Entrevista por e-mail do Professor Mauro Koury (MK) dada à jornalista Isabelle Barros (IB), repórter do jornal Diário de Pernambuco – Revista Aurora, do Recife, Pernambuco, em 05 e 06 de julho de 2011. A matéria da Isabelle Barros foi editada no domingo, 17 de julho de 2011, e pode ser lida no link: www.diariodepernambuco.com.br/aurora.
O argumento inicial da matéria e convite: reportagem com o tema "porque o recifefede?" Essa é uma sensação que se instalou entre a população de todas as classes sociais, e gostaríamos de saber como esses habitantes lidam com isso. Essa pergunta já foi tão repisada por moradores e visitantes que a cidade ganhou o apelido de ‘Recifede’, ou ‘Recifezes’. Canais fétidos, ruas insalubres, esgotos a céu aberto e fossas estouradas se naturalizaram na paisagem olfativa da população. Mas, além da esfera do humor, como essa fedentina afeta a relação da cidade com as pessoas que estão nela? Que estratégias as pessoas usam para conviver com isso?”. Vi o resultado da enquete Sujeira e Imaginário Urbano no Brasil, com dados sobre Recife, e achei que esse assunto tinha muito a ver com a matéria que estou escrevendo. Seria excelente se o senhor pudesse contribuir.
A entrevista completa:
IB - É possível fazer um pequeno retrospecto de como a pesquisa foi criada e quais seus objetivos? A resposta dos questionários era espontânea ou estimulada?
MK - A pesquisa foi realizada no interior de uma pesquisa maior do GREM - Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções / UFPB, que coordeno e que discute os Medos Corriqueiros e a Sociabilidade Urbana nas 27 capitais de estados brasileiros (incluindo Brasília). Muitos entrevistados para a pesquisa Medos utilizaram os termos sujo e sujeira nas narrativas sobre seus medos e receios, e os termos eram usados de uma forma muito geral, denominando desde odores ou excrementos e lixo até conotações sobre cidadania e ética na política, e despertou o meu interesse como pesquisador para saber mais a fundo a que os termos sujo e sujeira utilizado se referia.
Assim, foram feitas duas questões em uma pesquisa tipo enquete que, junto com perguntas relacionadas com a caracterização dos entrevistados, buscavam interrogar os informantes sobre a questão específica sobre os sentidos atribuídos aos termos sujo e sujeira. As perguntas foram: o que é sujo e sujeira para você? E o que você indica como sujo e sujeira?
Esta enquete foi aplicada em seis capitais: João Pessoa, Recife, Belém, Brasília, São Paulo e Curitiba em um total de 390 questionários. 90 para São Paulo e 60 para as demais capitais.
As perguntas eram abertas e sobre ela os entrevistados tinham a liberdade de definir e narrar situações e experiências sobre o sujo e a sujeira tendo sua cidade e o Brasil como cenário. O entrevistador apenas interrogava cenários narrados não muito claros nas falas dos informantes e buscava uma precisão e compreensão de termos usados e a que se referiam, quando necessário.
IB - O fato de o Recife ser fedorento não é exclusividade da cidade, mas não consegui encontrar nenhum outro local onde comentários jocosos e apelidos estivessem lado a lado com frases revoltadas, como algumas que vi no post sobre a pesquisa: "cidade do Recife é o esgoto de Pernambuco"; "a gente pula excrementos e lixo ao andar pela cidade". Esse traço de autoironia foi encontrado em mais alguma das cidades pesquisadas?
MK - Dois pontos a esclarecer antes de responder a questão. Primeiro, o termo "recifede" é um termo jocoso cunhado e aplicado durante campanhas políticas para prefeitura e governo estadual nos finais dos anos setenta. O termo retratava o uso de falsas propagandas morais para atacar candidatos da oposição, indo até ao sequestro e simulação de fotos intima com a esposa de um candidato e um político local e situações do gênero. O termo falava de um lado ambíguo da falta de infraestrutura da cidade associado à falta de ética na política local; Segundo, a enquete sobre sujeira foi aplicada durante uma crise política vivida logo nos primeiros meses do mandato do atual prefeito João da Costa: a crise da renovação do contrato sem licitação da empresa que recolhia o lixo da cidade, rejeitada pelo tribunal de contas e que se arrastou por vários meses seguidos, vindo, logo após uma nova crise sobre o aterramento sanitário.
Assim, mais uma vez o uso ambíguo do "Recifede" foi usado em uma crítica ao acumulo de lixo por toda a cidade, e principalmente o centro e bairros dos subúrbios mais distantes, associados à crítica à política local, e especial ao prefeito João da Costa e ao embate entre João da Costa e o ex João Paulo, tendo o problema do lixo como marco de discussão e jocosidade (lembrar do boneco João Lixão, por exemplo).
Por outro lado, é verdade que os entrevistados de outras cidades também deram ênfase nas respostas de suas cidades como suja. A cidade de Belém (Pará), por exemplo, é uma delas; a de Salvador (não retratada na pesquisa é outra). Embora com críticas acirradas sobre a sujeira e o odor das cidades, o grau de jocosidade é menor, se comparado ao Recife, durante a pesquisa.
Nas demais cidades associam a falta de infraestrutura, seja na coleta do lixo, seja no tratamento do lixo, seja no esgotamento sanitário de uma forma mais direta, sem a jocosidade do recifense. Embora, no momento da pesquisa, devido à crise do lixo e ao início de uma nova gestão da cidade (vista pelos moradores como continuidade da gestão anterior) a cidade do Recife apareça com 23,3% de indicações para a questão da falta de infraestrutura urbana e sanitária na cidade, contra 6,7% em João Pessoa; 8,3% em Curitiba; 10% em São Paulo; 10% em Brasília e 11,7% em Belém. Os informantes das seis cidades que a indicaram associaram a sujeira aos problemas de saneamento básico; esgotamento sanitário; condições das vias expressas (calçadas, ruas e avenidas) em relação à sua conservação e à limpeza e depredação (buracos, calçadas quebradas, lixo sem coleta regular, canais a céu aberto que servem como escoamento dos detritos sanitários, etc.). Falam assim do DESRESPEITO AOS CIDADÃOS e associam assim a sujeira ao mau uso da administração pública local (de cada cidade), e nacional.
Outro foco de que se entende e indica por sujeira fala também da FALTA DE EDUCAÇÃO e CIDADANIA dos habitantes de cada cidade, e está presente a associação do sujo a Moral. 15% dos respondentes do Recife informaram sobre falta de higiene doméstica e os fluídos como elementos responsáveis pelo descaso da população com o público, comprometendo, inclusive, à saúde pública: caso dos escarros nas ruas, das cusparadas, do jogar lixo pelas calçadas, pelos rios e canais da cidade, do fazer necessidades fisiológicas pelos postes, muros e calçadas, são vistos como problemas públicos que tem origem no privado. Mas também associam a falta de cidadania ao declínio da educação pública e privada no país. Comparando com as demais cidades pesquisadas, os índices para essa associação sujeira moralidade, isto é, a indicação do uso público das faltas privadas, assim se coloca: 15% Recife, contra 30% João Pessoa; 15% Belém; 13,3% São Paulo; 38,3% Curitiba e 20% Brasília.
É bom frisar que a questão da sujeira é ligada às questões da pureza-impureza, e sempre indica alguma desordem (sujeira) em relação à ordem (limpeza, pureza, organização) e as respostas dos respondentes em suas narrativas falam dessa relação, associando ao desordenamento provocado pelo sujo e aos receios por ele provocados na vida social cotidiana e na vida pessoal diária.
IB - Qual é o balanço comparativo entre as seis cidades que participaram da pesquisa? Em que pontos o Recife se destacou?
MK - Respondida acima
IB - No post, há uma frase que me chamou a atenção: alguns “entrevistados (…) associam o viver na cidade de Recife com o viver na sujeira. Este é um problema que sempre marcou o imaginário recifense: o Recife como uma linda, porém, mal cuidada cidade”. É possível explicar isso com um pouco mais de detalhes? Desde quando esse imaginário teria surgido?
MK - A sujeira no Recife, para os entrevistados, está associada de um lado, ao desordenamento urbano e a falta de infraestrutura da cidade para suportar as intempéries, por exemplo, quando as ruas são alagadas, as águas em vez de escorrerem são jorradas para fora dos bueiros que, junto com os esgotos a céu aberto, ao lixo acumulado, ao mau cuidado das ruas e avenidas, etc.; e de outro, ao problema da falta de educação doméstica (e formal), gerando o mau uso do espaço público e colocando em perigo todos os moradores.
Como falei acima, a origem da cidade como uma cidade que fede, do "Recifede", veio em parte da associação da sujeira como falta de ética na política, coligada ao problema da infraestrutura urbana local. Por outro lado, esta associação vem adjunta a outras categorias, como a do preconceito, principalmente com a mendicância e a pobreza, visto como sujos. No caso do Recife, essa associação vem de muito tempo, desde os anos sessenta, quando Recife era um pólo aglutinador de migração dos demais estados da região Nordeste e do Norte, e cresceu, durante os anos setenta, com a migração intensa do campo para a cidade, com a modernização da agroindústria na Mata e da produção extensiva de gado no Agreste. 11,7% dos recifenses entrevistados fizeram essa associação contra 10% em João Pessoa; 6,7% em Belém; 10% em São Paulo; 6,7% em Curitiba e 11,7% em Brasília.
Outra relação à sujeira foi feita à questão da homossexualidade. Vista como algo sujo. Em Recife, 6,7% a indicaram, contra 6,7% de João Pessoa; 13,3% de Belém; 5,6% São Paulo; 1,7% Curitiba e 5% Brasília.
Por outro lado, a questão da ética política como sujeira representa um percentual alto nas narrativas sobre sujeira entre os respondentes: 43,3% dos recifenses, contra 23,4% João Pessoa; 38,4% Belém; 21,1% São Paulo; 18,3% Curitiba e 35% Brasília. Não é prá menos que a cidade do Recife é vista como uma cidade crítica em relação à política e aos políticos. Mais uma vez, a sujeira como política, diz do jocoso "Recifede": que apontam, desde ao 'esquecimento' de promessas de campanha, comparando a prática política como de interesse pessoal e a "podridão da política", no dizer de um entrevistado; até ao descaso com o dinheiro público e a corrupção.
IB - Na visão dos entrevistados, os culpados pela “fedentina” da cidade se dividem entre a esfera pública e a própria população. Houve alguma iniciativa de algum entrevistado em se falar de soluções?
MK - Não houve nenhuma iniciativa concreta de mostrar soluções. A grande maioria das respostas apenas apresentou indignações e, pior, desesperança.
IB – Me envie alguns dados pessoais, e muito obrigado pela gentileza de responder às questões.
MK - Sim, alguns dados pessoais: sou professor doutor em Sociologia e coordeno a base de pesquisa UFPB-CNPq intitulada Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções (GREM) e sou docente ligado ao Departamento de Ciências Sociais e ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPB.
Eu que agradeço!
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