Medos, Sociabilidade e Emoções: breve itinerário profissional de um amigo.
[Uma primeira versão deste itinerário saiu na RBSE – Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 7, n. 20, pp.
Acompanho deste muito tempo o trabalho de Mauro Guilherme Pinheiro Koury, desde o tempo em que ele trabalhava com a questão sobre organização dos trabalhadores, rurais e urbanos, com a problemática sindical e a temática do trabalho[1]. Na realidade, o conheci, pessoalmente, na fase de transição, uma das fases, acredito, quando ele estava saindo das áreas de movimentos sociais e de trabalhadores e a do trabalho, e adentrando em duas outras áreas fecundas e, até então, pouco exploradas pelas Ciências Sociais no Brasil: as áreas da imagem e a das emoções.
Na primeira área de transição, aportou entre uma sociologia da imagem e uma antropologia da imagem. E nela realizou trabalhos significativos em prol de uma visão crítica sobre o instrumento fotografia, chegando a ganhar prêmio de melhor trabalho escrito sobre fotografia pela FUNARTE, em 1998, além de ser um dos pesquisadores que possibilitaram a constituição e consolidação da área de imagem no Brasil, nos anos de 1990[2]. Na segunda área de transição, aportou no interior de uma Antropologia e de uma Sociologia das Emoções, também na década de 1990, - ver, nesse sentido, o seu delicioso Introdução à Sociologia da Emoção (João Pessoa, Manufatura, 2004)[3]; entrou como pesquisador nesta área através de suas investigações sobre morte e morrer no Brasil, e principalmente em uma extensa produção de artigos e livros sobre o trabalho de luto - ver, por exemplo, pra mim um clássico na literatura desse gênero e único, acredito, no Brasil, Sociologia da Emoção: o Brasil urbano sob a ótica do luto [Petrópolis, Vozes, 2003], que sintetiza, acredito, todo o seu trabalho neste tema, - sempre em cruzamento com a área de imagem e, especificamente, da imagem fotográfica. Ver, nesse sentido, por exemplo, o seu Amor e Dor [Recife, Edições Bagaço, 2005], ou ainda, Imagens & Ciências Sociais [João Pessoa, Editora Universitária, 1998], aonde conduz a análise da fotografia através do cruzamento com a questão da morte, do morrer e do luto no Brasil e no Ocidente.
Esta transição, que poderia chamar de uma apuração do olhar analítico, não pode, por outro lado, ser chamada de ruptura. Para um olhar atento, em toda a obra de Koury existe uma preocupação insistente, persistente, teimosa, até, com a busca de compreensão do processo de formação do indivíduo no Brasil moderno e contemporâneo, que, em um artigo de 1996 chamou de homem melancólico[4].
Sua excelente e ampla pesquisa discute (e a cada novo livro ou ensaio amplia o debate) as mudanças comportamentais do brasileiro de classe média e traça um perfil do Brasil urbano contemporâneo para o entendimento do processo recente do individualismo que toma conta das relações sociais no país. A cada novo livro discute e vem ampliando a compreensão do processo de transformação vivido pelos brasileiros comuns, principalmente pelos habitantes das capitais brasileiras, nos últimos quarenta anos, mostrando a verticalidade e aceleração das mudanças de hábitos e estilos de comportamento experimentados e a ambivalência e sofrimento social resultante.
É o que ocorre neste novo livro de Koury. A começar pelo título: De que João Pessoa tem medo? Remete o leitor para uma análise do imaginário das relações sociais vividas ou experimentadas pelos moradores da cidade de João Pessoa, capital da Paraíba. Sua preocupação é com o indivíduo e seu comportamento na modernidade conservadora brasileira atual, como vem sendo desde o seu mais anterior trabalho, mas, vincula este indivíduo à sua prática social e as redes de relações que o formam e o informam e que são por ele, também, formadas e informadas. Faz parte de uma pesquisa em andamento, sobre medos corriqueiros, onde busca analisar o Brasil urbano, de 1970 para cá, dentro de uma ótica em que o medo é estruturador, cria liames e permite a construção social. Ver, neste caso, o seu excelente artigo, Medo, vida cotidiana e sociabilidade, publicado, pela primeira vez, em 2002 (Política e Trabalho, n. 18), bem como a etnografia O vínculo ritual (João Pessoa, Editora Universitária, 2006).
O livro analisado é o primeiro de uma série de etnografias urbanas de capitais de estados brasileiros, da pesquisa Medos Corriqueiros. Retrata a estreita relação entre sociabilidade e medo em uma cidade, em um local específico, aqui, João Pessoa, como busca de compreensão do movimento local para o todo brasileiro que a pesquisa em seu totum sinaliza. Como hipótese principal de trabalho parte do pressuposto de que o medo é uma relação social significativa para a compreensão de qualquer formação social. Em toda e qualquer forma de sociabilidade o sentimento de medo parece encontrar-se presente como uma das principais forças organizadoras deste social. Estimulando, de um lado e de forma concomitante, o estranhamento em relação ao outro, o receio de enfrentá-lo e a aventura do encontro, a construção dos segredos que aproximam e conjugam e o sentido de pertença e sua relação com os códigos da confiança e lealdade resultantes. Sempre dentro de uma tensão e de um conflito conjugados e densos que conformam o imaginário da traição e do medo possíveis.
De que João Pessoa tem medo? Procura, assim, discutir, - como o autor informa na introdução, - “o que é medo e do que os habitantes da cidade de João Pessoa sentem medo, e as formas de constituição social do medo no imaginário da cidade”. Insere-se nas práticas cotidianas dos informantes e no seu imaginário sobre a cidade e tem por finalidade debater as formas de sociabilidade e uso do espaço à luz do medo no meio urbano contemporâneo.
No decorrer de sua explanação a cidade aparece como um lugar de fascínio, no seu desenvolvimento e expansão e, ao mesmo tempo, um lugar de estranhamento, de não reconhecimento, de fragmentação do pertencimento. É um livro de maturidade, no conjunto da obra de Koury. Nele o autor discute a relação entre medo e sociabilidade no espaço urbano de uma forma inovadora e prenhe de possibilidades analíticas; seja para aqueles próximos à discussão acadêmica das Ciências Sociais e afins contemporâneas no Brasil e no mundo, ou ainda, para todos aqueles preocupados em compreender a experiência recente por que passa a formação do indivíduo na modernidade brasileira e ocidental atual. É um livro que, a meu ver, deve ser lido e refletido por todos.
Neste caminho investigativo sobre medo corriqueiro e imaginário social no Brasil urbano, Koury ingressou, recentemente, em uma série de artigos sobre o significado de sujeira e do que é considerado sujo pelos habitantes urbanos de seis capitais brasileiras. Algumas análises introdutórias podem ser lidas no Blog do seu grupo de Pesquisa, o GREM http://grem-sociologiaantropologia.blogspot.com/, com artigos para serem publicados em breve nas Revistas Política e Trabalho e Tempo Social.
Neste momento, encontra-se em campo, dando continuidade a terceira fase da pesquisa sobre medos corriqueiros e cidades no Brasil, entrevistando os moradores das 27 capitais dos estados brasileiros. É esperar os resultados de sua análise, a ser lançada até 2012, como conclusão do projeto citado.
Este itinerário, assim, é uma homenagem a um grande profissional das ciências sociais do Brasil, vinda de um amigo e admirador.
Pierre Aderne Chamber [Doutor em Sociologia e Professor do departamento de Développement social et analyse des problèmes sociaux da UQAR - Université du Québec à Rimouski].
[1] Na realidade, soube a pouco que ele retomou questões ligadas ao trabalho e ação sindical. Saiu recentemente um artigo dele sobre greves rurais no Caderno do CRH, n. 56, agosto de 2009.
[2] Ver, por exemplo, entre inúmeros artigos, os livros Usos da Imagem (JP, Manufatura, 1997); Imagens & Ciências Sociais (JP, Editora Universitária, 1998); Imagem e Memória (RJ, Garamond, 2000); Amor e Dor (Recife, Edições Bagaço, 2005) e, no prelo, Relações Delicadas: Ensaios sobre fotografia e sociedade (a ser lançado, em breve, pelo selo da Ed. Universitária - UFPB).
[3] - Que infelizmente, soube a pouco, se encontra esgotado. Este livro merece, creio eu, uma nova edição, se não pela originalidade e ampla visão sobre a área da sociologia das emoções nele existente, por ser o primeiro livro a tratar no Brasil da enorme tarefa de discutir o campo da sociologia da emoção no interior das Ciências Sociais e, especificamente da sociologia geral. Recentemente lançou um outro livro Emoções, Sociedade e Cultura (Curitiba, Editora CRV, 2009), que dá continuidade ao Introdução...
[4] - Koury, Mauro Guilherme Pinheiro. “A Formação do Homem Melancólico: Luto e Sociedade no Brasil”. Cadernos de Ciências Sociais, n. 38. João Pessoa, PPGS/UFPB, 1996.