responder uma questão sobre a solidão experimentada após o falecimento da esposa, o entrevistado afirma a falta da mulher mas nega a solidão. Nas suas palavras: " Todo esse movimento que a organização das fotos permite é o movimento de minha vida com ela".
Prossegue contando: "Ela, a vida dela, ainda me preenche. A foto sorridente e segura de si mostra o final feliz da realização de ter filhos perfeitos, sadios e que fizeram, no final das contas, a nossa vida". O toque sentimental sobre o objeto da saudade da vida em comum na presença de sua mulher, parece remontar os espaços de presentificação para uma nova reconfiguração de um tempo e de um espaço de construção, finalizada, mas de onde se é possível reviver os andaimes de sua edificação através da evocação não apenas de cada foto presente, mas também da elaboração da sala-álbum. Da manipulação constante dos retratos, das autonomias possíveis de cada foto e de cada coleção lá disposta, mas interdependentes do todo, da fundação e consolidação de uma experiência de vida comum e da formatação de um projeto familiar. Da fundamentação do encantamento do entrevistado e seu revigorar a cada novo movimento de rememoração.
A fotografia, e aqui em especial, o conjunto de fotografias da sala-álbum, parece servir bem para este papel. Lá estão presentes os esforços do casal, de construção de um projeto familiar e de um discurso moral que personifica sua edificação, formas de controle e efetivação e momentos de consolidação da vida em comum.
O conjunto fotográfico presente na sala de fotografias representa bem este papel moral. Discurso imagético tornado a realidade mesma vivida pelo casal. Presentificada, eternizada, e possível de ser evocada pela rememoração saudosa, de um olhar que busca evidências do passado e o sentido da vida vivida através da realidade transmitida pelas fotografias afixadas, como missão cumprida.
Uma espécie de roteiro sentimental surge, assim, e elabora novos discursos projetados no presente, consolidados como eternização, dispostos e afixados na sala de fotografias. O que prende o narrador, impulsionado pelo encantamento da sala-álbum, à realidade nela disposta, à crônica das imagens que a fotografia realizou.
Objetiva uma espécie de roteiro sentimental da vida em comum. Sala de fotografias que renova sempre, ao entrevistado, o sentido projetivo, de consolidação e de finalização cristalizados na mostra e que o permite viajar ao passado como e através da evocação fotográfica. Parecendo recuperar, também, através da saudade enquanto memória revelada, a sua vida em comum, como uma missão cumprida, a dois, e seus complementos: os filhos e netos. Na sala de fotografias, enfim, utilizando as palavras do narrador, ele revive e reatualiza suas emoções e sentimentos: "Olhando feliz para o mundo, o mundo dela que é o meu mundo também: o mundo dos filhos. Dos nossos filhos".
Notas
1 - Texto apresentado no GT Antropologia Visual no VII Encontro de Antropologia do Norte e Nordeste, Recife, 27 a 29 de novembro de 2001.

2 - Coordenador do Grupo Interdisciplinar de Estudos em Imagem (GREI) e do Grupo de Estudo e Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções (GREM) do Departamento em Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba.

Bibliografia
KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. (1998). "Relações Imaginárias: A Fotografia e o Real". In, Achutti, Luiz Eduardo R., 0rg.. Ensaios sobre o Fotográfico. Porto Alegre, Unidade Editorial, pp. 72 a 78.
LINS DE BARROS, Myriam. (1987). Autoridade & Afeto: Avós, Filhos e Netos na Família Brasileira. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
LINS DE BARROS, Myriam. (1989). "Memória e Família". Estudos Históricos, v. 2, nº 3, pp. 29 a 42.
MOREIRA LEITE, Miriam. (1993). "Retratos de Família: Leitura da Fotografia Histórica". São Paulo, Edusp.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Medos, Sociabilidade e Emoções: breve itinerário profissional de um amigo.

[Uma primeira versão deste itinerário saiu na RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 7, n. 20, pp. 237 a 343. Agosto de 2008. ISSN 1676-8965. http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Index.html]

Acompanho deste muito tempo o trabalho de Mauro Guilherme Pinheiro Koury, desde o tempo em que ele trabalhava com a questão sobre organização dos trabalhadores, rurais e urbanos, com a problemática sindical e a temática do trabalho[1]. Na realidade, o conheci, pessoalmente, na fase de transição, uma das fases, acredito, quando ele estava saindo das áreas de movimentos sociais e de trabalhadores e a do trabalho, e adentrando em duas outras áreas fecundas e, até então, pouco exploradas pelas Ciências Sociais no Brasil: as áreas da imagem e a das emoções.

Na primeira área de transição, aportou entre uma sociologia da imagem e uma antropologia da imagem. E nela realizou trabalhos significativos em prol de uma visão crítica sobre o instrumento fotografia, chegando a ganhar prêmio de melhor trabalho escrito sobre fotografia pela FUNARTE, em 1998, além de ser um dos pesquisadores que possibilitaram a constituição e consolidação da área de imagem no Brasil, nos anos de 1990[2]. Na segunda área de transição, aportou no interior de uma Antropologia e de uma Sociologia das Emoções, também na década de 1990, - ver, nesse sentido, o seu delicioso Introdução à Sociologia da Emoção (João Pessoa, Manufatura, 2004)[3]; entrou como pesquisador nesta área através de suas investigações sobre morte e morrer no Brasil, e principalmente em uma extensa produção de artigos e livros sobre o trabalho de luto - ver, por exemplo, pra mim um clássico na literatura desse gênero e único, acredito, no Brasil, Sociologia da Emoção: o Brasil urbano sob a ótica do luto [Petrópolis, Vozes, 2003], que sintetiza, acredito, todo o seu trabalho neste tema, - sempre em cruzamento com a área de imagem e, especificamente, da imagem fotográfica. Ver, nesse sentido, por exemplo, o seu Amor e Dor [Recife, Edições Bagaço, 2005], ou ainda, Imagens & Ciências Sociais [João Pessoa, Editora Universitária, 1998], aonde conduz a análise da fotografia através do cruzamento com a questão da morte, do morrer e do luto no Brasil e no Ocidente.

Esta transição, que poderia chamar de uma apuração do olhar analítico, não pode, por outro lado, ser chamada de ruptura. Para um olhar atento, em toda a obra de Koury existe uma preocupação insistente, persistente, teimosa, até, com a busca de compreensão do processo de formação do indivíduo no Brasil moderno e contemporâneo, que, em um artigo de 1996 chamou de homem melancólico[4].

Sua excelente e ampla pesquisa discute (e a cada novo livro ou ensaio amplia o debate) as mudanças comportamentais do brasileiro de classe média e traça um perfil do Brasil urbano contemporâneo para o entendimento do processo recente do individualismo que toma conta das relações sociais no país. A cada novo livro discute e vem ampliando a compreensão do processo de transformação vivido pelos brasileiros comuns, principalmente pelos habitantes das capitais brasileiras, nos últimos quarenta anos, mostrando a verticalidade e aceleração das mudanças de hábitos e estilos de comportamento experimentados e a ambivalência e sofrimento social resultante.

É o que ocorre neste novo livro de Koury. A começar pelo título: De que João Pessoa tem medo? Remete o leitor para uma análise do imaginário das relações sociais vividas ou experimentadas pelos moradores da cidade de João Pessoa, capital da Paraíba. Sua preocupação é com o indivíduo e seu comportamento na modernidade conservadora brasileira atual, como vem sendo desde o seu mais anterior trabalho, mas, vincula este indivíduo à sua prática social e as redes de relações que o formam e o informam e que são por ele, também, formadas e informadas. Faz parte de uma pesquisa em andamento, sobre medos corriqueiros, onde busca analisar o Brasil urbano, de 1970 para cá, dentro de uma ótica em que o medo é estruturador, cria liames e permite a construção social. Ver, neste caso, o seu excelente artigo, Medo, vida cotidiana e sociabilidade, publicado, pela primeira vez, em 2002 (Política e Trabalho, n. 18), bem como a etnografia O vínculo ritual (João Pessoa, Editora Universitária, 2006).

O livro analisado é o primeiro de uma série de etnografias urbanas de capitais de estados brasileiros, da pesquisa Medos Corriqueiros. Retrata a estreita relação entre sociabilidade e medo em uma cidade, em um local específico, aqui, João Pessoa, como busca de compreensão do movimento local para o todo brasileiro que a pesquisa em seu totum sinaliza. Como hipótese principal de trabalho parte do pressuposto de que o medo é uma relação social significativa para a compreensão de qualquer formação social. Em toda e qualquer forma de sociabilidade o sentimento de medo parece encontrar-se presente como uma das principais forças organizadoras deste social. Estimulando, de um lado e de forma concomitante, o estranhamento em relação ao outro, o receio de enfrentá-lo e a aventura do encontro, a construção dos segredos que aproximam e conjugam e o sentido de pertença e sua relação com os códigos da confiança e lealdade resultantes. Sempre dentro de uma tensão e de um conflito conjugados e densos que conformam o imaginário da traição e do medo possíveis.

De que João Pessoa tem medo? Procura, assim, discutir, - como o autor informa na introdução, - “o que é medo e do que os habitantes da cidade de João Pessoa sentem medo, e as formas de constituição social do medo no imaginário da cidade”. Insere-se nas práticas cotidianas dos informantes e no seu imaginário sobre a cidade e tem por finalidade debater as formas de sociabilidade e uso do espaço à luz do medo no meio urbano contemporâneo.

No decorrer de sua explanação a cidade aparece como um lugar de fascínio, no seu desenvolvimento e expansão e, ao mesmo tempo, um lugar de estranhamento, de não reconhecimento, de fragmentação do pertencimento. É um livro de maturidade, no conjunto da obra de Koury. Nele o autor discute a relação entre medo e sociabilidade no espaço urbano de uma forma inovadora e prenhe de possibilidades analíticas; seja para aqueles próximos à discussão acadêmica das Ciências Sociais e afins contemporâneas no Brasil e no mundo, ou ainda, para todos aqueles preocupados em compreender a experiência recente por que passa a formação do indivíduo na modernidade brasileira e ocidental atual. É um livro que, a meu ver, deve ser lido e refletido por todos.

Neste caminho investigativo sobre medo corriqueiro e imaginário social no Brasil urbano, Koury ingressou, recentemente, em uma série de artigos sobre o significado de sujeira e do que é considerado sujo pelos habitantes urbanos de seis capitais brasileiras. Algumas análises introdutórias podem ser lidas no Blog do seu grupo de Pesquisa, o GREM http://grem-sociologiaantropologia.blogspot.com/, com artigos para serem publicados em breve nas Revistas Política e Trabalho e Tempo Social.

Neste momento, encontra-se em campo, dando continuidade a terceira fase da pesquisa sobre medos corriqueiros e cidades no Brasil, entrevistando os moradores das 27 capitais dos estados brasileiros. É esperar os resultados de sua análise, a ser lançada até 2012, como conclusão do projeto citado.

Este itinerário, assim, é uma homenagem a um grande profissional das ciências sociais do Brasil, vinda de um amigo e admirador.

Pierre Aderne Chamber [Doutor em Sociologia e Professor do departamento de Développement social et analyse des problèmes sociaux da UQAR - Université du Québec à Rimouski].



[1] Na realidade, soube a pouco que ele retomou questões ligadas ao trabalho e ação sindical. Saiu recentemente um artigo dele sobre greves rurais no Caderno do CRH, n. 56, agosto de 2009.

[2] Ver, por exemplo, entre inúmeros artigos, os livros Usos da Imagem (JP, Manufatura, 1997); Imagens & Ciências Sociais (JP, Editora Universitária, 1998); Imagem e Memória (RJ, Garamond, 2000); Amor e Dor (Recife, Edições Bagaço, 2005) e, no prelo, Relações Delicadas: Ensaios sobre fotografia e sociedade (a ser lançado, em breve, pelo selo da Ed. Universitária - UFPB).

[3] - Que infelizmente, soube a pouco, se encontra esgotado. Este livro merece, creio eu, uma nova edição, se não pela originalidade e ampla visão sobre a área da sociologia das emoções nele existente, por ser o primeiro livro a tratar no Brasil da enorme tarefa de discutir o campo da sociologia da emoção no interior das Ciências Sociais e, especificamente da sociologia geral. Recentemente lançou um outro livro Emoções, Sociedade e Cultura (Curitiba, Editora CRV, 2009), que dá continuidade ao Introdução...

[4] - Koury, Mauro Guilherme Pinheiro. “A Formação do Homem Melancólico: Luto e Sociedade no Brasil”. Cadernos de Ciências Sociais, n. 38. João Pessoa, PPGS/UFPB, 1996.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Divulgando

II Seminário Imagens & Narrativas
*
10 nov 2009
Teatro Noel Rosa – UERJ

PROGRAMAÇÃO
9h – Abertura
INARRA convida NEXTimagem
Clarice Peixoto (INARRA - PPCIS/UERJ) e Marco Antonio Gonçalves (NEXTimagem – PPGSA/UFRJ).

10h Vídeos e debate com realizadores
Figuras oníricas, 35′, 2008, de Marco Antonio Gonçalves e Els Lagrou (NEXTimagem – PPGSA/UFRJ). O filme trata do escultor e xilogravurista de Juazeiro do Norte (CE), Nilo, e seu imaginário.
Ciclo dos Caixotes, 5′, 2009, de Angela Taddei, Cris Carvalho, Diana Dianovsky, Mariana Leal, Sandra Costa e Thiago Passos (PPCIS/UERJ). As desprezadas caixas de madeira, que movimentam o comércio de legumes e hortaliças, entram em cena para revelar dinâmicas sociais.
Cantinho da Terra, 7′, 2009, de Agustín Sampron, Aline Gama, Cecília Bastos, Camille Gonçalves e Victoria Tomaz (PPCIS/UERJ). Trata de um ponto de encontro e resgate da cultura portuguesa na Zona Norte do Rio de Janeiro.

11h Ensaios Fotográficos e conversa com os pesquisadores
Marés de Imagem, de Thiago Carminati (NEXTimagem – PPGSA/UFRJ).
Apertando um Baseado: retratos visuais de um ritual prosaico, de Andrew Müller Reed (Ciências Sociais/UERJ). O ensaio trata deste ritual corriqueiro bem conhecido dos usuários regulares de maconha.
Ir e Vir, de Bárbara Copque (INARRA - PPCIS/UERJ). Apresenta alguns percursos fotográficos, realizados por oitos meninos em situação de rua, participantes de uma oficina fotográfica.

13h Vídeos e debate com realizadores
Dr. Raiz – Etnovideoclip (Cariri/Lapa), 30′, 2009, de Marco Antonio Gonçalves (NEXTimagem/PPGSA/UFRJ).
Ilha Grande em outros tempos, 40′, 2009, de Clarice Peixoto, pesquisa Myrian S. dos Santos (PPCIS/UERJ). O vídeo evoca histórias marcadas pelo aprisionamento e pela violência que permanecem no imaginário coletivo de moradores da Ilha Grande.
Gisèle Omindarewa, 71′, 2009, de Clarice Peixoto (INARRA, CTE/SR3-UERJ, DaTerra Produtos Culturais). Documentário sobre a vida de uma mãe de santo francesa e o cotidiano do seu terreiro em Santa Cruz da Serra, RJ.

16h30 – Os dois lados da câmera
Conversa com Gisèle Omindarewa, Peter Fry (PPGSA/UFRJ) e Clarice Peixoto (INARRA - PPCIS/UERJ).

Coordenação Geral: Clarice Ehlers Peixoto
Coordenadores: Aline Gama de Almeida e Andrew Müller Reed
Apoio à montagem: Tassia Raquel Gusmão
Apoio: Divisão de Teatros da UERJ / DECULT, SR-3
Realização: INARRA (Imagens, Narrativas, e Práticas Culturais CNPq-UERJ)

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Claude Lévi-Strauss morreu na noite de 31/10/2009

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L'ethnologue Claude Lévi-Strauss est mort
LE MONDE.FR 03.11.09 • Mis à jour le 03.11.09
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L'ethnologue et anthropologue Claude Lévi-Strauss est mort dans la nuit du samedi 31 octobre au dimanche 1er novembre à l'âge de 100 ans, selon le service de presse de l'Ecole des hautes études en sciences sociales (EHESS) contacté par Le Monde.fr. Plon, la maison d'édition de l'auteur de Tristes Tropiques, a également confirmé l'information diffusée par Le Parisien.fr en fin d'après-midi. Claude Lévi-Strauss, qui a renouvelé l'étude des phénomènes sociaux et culturels, notamment celle des mythes, aurait eu 101 ans le 28 novembre.
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terça-feira, 3 de novembro de 2009

Sociologia das Emoções: dica de leitura

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HOPKINS, Debra R., Jochen Kleres, Helena Flam and Helmut Kuzmics, (eds.). Theorizing Emotions: Sociological Explorations and Applications. Frankfurt am Main, New York: Campus Verlag, 2009.
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Esta nova coletânea em Sociologia das Emoções: Theorizing Emotions: Sociological Explorations and Applications, organizada por Hopkins et al, reflete sobre a volta recente às emoções na academia. Baseando-se nos estudos clássicos de Max Weber, de Erving Goffman e de Norbert Elias, diversos estudiosos europeus discutem o papel das emoções em várias facetas da sociedade, do laboratório ao escritório e à mídia. Entre os diversos tópicos discutidos se encontram as tensões entre sentimentos e regulações; as emoções conscientes e inconscientes no trabalho científico; as emoções e a desordem social; o efeito do retorno às emoções como um elemento da modernidade avançada; o amor romântico nos Estados Unidos e os códigos de conduta israelitas; e o papel dos meios de comunicação em gerar emoções públicas intensas.
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Vale a pena consultá-la.
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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Por que as sociedades criam e conservam rituais envolvendo seus mortos?

Mauro Guilherme Pinheiro Koury
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Por que as sociedades criam e conservam rituais envolvendo os seus mortos? Em geral, qual a função desses rituais para as mesmas? Estas são questões que perpassam a mente da maioria das pessoas, preocupadas com a questão sobre a vida e a morte e, principalmente, do processo de passagem entre vida e morte, individualmente e socialmente.

Em uma abordagem antropológica, é possível verificar que o ritual de passagem simbolizado pelo ritual mortuário toca questões fundamentais para a compreensão da relação indivíduo, sociedade e natureza. O rito de passagem mortuário discute a continuidade do social e o novo equilíbrio societário entre as forças da natureza e da sociedade, a partir de uma morte singular, individual. Todo processo ritual funerário e do luto a ele relacionado prevê e dá importância aos processos de reintegração do social consigo mesmo, e dos indivíduos envolvidos pela morte, seja este sujeito o próprio morto, - para onde se busca uma reintegração do social pelas barreiras impostas a ele, e aos novos significados sociais também a ele atribuídos, - seja as que ficam e lamentam a perda.

O ritual dos mortos é uma prática social que tem como função, entre outras, a de dominar e integrar a morte no interior de uma sociabilidade dada. A morte passa a ser social, através dos rituais impostos a ela. Em sociedades onde o espírito de coletividade era mais evidenciado, a morte trazia em evidência um corpo individualizado daquele que morreu criando uma espécie de tensão entre a composição biológica do sujeito e a composição social do mesmo, deixando as sociabilidades onde ocorreu a morte em crise. Os rituais da morte serviriam para repor o corpo morto (biológico) individualizado nas malhas do social. Servia como uma espécie de integração do morto (e da morte) ao social.

A morte, através do corpo morto, deixava de representar uma ameaça a uma dissolução do social, ou a partes dele, e passava a integrar todo uma composição de re-socialização do sujeito morto (e os entes queridos que permanecem) à prática e a visão de mundo de uma sociabilidade específica.

Os rituais servem como uma espécie de domação da morte pelo social. Ela passa a fazer parte de regras sociais, ditadas pelo social e com uma função específica naquele social. Uma delas é a integração do sujeito morto e da dor dos que ficam ao cotidiano societário, outra delas é domar a natureza, integrando o corpo morto ao social e sentindo-se transformador da morte: a cultura dispondo a natureza às suas regras e controle, como forma de subsistência da própria sociedade. A outra, esta relacionada como o mundo sobrenatural. O corpo morto não entregue a prática ritual é um corpo morto em possível danação, que pode querer vingar-se dos vivos e da sociedade onde emergiu. Desta forma, os rituais também buscam domar o sobrenatural através da indicação da passagem do morto para o além. Desta forma, os rituais funerários, os rituais do luto são rituais integradores do sujeito morto e da dor dos que ficam a uma cotidianidade de uma sociabilidade qualquer, como forma de domesticação da morte à visão de mundo desta mesma sociabilidade.

O luto tem o papel de reintegração dos que ficam na cotidianidade de suas vidas, e na cotidianidade de uma sociabilidade específica onde vivem. A dor do luto é uma dor necessária. A psicanálise diz que não é doença, mais uma forma de introjeção do morto nos que ficam. Uma forma de suprir o outro que se foi, o fazendo viver sentimentalmente no interior dos sujeitos que ficam e para quem o morto era querido.

Poderia-se, aqui, perguntar porque a pessoa, por mais pobre que seja, quer tratar seus mortos com dignidade e respeito? A resposta a esta questão está relacionada ao papel dos indivíduos na sociedade, aos sentidos atribuídos socialmente aos sujeitos sociais em vida, onde crenças, desejos, projetos, expectativas dão movimento às práticas sociais e, aos significados indicativos da esfera da morte e dos mortos como extensão e configuração de um social dado.

Pode-se indicar, assim, que a pessoa que perde alguém é uma pessoa ligada a uma prática social específica, tanto quanto a que morreu. Uma pessoa socializada dentro de uma perspectiva de mundo, onde uma ética, um conjunto de emoções, e uma espiritualidade específica, formam um olhar específico sobre si mesmo e os outros próximos e distantes. Esta forma de olhar, é sempre socialmente datada, faz parte de um tempo e um espaço determinado, e comanda noções de dignidade e respeito, que tem a ver com o acesso ao corpo e os exercícios do transpasse do morto pelos rituais funerários e pelos rituais religiosos onde também estão ligados.

É importante, neste momento, pensar aqui que a Religião, para a antropologia, é vista como uma construção social também, mas que remete a uma forma de sociabilidade onde o coletivo é superior aos atos individualizados. A crença na outra vida, uma forma de domar a morte pela vida eterna, faz com que não se deseje o espírito morto vagando. É necessário encaminhá-lo, através dos rituais a um destino específico. As flores, por exemplo, sempre tiveram um significado de ligação com o conceito de paraíso a um jardim, o jardim de éden. Por isso, no Brasil, nas práticas cristãs funerárias, a partir do século XIX, são incorporadas à preparação do corpo morto e as homenagens para com ele.

Tratar os mortos com dignidade e respeito é uma forma primeira de referenciá-los através das práticas sociais a que os indivíduos sociais estão submetidos enquanto pessoas, isto é, é também uma forma de referenciar a si mesmo, enquanto cidadão e enquanto família, e enquanto religião, e enquanto laços de amizades e vizinhança. É uma forma também de se permitir saber que o corpo morto é um corpo domado. A ausência de um corpo na morte da insegurança aos entes queridos sobre a própria morte do sujeito, e não permite que os que ficam façam luto. O luto é uma forma de internalização do sujeito morto nos que ficam. Para a psicanálise, uma dor necessária para uma reintegração dos que sofrem à vida, para a antropologia e a sociologia, uma dor que precisa ser ritualizada para que os que a sofrem possam reintegrar-se a uma cotidianidade, e ao dia a dia social.

Por outro lado, a crença nos rituais integradores, onde os funerários então inclusos, além da necessidade de visualização do corpo morto, do certificar-se de sua morte, precisa também de práticas outras que o permitam fazer o transpasse deste corpo morto para novas realidades, do sobrenatural, por exemplo. Cheio de regras e formas rituais de passagem. Além da questão de higiene pessoal, dos que ficam, e societárias. Um corpo morto necessita de um destino, senão contamina os vivos, pela putrefação do cadáver, entre outros elementos nocivos à saúde pública, e também pela visão simbólica que diferencia o corpo humano do corpo animal. O tratamento não humano aos humanos parece tornar o corpo descuidado em um corpo animalesco, e os próprios entes queridos animais, se não há cuidado ritual com o corpo que se foi. De novo a relação natureza versus cultura.

Porque a maioria das sociedades enterra seus mortos

Outra questão significativa, quando se procurar refletir sobre a prática ritualística mortuária, e conseqüência do que vem discutindo até aqui neste ensaio, é o porquê a maioria das sociedades enterra seus mortos. Daí uma pergunta antecedente: houve alguma sociedade ou existiu um tempo em que isso não acontecia? O que leva a uma análise comparativa e se chega à conclusão inicial de que a prática de enterro dos mortos não é necessariamente a única prática ritual de despacho dos mortos. Existem sociedades que cremam os corpos, a hindu, por exemplo, e as cinzas do sujeito são jogadas nos rios para serem levadas para o mar, como um simbolismo de passagem para o além.

Várias sociedades, no entanto, caminham para a prática do enterro como uma forma de reintegração do sujeito a terra: uma espécie de simbolismo entre natureza, sociedade e sobrenatural. O sujeito se decompõe, e a decomposição acompanha, em muitas sociedades, a natureza dos rituais. Algumas sociedades africanas fazem mais de um enterramento do cadáver, entre o ato da morte e o ato final de retirada dos ossos. Cada ato ritual acompanha o desenterramento e o novo enterro e tem funções específicas do controle do espírito do que se foi e do luto dos que ficam até a liberação dos que permanecem e do que se foi à restauração de suas vidas na cotidianidade social.

Na sociedade ocidental, os enterros tal como nós os vemos no hoje é algo recente e diz respeito ao tipo de sociabilidade que emergiu onde o indivíduo tem uma supremacia relativa sobre o social. Podemos pensar nesse processo de individualização do social na sociedade ocidental a partir do século XII, mas as formas rituais ditas modernas têm sua configuração no final do século XVIII em diante.

Na idade média, os mortos importantes, clérigos e alguns reis e poderosos, eram enterrados na igreja, no interior da igreja. Os mortos comuns eram enterrados nas estradas, ou em covas comuns perto das igrejas. Os corpos eram jogados uns acima dos outros, num buraco constantemente aberto.

Posteriormente, com a higienização das cidades, os cemitérios foram afastados das cidades e os mortos começaram a ser neles depositados. Os cemitérios eram de ordens religiosas e eram tidos como uma espécie de campo santo. Nele, os mortos tinham um destino mais perto do Senhor.
Tem histórias que relatam fatos tragicômicos: a maioria dos homens comuns não possuía renda suficiente para enterrar os seus mortos nos cemitérios. Era comum, então, que na calada da noite corpos mortos fossem arremessados de fora para dentro dos cemitérios, ou se penduravam corpos em árvores que tivessem galho para dentro do cemitério, como forma de proteger os seus mortos.

A briga para se ter um corpo morto salvo era premente.

Por outro lado os cemitérios não causavam medo ou receio, como agora. Os cemitérios eram locais onde sociabilidades emergiam: feiras livres, locais de namoro clandestino, ou de paquerar, trocas e encontros diversos eram realizados no interior dos seus muros.

Só com a política de higienização do século XIX é que as regras de saneamento passam a reconfigurar os rituais fúnebres. Os sete palmos de terra mínimos, as covas individualizadas, os mausoléus indicando a importância dos mortos, a cova rasa com uma cruz, simbolizando entrega do morto para Cristo, etc, bem como a distribuição espacial interna ao cemitério revelando uma hierarquização dos mortos em seu interior.

Os cemitérios desde os finais do século XIX passam simbolicamente a representar a sociedade dos vivos. A distribuição por alas e quarteirões, o valor econômico depositado em cada ala, quadra ou quarteirão, os materiais utilizados, mármores, granito, até o cimento comum à cova rasa, significando um assentamento posicional significativo do sujeito morto ou dos familiares mortos, que correspondiam ao valor simbólico, econômico, político e social, do seu status e da família do qual faz parte e que continua no mundo dos vivos, assegurando o prestígio e a importância familiar na sociedade.

Daí a arquitetura representar o morto com as expectativas dos vivos que o rememoram e aos demais que circundam e reverenciam o seu poder, até as covas rasas, alugadas por dois anos e cujos ossos, não reclamados pelos familiares, são depositados em um ossuário comum; reprodução, também que satisfaz as hierarquias e situações de classe na nossa sociedade.

Até os modernos cemitérios como parques com grife, daí já significativamente determinado para uma classe social específica, ou os novos cemitérios verticais, cujos mausoléus são vendidos de acordo com a paisagem oferecida, da cidade onde eles existem etc. Estes, também, são cemitérios com grife e destinados a um público especial.

Em nossa sociabilidade, a ocidental, então, emerge e revigora o comércio fúnebre e as relações mercantis de troca, condizentes com o espírito do capital que norteiam as suas relações sociais até na morte.

O comércio fúnebre no Brasil tem início também nos finais do século XVIII e se desenvolve no XIX para cá. Antes existia o comércio religioso sobre os atos fúnebres. As famílias pagavam ou doavam casas, propriedades, dinheiro a Igreja como uma forma de conseguir um cantinho mais fácil no céu. Os enterros no interior das igrejas também eram coisas para poucos, e eram os de posse que conseguiam.

A pobreza enterrava os seus mortos em covas coletivas, pertos dos locais santos, como Igrejas e conventos, ou em terrenos próximos de suas casas e, em último caso, nas beiras de estrada. Este último, quase sempre, ligados a mortes por motivos de acidente, assassinato, ou outros tipos de mortes ocorridas no local. Com o disciplinamento dos cemitérios e a questão da higienização das cidades, as regras do enterro e a prática de uma forma de enterro específico fazem vigorar o comércio e instituições voltadas para o serviço fúnebre. Isso se dá principalmente no final do século XIX.

Implicações sociais e psicológicas de um comércio fúnebre

Na sociabilidade moderna e ocidental, onde o Brasil faz parte como legado da colonização, o comércio fúnebre visa a facilitar o despacho e o transpasse do morto. Ninguém tem mais tempo de fazer sozinho o caixão, sair colhendo flores no campo, sair com ele (o caixão e o defunto dentro) nas costas, e não se pode por enterrar ou depositar o corpo em qualquer lugar, por quebrar normas de higiene, e normas de propriedade de uma sociabilidade.

O comércio fúnebre vem suprir uma prática cada vez mais individualista do ritual fúnebre. Serve também como elemento de status social, quanto mais rico e com mais adornos, quanto mais vistoso o velório e mais pomposo o enterro, mais status social o sujeito, e logicamente a família que fica possui.

No século vinte, os serviços funerários se especializam, ornamentos e enfeites, como os tipos de flores, de adornos, e outros, ficam nas mãos de especialistas. Os caixões também, os locais de velórios, o cortejo, a vaga nos cemitérios, - que deixam de ser ligada a igreja e se secularizam, passando a ser administrados pelas prefeituras locais, e dos anos setenta para cá, por setores privados, - bem como as ajudas psicológicas ao luto, psicólogos, psicanalistas, assistentes sociais, entre outros, tornam-se objetos de trabalhos especializados. Esses serviços passam a exercer uma função que antes era exercida pela sociedade como um todo, ou pela Igreja ou forma religiosa, em particular.

Os serviços de restauro, do re-equilíbrio psicológico e social da pessoa em dor, passam a ser um serviço de acompanhamento individualizado, feito por especialistas. No Brasil, por exemplo, existem Núcleos de Apoio à Pessoa Enlutada, serviços que envolvem psicólogos, médicos, assistentes sociais, sociólogos e antropólogos, que tem como função amenizar a dor do luto nos que ficam e reintegrá-los a prática cotidiana social.

Isso sem falar nos cartórios e instâncias ligados à advocacia, para discussões e repasses de possível herança dos sujeitos mortos, e dos problemas deixados por eles em vida, entre outros assuntos. Serviços que se propõem servir como intermediário, ajudando os que ficam a re-situar-se no social, pela restauração e equilíbrio moral, ético, econômico e de dignidade do que se foi. É comum aflorar vários problemas após o transpasse da pessoa, necessários de serem resolvidos para que os que ficam possam retornar a normalidade.

Sem falar na religião, que ainda detém um papel importante, tanto psicológico, - na restauração e amenização da dor dos que ficam, - como na integração do morto na outra vida, ou pelo menos nas formas de vidas que cada religião particular invocada no hoje, constrói.

Sem falar ainda nos hospitais. O homem moderno deixou de morrer em casa e passou a morrer nos hospitais. O serviço médico tornou-se imprescindível para o serviço fúnebre. O atestado de óbito, por exemplo, só pode ser dado por um médico. A medicina, na sociedade ocidental contemporânea, e no Brasil em particular, desde o final do século XIX, passam a deter o poder da vida e da morte social. Sem um atestado de óbito o sujeito não pode ser considerado morto, com todos os problemas que daí surge para os que ficam. Problemas psicológicos, econômicos, morais, etc. que dificultam os que ficam fazer o luto e retornar a uma cotidianidade específica.

A partir do século XX, por fim, a morte é comandada por uma enorme e diversificada e especializada indústria funerária.
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Indicações Bibliograficas

KOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Sociologia da Emoção. O Brasil Urbano sob a Ótica do Luto. Petrópolis, Vozes, 2003

BORGES, Maria Elizia. Arte Funerária no Brasil (1890-1930). Belo Horizonte, Editora C/Arte, 2002

ARIÈS, Philippe. The Hour of Our Death. New York, Alfred A. Knopf, 1981
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[Texto publicado no Diário de Santa Maria (Caderno Mix), Santa Maria, RS, p. 14 - 15, 24 jan. 2004].
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