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quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Ensaio sobre Emoções e Fotografia

Linha de Pesquisa: Estudos em Sofrimento Social e Sociabilidade

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Retrato em Branco e Preto: Sentimento e Fotografia

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Mauro Guilherme Pinheiro Koury
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Em uma letra clássica de sua extensa musicografia, intitulada Retrato em Branco e Preto, Chico Buarque nos fala da dor do amor. Dor solitária, passada internamente no sujeito que a sofre como doença incurável que corrói a alma. Embora exista outro nessa relação amorosa, esse outro é sempre inatingível, se passa como um significado intrínseco à alma que sofre e se tortura nesse embate interior do mim para comigo: “o que eu faço/contra o encanto/desse amor que eu nego tanto,/evito tanto/e que, no entanto,/volta sempre a enfeitiçar”.

A paixão amorosa é essa espécie de encantamento, de feitiço a que alguém é submetido e a ela sucumbe. Stendhal em Do Amor (São Paulo: Martins Fontes, 1993), escrito no limiar do século XVIII, informa sobre o amor paixão ou do tipo Werther (relacionando com o célebre romance de Goethe), que “enlouquece pelo excesso de sensibilidade” (p. 181), como uma “(d)as fases da doença da alma chamada amor” (p. XLVIII). Dissocia-a de outro tipo, que chamará de amor de vaidade ou Don Juan, que “reduz o amor a ser apenas um assunto comum” (p. 183) ou ao tédio (p. 188).

Informa que o caráter Don Juanesco do amor requer um número maior de virtudes estimadas na sociedade, - como intrepidez, agilidade de espírito, vivacidade, sangue frio, entre outras, - onde a publicidade é um requisito necessário ao triunfo. Diferente do amor a la Werther, onde o segredo, o desespero e a morte são elementos fundantes, e considerados depreciativos pelo social.

Nos dois tipos ou caráteres de amor, porém, existe um elemento comum que é a supremacia do indivíduo em relação à sociedade. Os códigos amorosos passariam a representar tipos de caráter individual no enfrentamento ou embate do amor. Um mais conforme a um tipo de sociedade que se ajustava aos padrões mercantis que começavam a virgir e que afloraria em toda a sua potência e se consolidaria nos séculos seguintes. Outro, qualificado como depreciativo pelo social, mas que faz emergir uma individuação no sujeito amorificado, que se põe contra o social ou em contraste a ele, como um ser que guarda em si um segredo, uma incompletude distinta da sociedade a que faz parte, e que o faz uma totalidade diferente, enquanto subjetividade.

Nos dois tipos de amor também se pode achar, como conseqüência dessa individualidade resgatada, outra característica comum à época e a mentalidade que vinha se formando, que Susan Sontag no romance O amante do vulcão (São Paulo: Companhia das Letras, 1993) chama de espírito de colecionador. Em ambos os caráteres a coleção é fundamental para o constructo amoroso.

Reduzido a tédio, o amor a la Don Juan funda-se pela coleção de conquistas e de sua publicização, é exterior, social, e representa-se como ou enquanto vaidade. A enumeração das conquistas perfaz a coleção que norteia a construção da memória através de sua quantificação e estratificação.

Condenado ao desespero solitário, o amor a la Werther é construído pela coleção de lembranças. Pergunta Stendhal (op. cit. pp. 71): “como retratar a felicidade se ela não deixa lembranças?”. Alguns fios de cabelo ao vento, um olhar que comove, um gesto ao acaso, uma cor, uma flor, um odor que trazem o objeto amado à recordação firmando-o naquele presente pela substituição e, assim, presentificando-o e gratificando o amante pela ilusão da retenção do amado, e de sua compreensão. Ou, a repetição de cenas de rejeição do objeto amado, da insegurança de não se saber também amado, de uma mão que se retira, de um olhar que não se cruza, ou de aparente desdém.

De o ser amado nunca estar no local que deveria ser localizado, como diz Roland Barthes no livro Fragmentos de um Discurso Amoroso (10ª edição. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990), faz parte dessa coleção. Uma coleção formada por sinais que preenchem de sentido o ser e o estar enamorado, em criações de júbilo ou temor. A felicidade amorosa assim seria essa coleção de lembranças, esse depositário ambíguo de um prazer em dor, que arrasta, que envolve, ao mesmo tempo em que se quer desligar, e no esforço de desligamento retoma o encanto: “com seus mesmos tristes/velhos fatos/que num álbum de retrato/insisto em colecionar”.

O espírito de colecionador, deste modo, dá significado ao amor na contemporaneidade das sociedades ocidentais a partir dos finais do século XVII até a atualidade. A arte de amar, o sentimento amoroso, passa pelo registro das conquistas efetivadas Don Juanescamente, ou pelo registro das lembranças do processo amoroso, solitário e obcecante do repassar contínuo dos fatos ou símbolos amorificados. Das marcas do amor.

Para Proust, no seu Em Busca do Tempo Perdido (07 vols.. 12ª edição. São Paulo: Globo, 1994), a conquista do processo amoroso só advém a partir da morte da relação amorosa. É quando o sujeito pela perda consegue reconstruir a totalidade do ato, dissecando-o e recompondo. Estranhando-o e retendo em si apenas os liames sentimentais que o fizeram apaixonado. É o que Freud no seu trabalho Luto e Melancolia (Obras Completas. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Pags. 275-292) irá chamar, um pouco mais tarde, de processo de luto, onde a perda irá ser interiorizada no sujeito que a sofre, retendo em si os elementos reconstruídos e sentimentais daquele ou daquilo que se perdeu.

“Trago o peito tão magoado/de lembranças do passado/e você sabe a razão./Vou colecionar mais um soneto/outro retrato em branco e preto/ a maltratar meu coração”. O repassar contínuo das marcas de amor feito coleção, que acrescenta a cada repassar mais um soneto ampliando o álbum-memória; o soneto como um retrato em branco e preto a maltratar o coração de quem vive uma paixão ou sofre uma perda amorosa.

Retrato em branco e preto. Roland Barthes escrevendo sobre fotografia em A Câmara Clara. Uma Nota sobre a Fotografia. (4ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984) revela o lado subjetivo do olhar de quem vê. Os retratos guardados de um amor são mais do que registros do real, diz da relação a quem nela permanece em um tempo posterior, ou que a viveu. Fala de um passado, e presentifica esse passado como um marco de sua existência, como prova de um real, e ajuda simultaneamente a encarar esse registro sentimentalmente, a dar vida às situações passadas e agora fixas no retrato.

Para outro olhar qualquer, aquelas fotos não significam nada além do que registros corriqueiros sobre desconhecidos e enquanto tais nada representam do que o registro em si.

A fotografia como registro sentimental e como registro real. Sentimento e realidade se confundem no processo imaginário do fotográfico. As lembranças agora são mais visíveis e é possível buscá-las no álbum de retratos. Como retratos em branco e preto, isto é, como um registro imaginado através da névoa que a fotografia em preto e branco permite. A realidade fica como que envolta no mistério das nuances de cinzas. Tonalidades que demarcam o contorno dos registros e ao mesmo tempo lançam possibilidades de atuação colorida das lembranças, como em um soneto.

Colecionadas, as lembranças fotográficas permanecem como uma curva de vida. Na coleção encontra os sentidos dos amores passados e presentes, como uma prova à imaginação da realidade do que foi sentido.

A marca ambígua da individualidade entre ser social e ser individual, e, portanto, não social por excelência, é refeita socialmente pela prova dos sentimentos como lembranças que podem ser compartilhadas e comprovadas via fotografia. Prova-se a si mesmo e aos outros os sentimentos vividos.

Como diz a amostragem das conquistas ao estilo Don Juan: as mulheres ou os homens conquistados no transcurso da vida por um ser amante.

Sempre posterior, a fotografia representa o sentimento vivido no que já passou. Freud, em uma carta endereçada a sua futura mulher, Martha Bernays, em 1882, revela o valor da fotografia enquanto recordação do que se tem e não está presente, ou do que não se tem mais. “Teu retrato encantador. Apreciei-o pouco enquanto tinha o original diante dos olhos; mas, agora, quanto mais olho para ele, mais ele se parece com a minha amada. Fico esperando as faces pálidas se ruborizarem, ganhar o tom que tinham nossas rosas, e os braços delicados saírem do quadro para pegar minha mão; mas a querida imagem fica imóvel, apenas parece dizer: paciência! Paciência! Sou apenas um sinal, uma sombra lançada sobre o papel” (Freud, Correspondance 1873-1939. Paris: Gallimard, 1966. Pags. 17-20). Revela também o outro lado da fotografia, é apenas um registro; se vale como prova do real não é o real em si, mas uma realidade que foi como “uma sombra lançada sobre o papel”, ou como um soneto: um retrato em branco e preto a maltratar o coração ou a aliviar o coração (paciência! Paciência!) do olhar que procura o consolo no retrato estampado.

Pode indicar também outros predicados de conteúdo moral. Em outra carta a sua futura mulher Freud, apaixonado, revela sua fraqueza diante de um tipo feminino que o chamou a atenção e o papel do retrato de sua amada como um balizador moral de seus sentimentos. Diz Freud: “Fiquei desagradavelmente impressionado pelo fato de que as duas vezes em que ela esteve aqui tua foto, que geralmente não se move, caiu da minha escrivaninha. Não gosto destes sinais e, se fosse necessária uma advertência... mas não foi necessário” ( Freud, Op. Cit.., pags. 229-230).

A fotografia, assim, coleciona os sentimentos de amor, bem como sedimenta conteúdos sociais morais sobre ações involuntárias ou voluntárias da ou na conduta amorosa. Na extensa literatura folhetinesca e romanesca, a presença do retrato revela estas duas facetas, a de suprir a presença do objeto amado, ou de situações fixas no presente passado da fotografia que remetem sentimentalmente ao fato amorificado, e a de impor um argumento moral de presença ausente do outro da relação amorosa. Em Freud, o retrato parece insinuar o desejo aflorado e proibido. Nos folhetins e romances a fotografia do outro da relação amorosa ou reclama o olhar proibido ou é sempre coberta ou guardada nos momentos do desejo desperto por um terceiro na relação.

A ausência do original é presentificada, enquanto culpa através do registro fotográfico. O desejo proibido porque comprometido com as regras da monogamia ou do casamento resignado e feliz, instauradas pelo cristianismo na modernidade ocidental, como um contraponto às paixões. Como um controle social ao mito das paixões exaltadas (Kristeva, Histórias de Amor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.). A presença da fotografia amada impõe regras de conduta, e ao desviar-se dela, mesmo não intencionalmente, o retrato revela sua condenação.

Daí os amantes sistemáticos, os de caráter Don Juan, que querem conservar uma relação duradoura, afastarem o olhar do retrato do seu olhar. Como se o retrato falasse, os condenando moralmente.

O retrato porem é ambíguo na sua caracterização moral. Em sua visão pública personaliza e dá status as relações nominadas socialmente e que se quer permanentes: o namorado, a namorada, o noivo, a noiva, o esposo, a esposa. Expostas são referências necessárias ao estatuto social de quem as tem, comprovam a estabilidade familiar ou sua construção. São reverenciadas como símbolos significativos da vida social, isto é, pública do sujeito.

Podem as fotografia, porém, representar a linguagem da sedução e do pecado. Como também a da solidão e do sofrimento. Guardadas a sete chaves são atributos pessoais das conquistas ou das não realizações. Umas e outras contornando uma história pessoal que se contrapõe com a história social do sujeito e que às vezes se mesclam, vindo à tona a linguagem do desejo e das paixões sobre o discurso resignado e feliz socialmente aceito. Pequenos momentos de individuação, onde a vaidade e a tragédia se mesclam no conclamo público de um trajeto pessoal, que dependendo da circunstância, pode ser reverenciado ou condenado. A descoberta das paixões encoberta dão prestígio a Don Juans ou levam à morte aos Werthers.

Transformadas em lembranças íntimas ou em desafios secretos, a coleção de fotografias, ou a fotografia especial de alguém amado revelam-se em instrumento de individualidade: através desses registros se estrutura um conjunto de significados que condicionam o olhar para o interior de si mesmo. A fotografia criando um liame entre as sensações subjetivas do vivido e a prova exterior desta mesma vivência.

Secretas ou públicas enumeram vestígios de um passado, marcam este passado, o torna objetivamente real. Melhor, um real sempre presentificado. Um álbum de retrato que insisto em colecionar, que permite retornar nos já conhecidos passos desta estrada, cujo segredo eu sei de cor. Atemporal como são as paixões, a fotografia provoca no olhar que a evoca a presença de momentos passados que são remetidos ao olhar como presentes passados corporificados na sua fixidez de registro.

No registro fotográfico evoca-se imagens passadas como presente, sem tempo e sem espaço onde o olhar é remetido a evocar e, nesse trazer para si, possuir. Um peito tão magoado de lembranças de um passado que insisto em colecionar e, no manuseio desta coleção de retalhos de amores em fotos fixados apossarem-se do outro, mesmo que na proximidade distanciada presente que o olhar fotográfico permite.

Sempre íntima nas leituras de cada olhar é ao mesmo tempo prova eficaz de sua realidade, de sua sociabilidade. Através da coleção fotográfica é possível provar, em todos os sentidos do verbo. Através dela a individualidade ganha instâncias de sociabilidade na sociedade ocidental, onde o real e sua prova permitem a troca baseada na mercantilização dos objetos, pela vaidade ou pelo desprendimento. Onde o secreto é sempre acrescido de valor. Como retrato em branco e preto onde a prova do acontecido é revista nas brumas do olhar em tonalidades cinza, que remetem ao social com o sabor sempre de inadequação; mas uma espécie de inadequação sentimental, atenuada pela posse real que o registro fotográfico onipotencializa.

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[Publicado no Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 15 ago. 1998. Caderno de Cultura, p.1; 5.]
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[Uma segunda versão ampliada deste ensaio pode ser lido na Revista Política & Trabalho, n. 16, Setembro / 2000 - pp. 115-122, sob o título: "A MARCA AMBÍGUA DA INDIVIDUALIDADE: A FOTOGRAFIA E O SENTIMENTO AMOROSO". Pode ser visto, também, on-line na página da revista, no endereço: http://www.geocities.com/ptreview/16-koury.html ]
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