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terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Uma Entrevista


ENTREVISTA COM O PROFESSOR MAURO GUILHERME PINHEIRO KOURY SOBRE ESTUDOS SOBRE EMOÇÃO E SOCIABILIDADE


UM - Caro Professor Mauro Koury, para iniciar, nós gostaríamos de parabenizá-lo pelo seu trabalho em antropologia e sociologia das emoções e, principalmente, pelos seus estudos sobre luto social e medos urbanos. Temos acompanhado os seus trabalhos seja em textos e livros lidos na sala de aula, seja em entrevistas que serviram de motivo para artigos na grande imprensa, como foi o caso da reportagem saída na Folha de São Paulo sobre a Amizade ou na revista Terra sobre o Medo, seja ainda em revistas digitais encontradas na internet. Somos um grupo de estudantes de Jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo e, em nome dela, gostaríamos de fazer uma entrevista com o senhor.

Mauro Koury – Eu agradeço e estou à disposição de vocês.

UM - Como o senhor classificaria a Sociologia das Emoções? Em qual categoria das Ciências Sociais ela se enquadraria? Conte um pouco para nós sobre sua história até o interesse pela Sociologia das Emoções.

Mauro Koury - Eu iniciei minha trajetória nas ciências sociais nos anos de 1970 pesquisando a ideologia do trabalhador rural e o sindicalismo rural no Brasil. Enfim a trajetória normal de um estudante de graduação e pós de Ciências Sociais na época.
Passei um tempo na Universidade de Glasgow, Escócia, e, voltando para o Brasil, ingressei como docente do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Lá comecei a trabalhar com a questão da indústria e do trabalho no Brasil e, de modo especial, no Norte e Nordeste, em uma grande pesquisa financiada pela FINEP, ligada ao Núcleo de Documentação Histórica da UFPB, durante os anos de 1982 a 1986, da qual fui coordenador.
Neste período comecei a me interessar muito pela história da pobreza e dos pobres no Nordeste e desenvolvi o conceito de homem comum pobre, para melhor entender a formação do indivíduo e dos movimentos sociais no Brasil, tendo o Nordeste como foco analítico. Na verdade, toda a minha trajetória resulta em um tema comum único, que é entender um pouco este indivíduo e a individualidade contemporânea ocidental e, principalmente, o indivíduo na modernidade especificamente brasileira.
Esta preocupação, esta minha trajetória, a descoberta do homem comum pobre como objeto de estudo levou, durante meados dos anos de 1980, a me interessar pelas temáticas gerais e estruturais ligadas, sobretudo, a formação de classes e a pobreza no Brasil, só que já dentro de uma visão e uma busca analítica que tinha o cotidiano como ponto de partida.
Entro, a seguir, na questão dos movimentos sociais urbanos, dentro desta visão de cotidiano, até que, de repente, ao reler entrevistas por mim realizadas em pesquisas anteriores, me deparo com alguns casos, que me fazem olhar mais amiúde questões relativas à subjetividade deste homem comum. Aí então, desemboco nos anos de 1990 em uma pesquisa sobre o cotidiano e pobreza no Brasil, e dentro dela, a discussão sobre o luto, onde publiquei alguns livros como Uma fotografia desbotada: Atitudes e rituais do luto e o objeto fotográfico (Manufatura, 2002), Sociologia da Emoção. O Brasil urbano sob a ótica do luto (Editora Vozes, 2003) e Amor e Dor. Ensaios em Antropologia Simbólica (Bagaço, 2005) e as questões mais ligadas ao sofrimento social. Amplio a margem de interesse e análise, não mais apenas homens comuns pobres, mas, também, homens comuns da classe média e média alta brasileira. De repente, deste fato e deste meu caminhar, aflora nas minhas pesquisas a perspectiva da antropologia e da sociologia das emoções e, quase de modo simultâneo, da sociologia e antropologia da imagem, especificamente, a imagem fotográfica e suas relações com o sentimento. É a época da fundação dos meus grupos de pesquisa na UFPB: o GREM – Grupo de Pesquisa em Antropologia e Sociologia das Emoções (1994), e o GREI – Grupo Interdisciplinar de Estudos em Imagem (1995).

UM - Quais disciplinas o senhor administra atualmente?

Mauro Koury – Ministro, na Universidade Federal da Paraíba, as disciplinas de Teoria Sociológica e Teoria Antropológica e, dentro de um universo mais temático, a Antropologia Visual e Sociologia da Imagem e as disciplinas de Antropologia das Emoções e Sociologia das Emoções. Além de Sociologia Brasileira e Antropologia Brasileira, Antropologia Urbana e Sociologia Urbana, Métodos e Técnicas de Pesquisa em Ciências Sociais, Sociologia e Antropologia da Educação, Sociologia e Antropologia Jurídica, Movimentos Sociais, entre outras.


UM - Quando a Sociologia das Emoções aportou no Brasil?

Mauro Koury – A Sociologia e a Antropologia das Emoções começam a se expandir no Brasil em meados dos anos noventa do século passado, e, de uma forma mais ou menos delimitada, no mundo ocidental, principalmente, nos Estados Unidos e França, a partir dos anos de 1970. Para um aprofundamento da questão eu indico o meu livro: Introdução à Sociologia da Emoção (Manufatura, 2004). A Sociologia e a Antropologia das Emoções ampliam e renovam as disciplinas em que se assentam, com uma releitura dos seus clássicos e a retomada da discussão entre objetividade e subjetividade, sendo a emoção e os sentimentos o elemento motriz de se pensar o social. Ela hoje começa a abarcar o universo de cientistas sociais enquanto interesses e encaminhamentos de projetos e planos de pesquisa e estudos.
Mas, se si pensa a disciplina dentro de um plano da história da Sociologia, especificamente, a Sociologia das Emoções, tanto quanto a Antropologia das Emoções começa com a origem das Ciências Sociais. Na realidade, elas têm início no momento em que se identifica o indivíduo social como o sujeito da construção da sociedade e também como construído pelo social. Como construído pela sociedade e, ao mesmo tempo, a construindo.
Embora, a Sociologia e a Antropologia das Emoções tenham uma visão dinâmica desta questão, partem do princípio crítico do indivíduo na sociedade existindo em relação com o social, nem fundado, nem exclusivo, mas relacional, existindo como uma espécie de individualidade social que demarca um tipo de olhar ou de mentalidade específica tempo e espacialmente delimitada. Discutem, assim, inclusive, a própria questão da emoção no humano, como um processo de formação permanente e relacional: ao mesmo tempo individual e socialmente formada.
A partir desse princípio, e, especificamente, com a questão da busca do estudar a individualidade e os aspectos liminares do mundo contemporâneo: como o sofrimento social e o estudo da solidão e da ambivalência moderna se têm de modo mais claro a configuração de um novo campo disciplinar, que remete para a Sociologia e a Antropologia das Emoções. Os estudos começam a configurar toda a trajetória de entendimento do indivíduo na modernidade e o ser solitário e ambivalente dele surgido. O que monta toda uma rede de entendimento novo e propostas de releituras dos campos teórico e metodológico da Sociologia e da Antropologia. Discute o objeto das disciplinas Sociologia e Antropologia não a partir da vida individual e nem de sociedade ou coletividade como um todo, mas de uma relação dos dois elementos. São estas relações entre individualidade e sociedade, ou da objetividade e subjetividade, que fundam e dão ordenamento a possibilidades de um social qualquer e objetivam as formas de produção e reprodução das novas relações sociais. É desta visão complexa entre cultura subjetiva e uma cultura objetiva social, que se dá, exatamente, nos meandros da constituição do ou de um social, que se detém o pensamento crítico por trás da Sociologia e da Antropologia das Emoções.

UM - O senhor trata a questão do indivíduo moderno convivendo com a questão dos problemas originados nas cidades. Como ele convive com as questões habituais da cidade, do trânsito, da violência?

Mauro Koury - Quando se trabalha com modernidade em um sentido mais amplo, mais geral, nós nos detemos em um tipo de modernidade específica, a modernidade ocidental. Partimos da constituição do indivíduo no decorrer da tradição grega e judaico-cristã para compreender os diversos mecanismos, avanços, recuos e impasses que levaram à formação deste tipo de individualidade específica que é o homem ocidental contemporâneo, europeu ou norte-americano, e o seu legado nas demais sociedades, inclusive a brasileira, como palco de ideologia e imposição de um tipo de universalidade.
Apesar da necessidade de compreensão deste longo processo formativo do indivíduo no ocidente, discuto fundamentalmente o século XIX, pois neste período a população está vivendo momentos específicos de consolidação e expansão do capitalismo enquanto modo de vida e nele, vamos tratar, exatamente, a questão desta individualidade, deste indivíduo moderno, contemporâneo, que surge, propriamente, com a emergência das grandes cidades. Paris, Londres, por exemplo, que são cidades com mais de um milhão de habitantes e com grandes problemas sociais neste período, as mudanças aceleradas nas condições de vida urbana em cidades como Chicago e Nova York, nos Estados Unidos, bem como o acompanhamento das modificações tardias no plano urbanístico das cidades alemãs, como Berlim, por exemplo.

UM - Trazendo esta experiência para o Brasil, pode ser comparada a evolução do indivíduo dentro da sociedade, dentro da cidade?

Mauro Koury - No Brasil, no século XX, desde os anos 20 e, especificamente, a partir dos anos de 1960 e principalmente de 1970, é que parece se dar à emergência de um urbano de forma mais acentuada. De um Brasil urbano mais próximo ou ligado a essa visão mais individualista, ou que prossegue ou persegue um caminho da individualidade moderna ocidental como uma espécie de ideologia a ser conquistada, como significado de progresso e desenvolvimento, tanto individual como social.
O Brasil até então, vivia um jeitão ou um modo de ser mais relacional típico de sociedades hierarquizadas, dotada mais pelo seu lado de “jeitinho”, pelo seu lado meio malandro de ser, pelo seu lado mais familiar e de compadrio, no fundo, dentro de um panorama do “Olha quem tá falando!”, etc. Essas coisas que o Roberto da Matta esteve trabalhando deste o final dos anos de 1970 e ainda trabalha. De no Brasil, o espaço público ser uma coisa, do privado outra, mas sempre o espaço público como uma continuação do privado. Tudo tendo uma relação forte e hierárquica: até na morte as partes relacionais são parceiras, dentro do perfil brasileiro, que comandou a ideologia nacional e o comportamento médio dos homens comuns e dos grupos sociais locais até os anos de 1960.
Nos anos 60 e 70, período dos principais estudos da sociedade urbana no Brasil por Roberto da Mata, parecia ser esta a questão de referência. Um salto alto e meio sem destino parece que se deu a partir de então. Eu acho que as coisas se modificaram muito dos anos 70 para cá. A partir dos anos setenta tem-se um Brasil estatisticamente mais urbanizado. O grande contingente populacional vive nas cidades, e principalmente nas grandes cidades. Tem início a uma migração muito grande. O campo começa a se esvaziar e as pessoas começam a ir para as cidades. São Paulo, Rio de Janeiro e Recife são exemplos. Até as pequenas cidades e de porte médio como João Pessoa, já vivem, desde o final dos anos de 1980, esta realidade um pouco cruel, com a quebra de laços e tradições que a vida relacional permitia. Os laços de vizinhança, o conhecer todo mundo, o olhar sem receio é quebrado e, pouco a pouco, o espírito da individualidade e da individualização, dentro de uma perspectiva da ideologia individualista começa a avançar e a causar estranhamento e ambivalência nos comportamentos e atitudes dos cidadãos. Não que esta história esteja completa, acredito que se encontra mais anunciada que finalizada, o que amplia o desconforto e a ambivalência do homem comum, e aprofunda o espaço da sua solidão. Como pode ser visto no meu último livro Sociologia da Emoção, onde faço uma análise do Brasil Urbano atual sob a ótica do luto.
A história do capitalismo, no mundo contemporâneo e no Brasil, de modo particular, é a história deste processo de individualidade. De uma individualidade muito grande, que não pode ser vista, apenas, dentro de um plano negativo, como até agora falei, mas também dentro de um plano de positividade. Nunca se falou tanto na sociologia e na antropologia no lado psicológico dos sujeitos individuais, da formação do eu como sinônimo de liberdade e autonomia, como na história recente do ocidente, ou neste último momento da história mundial, mas, por outro lado, nunca também foi tão discutido e pesquisado a angústia e o sofrimento social e a solidão intensa, deste mesmo homem psi.

UM - O medo?

Mauro Koury - Exatamente.

Todos esses problemas urbanos, que nós classificamos como medos urbanos, eles são originados das cidades. Então, o senhor concorda que esses medos são, realmente, originários do inchaço das grandes cidades, da falta de planejamento dos grandes centros urbanos?

Mauro Koury - Eu vou mais a fundo. Eu acho que o inchaço das grandes cidades é de uma lógica muito perversa. Eu acho que não é só uma coisa existente no Brasil, mas o mundo inteiro vive este tipo de situação. Veja, por exemplo, na forma atual que assume este período da pós-modernidade européia, que as fronteiras geográficas estão se fechando para povos imigrantes, embora se fale na globalização como um prenúncio de uma diluição das fronteiras culturais, profissionais e mesmo, das fronteiras políticas e geográficas.
O Brasil, hoje, é um grande fornecedor de mão-de-obra barata para os EUA e Europa, inclusive. A classe média engraxa sapatos ou tem emprego de doméstica em Nova Iorque, é travesti em Paris, Roma e Milão, e diz que é melhor “ser prostituta em Nova Iorque do que classe média no Brasil”.
Encontram agora barreiras fechadas. O ser aventureiro brasileiro é visto como uma ameaça nos países centrais, e até em Portugal, periferia da Comunidade Européia. As filas nas portas das embaixadas norte-americanas, as formas clandestinas das pessoas ultrapassarem as barreiras impostas para uma vida fora do Brasil, da América Latina, da África, e da Ásia, de, inclusive, morrerem tentando burlar a vigilância para o ‘éden’, atravessando rios e sendo arrastados por correntezas, através em embarcações improvisadas, através de um mercado de escravos ‘brancos’, etc. para chegar aos EUA ou a países europeus, demonstram um pouco desta tragédia mundial da atualidade. O que parece aprofundar o estranhamento e o medo do outro. O medo contemporâneo teve dois lados opostos que se contaminam e se determinam constantemente e de forma contínua. Um lado positivo, de uma quebra de barreiras, entrando em um lado mais globalizado de um pretenso discurso de intercâmbio entre culturas e de um novo tipo de cidadania, a mundial, e, um lado negativo, da violência, de um novo preconceito contra outros sujeitos vindos de outras culturas, que é o das fronteiras fechadas.

UM - Eu percebo que este tipo de processo que o senhor está falando acaba se referindo ao capital de maneira mais perversa aos habitantes do Terceiro Mundo. O senhor concorda?

Mauro Koury - Com certeza. Esta globalização ocasionou uma revolução para o capital, atingindo de forma perversa o terceiro mundo. Isto não resta nenhuma dúvida. Voltando para o Brasil, este foi um problema para o país. A migração ainda continua. O deslocamento do homem do campo para a cidade é uma resultante do capitalismo no campo, não é que eles queiram migrar, mas são produtos de uma série de elementos específicos trazidos pela modernização da agricultura, a troca de pequenas produções pela produção em larga escala, a troca de família por bois, de alimento por pasto para bois, ou da presença da monocultura, bem como da terra como um valor em si, que é uma questão que não vou aprofundar nesta entrevista.
O resultado disto tudo, então, é de uma condição muito perversa: a cidade incha com o esvaziamento do campo, tende a ficar muito mais tencionada, a violência tende a se expandir, o anonimato das ruas, a falta de oportunidades, a diminuição de uma predisposição favorável ao outro, agora considerado inimigo em potencial, produz esta grande perversão que hoje existe. Nós somos, de repente, pessoas equivalentes num mundo de dinheiro, uma espécie de mercadoria gasta, em um mundo de equivalências gerais.

UM - Como assim?

Mauro Koury - O que significa a lógica do capital quando pensa o homem novo que ele ajudou a surgir? Significa que o homem é livre, é liberto para fazer o que quiser. Eu posso comprar força de trabalho e você pode vender a qualquer um ou vice-versa, como já dizia Marx criticamente, e antes dele, toda a economia clássica que ele criticava. Se eu tenho dinheiro para comprar, eu compro, se eu tenho que procurar para vender, eu procuro a quem me dê mais. Nesta política cria-se uma espécie de equivalente geral, que vai ser o dinheiro, que vai ser uma espécie de equivalente abstrato, e, através dele, eqüivalendo tudo ao mesmo, como já mostrou Simmel, tanto faz comprar uma pessoa ou um disquete de computador. No momento em que as coisas ganham uma equivalência geral e abstrata, tudo é reduzido a objeto, a mercadoria. Tudo é posto a troca, até os indivíduos.

UM - Mas o senhor concorda com a visão de uma coisa cíclica, de repente, os problemas crônicos do Brasil são violência e desemprego. Eles estão diretamente ligados ou o senhor discorda disso? Entramos em contato com algumas pesquisas da USP e elas relacionavam desemprego com violência pela questão, também, das pessoas migrando e não encontrando oportunidade de trabalho. Existe esta visão cíclica das coisas ou não?

Mauro Koury - Acho que a discussão e a problemática sobre ela é mais complicada do que a visão puramente cíclica: migração, desemprego, falta de oportunidade, violência e sua repetição. Claro, que o que você me falou é quase que óbvio. Hoje, o desemprego e a violência são ameaças e uma coisa é conseqüência da outra. Hoje qualquer pessoa na rua vai dizer isso para você, não precisa ser um cientista social, mas as causas são um pouco mais profundas.


UM - Quais são essas causas, além da questão do capital e dos elementos cíclicos apontados?

Mauro Koury - Em certo momento, é impossível escapar do capital, porque a política e o desemprego são resultantes do próprio movimento da capital atual, do capital financeiro. O capital financeiro tenta, hoje, dispensar mão-de-obra como forma de se “autogerir”. Ele acha que chegou certo momento de não precisar mais de força de trabalho, de se reproduzir por ele mesmo: dinheiro gerando dinheiro. Isto se dá, principalmente, a partir dos anos 90, de forma bastante evidente, – o capital financeiro promove uma política de esvaziamento de mercado de mão-de-obra, ou seja, ele coloca esta mão-de-obra para fora do mercado, gerando desemprego e tenta sobreviver com a própria lógica do dinheiro no mercado financeiro, das bolsas e da especulação em si, e do financeiro no dinheiro. Neste momento, estamos entrando, exatamente, no ritmo necessário e propício de expansão de uma nova modalidade de capital. Um sistema financeiro que foge de barreiras geográficas e político-culturais, que amplia as formas de dominação em escala mundial homogeneizando culturas e povos, que defende uma política de estado mínimo e de um individualismo crescente como ideologia de mercado que usa o empobrecimento da população e a sua marginalização social como forma de desenvolvimento necessário. Encerra, onde há o estado de bem-estar social, pune trabalhadores e aposentados em função de um ritmo alucinado da máquina de fazer dinheiro que é a especulação financeira em si.
Essa ideologia tem se ampliado no Brasil e no mundo, com uma espécie de camisa de força ou viseira de uma leitura estandardizada do processo de globalização. Vou pegar uma cidade como Fortaleza para exemplificar. Ela teve um desenvolvimento bastante grande entre os anos 60 e 90, sendo uma das cidades do Nordeste que mais se desenvolveram neste período, desbancando as cidades de Recife e Salvador, por exemplo. Mas qual foi o desenvolvimento de Fortaleza? A pobreza continua drástica. Por outro, a Fortaleza está, pelo menos em espírito, em ideologia, globalizada e, segundo os seus planejadores, ligada ao século XXI e, nela busca-se criar estratégias para lançá-la e deixá-la muito mais ligada ao mercado mundial através do mercado formal turístico. Pensa-se uma cidade polo de atração estrangeira e uma população vegetando nas margens destes viajantes do exótico. O mercado retrai-se, na questão tradicional, o homem comum vai para a rua, desempregado ou subempregado, moradias pobres são desfeitas, em processos curtos ou longos de despejo, e a cidade se arma para uma ilusão. O que amplia as margens de insegurança, de desconforto, de violência interna entre os moradores e uma dependência maior desta ilusão do estrangeiro turista e de um mundo do qual ele, cidadão local, não tem como participar, a não ser pelas franjas.

UM - Um documentário dos EUA (Tiros em Columbine) fala sobre a indústria do medo. Nós poderíamos fazer um paralelo com a situação do Brasil, atualmente?

Mauro Koury - A questão do Brasil é muito mais simples. Nos anos 70, em pleno domínio da ditadura militar, o Brasil vai sofrer um processo muito grande de intensificação e expansão das políticas de um policiamento privado. A matéria de capa da Revista Época dessa semana ou retrasada falou sobre a questão da segurança privada no Brasil, que chega a ser de uma dimensão assustadora no país. É interessante notar, assim, que a expansão da indústria do medo é influenciada pela própria indústria de segurança privada. O medo gerando a necessidade de segurança e a segurança ampliada gerando mais medo. Olhe aqui um ciclo bem mais interessante de se discutir e se debruçar na conformação recente da mentalidade do medo no urbano brasileiro! A indústria da segurança cresce exatamente por fomentar e fundamentar ideologicamente e imaginariamente o medo nos outros, no cidadão comum, fazendo as pessoas se protegerem horas 24 por dia.

UM - O documentário falava da mídia também. Ele fez uma comparação com os casos de homicídios nos EUA que diminuíram em 20%, já a cobertura da mídia em casos de violência teve aumento de 600%. Ele faz um paralelo relacionando como a mídia acaba favorecendo para esta cultura do medo dos norte-americanos. O senhor traria esta situação para o Brasil com esses programas sensacionalistas?

Mauro Koury - Traria. Eu não sei se daria tanta importância tão radical como o que o documentário retrata. Mas que a mídia tem uma influência na disseminação de uma cultura do medo é verdade, neste ponto não há como negar, realmente ela têm influência, com certeza. A mídia é formadora de opinião pública e como tal tem uma influência decisiva em passar mensagens subliminares.
Há pouco tempo dois artigos sobre a fotografia e morte violenta e sobre fotojornalismo e sofrimento social, saídos na Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, http://www.cchla.ufpb.br/rbse/Index.html falam do lado ambíguo que a fotografia que a fotografia na imprensa possui. De um lado, ela é o reflexo do que foi e do outro ela tem toda uma previsão acumulada ideologicamente do que se quer passar enquanto mensagem, que levam aos leitores que a veem interpretá-la de um modo específico, ou mesmo, que vão oferecer subsídios subliminares que imporão um tipo específico de leitura e compreensão para o próprio leitor. Ela cria situações específicas, que promove a ampliação de certo tipo de cultura ideológica ou política, ambiguamente, e que tem a ver com a questão da violência e do medo.

UM - Voltando um pouco sobre a questão da individualidade, o que o senhor trata na sua pesquisa, emoção relacionada ao medo, medo é uma emoção. Como as pessoas nos grandes centros urbanos acabam sendo condicionadas a este medo? Existe alguma alteração no comportamento das pessoas devido a esses medos?

Mauro Koury - Com certeza. Acredito que os pais de vocês ficam morrendo de medo até vocês chegarem em casa, não é? O que vai acontecer com meu filho? Isso vai desde drogas até AIDS, ou mesmo ser assaltado e morto por balas perdidas ou balas dirigidas, por atropelamento, ou o que for. Não se sabe o que pode acontecer, ou seja, os medos que pairam e perpassam a cabeça do cidadão comum são muitos amplos. O medo não é apenas de você ser atingido por uma bala perdida ou doenças como a AIDS, mas é um medo muito mais difuso dirigido para uma sociedade e uma sociabilidade fragmentada, de que não se tem controle, e ao mesmo tempo, ou simultaneamente, dirigido a uma pessoa, nem que seja o próprio filho e suas relações, de quem você não tem acesso ao seu íntimo, não tem a segurança sobre ele no seu todo, e teme e projeta sobre ele e suas relações fora de casa ou de suas vistas, o seu receio como uma forma de proteção, de protejê-lo contra os perigos de um mundo injusto, violento, amaldiçoado.
Lógico, isso interfere no presente das relações, de forma ambígua e ambivalente, fazendo com que o medo perpasse as relações inclusive afetivas, demarcando-as pelo desconhecido que sou para o meu próximo, e não apenas para o outro distante e opaco. Mas a minha preocupação nas minhas pesquisas diz respeito sobre qual a conseqüência que isso acarreta e pode acarretar para os presentes e futuros moradores dos grandes centros. Já que eles se fecham cada vez mais em suas casas, principalmente a classe média, e acabam evitando o convívio - que acontecia largamente nas décadas de 50 e 60 - com as outras pessoas. Ao que remeterá esse processo de fundação e ampliação desse homem melancólico no Brasil atual? Não mais se sentindo apegado ao passado, a não ser em uma imagem saudosista e sentimental, vivendo o presente de forma ambígua, que o apega a um passado perdido e que não sabe onde perdeu, de forma sentimental, e que o desapega a este mesmo passado, como tradição, pois, pela ideologia moderna, essa tradição não o faz moderno e projeta no futuro uma modernidade que só é vivida em intensidade no sofrimento, na perda da pertença, na dor da solidão...

UM - Isso pode causar danos psicológicos e sociais para esses indivíduos?

Mauro Koury - Já acarreta. Nos anos 80, por exemplo, quando o processo começa a invadir a classe média de forma marcante que se apega a criação de vínculos estáveis, à carreira, ao conforto material, depois do processo de lutas armadas nos anos 70, do desgaste da esquerda, e da desilusão da contra cultura que se debateu o país após o período intenso da repressão. Este início do próprio repensar da classe média é um processo doloroso, onde o medo, o sentimento de perda, a perda da própria perda, se leva a uma individualidade e a uma busca do eu de forma mais intensa e visando uma liberdade pessoal, de outro lado, o leva ao consultório do psicanalista, como um não encontrado, como um perseguido, como um incomodo ou incomodado, como um sem relações estáveis e duradouras, como alguém, enfim, que não sabe como se comportar em situações definidas, o que provoca um fechar-se em si e rejeitar (querendo o contrário) os outros.
Eu sempre pensei na classe média como uma categoria mais suscetível as mudanças culturais. Nos anos 80 do século passado, no Brasil, na verdade, vivemos uma corrida para a psicanálise. Este tipo de busca, de isolamento, da depressão como forma de não administrar exatamente o seu cotidiano. É o “Eu já não tenho outro, o outro para mim é um eterno algoz”. Este outro necessariamente não precisava ser o bandido na minha frente, podia ser a minha namorada. Mas, ideologicamente, tudo se misturava, e o medo do outro virou um medo da ameaça a minha pessoa, a minha comodidade, a minha propriedade: namorada ou bandido.

UM - Eu fui vítima recentemente de um dos medos. Eu fui assaltado por dois rapazes de motos. E toda vez que ouço o barulho de motos, já fico sobressaído. Independentemente de ser homem, mulher ou criança, eu me assusto, ou seja, você já cria um mecanismo de defesa. É isso que eu percebo que as pessoas acabam criando e a meu ver isso é negativo.

Mauro Koury - É claro. Eu conheço um caso.

UM - Era essa a próxima pergunta. O senhor já conviveu com algum desses medos?

Mauro Koury - Um amigo do meu filho, mais ou menos na sua faixa etária. Ele estava voltando para a casa, de madrugada, parou o carro para abrir o portão de casa, daí dois rapazes de moto chegaram. O garoto não ofereceu resistência e entregou a chave do carro, a carteira, entre outros pertences e os caras, no final do assalto, deram um tiro no joelho do rapaz e ele ficou com problemas físicos após o episódio.
Essas coisas são muito mais amplas. A gente vai não só vivendo as experiências na pele, mas vai também sabendo sobre essas experiências e fazendo delas nossa muralha de um castelo do medo. Na realidade nós estamos nos trancando, quem é o cara de classe média no país hoje, sem falar das classes altas, ou mesmo de classes baixa que não tenha tentado ou já erguido, cada vez mais alto, o muro de sua casa; colocar dispositivos sonoros de segurança no seu carro, carrão ou carrinho; ou mesmo em seu lar, para se proteger mais; tentar deixar os filhos menores dentro de casa, - já que os maiores são mais difíceis de controlar, e daí, talvez, se possa até entender o processo de abertura dos pais para namoradas dos filhos e namorados das filhas pernoitarem e se namorarem no interior do quarto da casa dos pais (não é a abertura para a questão sexual que parece ter ocorrido, pelo menos não apenas, mas uma forma de garantir a integridade dos filhos, protegendo-os no interior do lar, ou debaixo da saia da mãe, como se dizia antigamente), - e não ficarem muito na rua.

UM - Essa é outra questão que queria fazer para o senhor. O medo atinge as pessoas de formas diferentes, dependendo da classe econômica e escolaridade?

Mauro Koury - Eu acredito que não, o medo persiste hoje na relação do homem moderno, independente de classe social. As classes médias talvez convivam com mais temor que a classe alta, que encontra outras formas de fugir, como viajar para o exterior, para Miami (EUA), - me desculpe a piada, embora real, - por exemplo. Mas se as classes médias têm uma visão mais evidenciada sobre esse tipo de tragédia é porque talvez se sintam desprotegidas, e que tem alguma coisa a perder se não agir com uma segurança desdobrada. Mas nas classes mais baixas é tal e qual. Você vai fazer uma pesquisa dentro de bairros pobres, a situação de medo é permanente. Inclusive o medo de falar. Conversando com psiquiatras, que trabalham no sistema de saúde público e atende a população mais pobre, eles informam que a questão da tensão permanente pelo medo de uma violência presente e constante, de policiais, de bandidos no abstrato, de bandidos no concreto, de serem confundidos com bandidos, de serem mortos por acaso, de serem espancados por falarem, de uma violência sempre presente e crescente nas suas relações domésticas, profissionais, de moradias em áreas de risco, de serem expulsos de suas moradias, de relações ocasionais: na mesa do bar, no ônibus, atravessando um beco, ou sei lá o que, ou com os poderes públicos. Eles convivem com o medo, esse medo não só da violência de chegar na sua porta, que é cotidiano, mas o medo de falar, de como não ter ou não haver forma de se protegerem.

UM - O medo de perder sua residência numa enchente...

Mauro Koury - Pois é, e o medo do outro, do vizinho, que essa pessoa não sabe muito bem quem é e do que se trata. Porque na realidade, eles dizem “eu sou pobre, mas sou decente, mas o meu vizinho será que é?”. E essa é a lógica da classe média também e da classe alta, só que dirigida preferencialmente para os pobres...

UM - Nós sabemos que temos caráter, mas temos medo do vizinho que não sabemos se é uma pessoa realmente de bem ou não.

Mauro Koury - Mesmo um colega de escola, que está vestido como você e se comporta como você, mas pode ser um grande “bandidão”. Eu vi isso há pouco tempo na imprensa em Recife. Um cara estudava o terceiro período de direito em uma escola privada, era um aluno calmo, tranqüilo, e de repente foi preso em plena classe por ser um traficante com várias mortes nas costas. A estudantada dando depoimentos, um pouco maravilhada pelos minutos de fama e um pouco, também, com medo, dizendo, “meu Deus, esse cara estudava em uma carteira perto da minha, bebemos junto algumas vezes, o cara foi na minha casa fazer um trabalho em grupo, e de repente é um bandido...”. Estar vestido de acordo com a moda qualquer um pode estar não é mais parâmetro para nada. Assaltantes bem vestidos levam o seu carro, com uma cara de anjo e um revolver na sua cabeça... Hoje, também, crianças roubam roupas de outras crianças, porque o sonho do consumo virou universal, vestir grife, ou imitar roupas de grife faz parte das relações de equivalência entre anônimos moradores de uma urbe, onde todos parecem iguais e são vistos com receio por todos. O estranhamento passa a ser generalizado. Todos os homens passam a ser visto pela mediação do medo, do receio, do estranhamento, o que leva a cada um se recolher e não ter relações e proximidades para não ser, imaginariamente ou potencialmente, mais uma vítima. O dinheiro faz essas coisas e faz com que você deseje esses objetos, lute por ele, os tenha ou os persiga de qualquer forma. O importante é tê-los, não importa a forma da ação de consegui-los.

UM - O senhor já foi assaltado?

Mauro Koury - Não, nada aconteceu comigo até agora. Mas minha mulher, minha filha mais velha, já, elas já tiveram uma arma apontada para as suas cabeças na porta de minha casa. Até hoje quando elas estão chegando em casa, me ligam para eu ir até a rua acompanha-la, e se não estou, um filho ou alguém que esteja em casa. O abalo moral e psicológico da pessoa é muito grande.

UM - O trabalho de campo do senhor, como é feito?

Mauro Koury - O meu trabalho não se prende apenas à questão da grande violência. É um trabalho que tende a discutir a questão do medo, do medo corriqueiro, esse medo cotidiano que você vive no dia-a-dia, esse medo em que você sente em ser amigo de uma pessoa e ele pode trair você, a insegurança desse sujeito, a dificuldade das pessoas se entregarem umas as outras. É essa questão dos medos que me interessa. O que leva a pessoa a agir criando uma barreira de proteção em torno de si e a reagir às trocas possíveis de outros sujeitos individuais. Eu me interesso pelos medos corriqueiros, não apenas dos medos que atuam como uma forma de paralisia social ou individual, mas que atua como forma de construção social. Parto da premissa de que a base da história social, da sociedade está assentada em uma história do medo, do medo ser aventureiro (como queriam Goethe e Simmel), o medo que permite provocar projetos, levar à superação de impasses e a novos projetos. O medo que busco compreender é bem criativo, está na base da construção de sociabilidades, não é apenas aquele que apavora, embora passe também por ele, e cada vez mais por ele. É o que trato, por exemplo, nos meu livro, De que João Pessoa tem medo? Uma abordagem em antropologia das emoções, recém publicado pela Editora da UFPB (João Pessoa, 2008).

UM - Quando o senhor fala em construção social, o senhor se refere especificamente ao que?

Mauro Koury - Duas pessoas trocando informações, se relacionando, fundam uma possibilidade de sociabilidade. As emoções, incluindo o medo como emoção, não é restrita a parte digamos psicológica da pessoa, é uma construção social, locada no processo da relação com outro. Eu trabalho com duas questões, a da formação do sujeito individual, e a reconstrução desse sujeito enquanto fundação social, e as relações entre as duas, para não dizer vive e versa.

UM - E senhor veria alguma alternativa para amenizar os medos corriqueiros ou realmente é algo que só tende a crescer na sociedade?

Mauro Koury - Vamos pegar o caso do Rio de Janeiro que é visto como uma tragédia nacional, essa questão de bandido matando, colocando fogo em ônibus, dando tiros no Palácio do Governo, a polícia envolvida com criminosos. Mas, se visto de uma perspectiva mais próxima da sociedade, se vê que ao mesmo tempo a sociedade civil se encontra mobilizada. O projeto Viva Rio, por exemplo, é de uma beleza, uma dignidade. Eles têm uma página na Internet chamada Alô Favela que é de uma beleza exemplar. Eles têm trabalhos comunitários com os moradores do morro. E, na realidade, o que eles tentam colocar é que não adianta discutir qualquer solução enquanto não se discute o que de fato ela é, a falta de perspectiva de uma política governamental e social no Brasil para o combate à pobreza, para combate à desigualdade enquanto tal. A questão não é somente os grandes bandidos ou a ineficiência da polícia, o importante é mobilizar a população à respeito dela mesma e buscar pressionar para formas mais amplas de respeito e cidadania como fundamento máximo e básico de respeito e dignidade pessoal.

UM - O senhor então acredita que o caminho é esse?

Mauro Koury - Esse é um caminho, um projeto que é bonito de se olhar e talvez de se tentar, como se está tentando. A minha visão é mais ampla, eu não vejo uma solução para um futuro magnânimo e final, eu acho que os jogos de sociabilidade são sempre jogos de alianças, que modificam projetos originais, e criam novas formas de dominação e naturalização sobre os vencidos e, ao mesmo tempo, novas reações e possibilidades de novos projetos. Sempre ricos e sempre eficazes no imaginário e criação social no percurso para uma nova solidificação hegemônica.
Cada vez que novos projetos aparecem e vão colocando na mesa cartas novas e tentam levantar uma mobilização das pessoas, cria-se uma nova mentalidade, um novo jogo político que se organiza e tenta se contrapor, não é uma coisa para amanhã, é uma coisa bem mais pausada, mas que sempre avança, mesmo nos recuos. Agora, sempre com um jogo político, que são opções momentâneas, e onde a incerteza permanece. Ou seja, o medo no início é fonte motora e motriz, que leva a ação e repele impasses que o naturalizam como acontece agora, de uma forma quase que ‘absolutizada’ e constituída como uma cultura do medo que paralisa e serve para fundamentar uma política de segurança privada e um mercado privado de segurança. Cabe diferenciar os medos corriqueiros, que são fontes de movimento, da cultura do medo enquanto ideologia, que faz parte de uma forma hegemônica de dominação e marginalização dos homens, via individualismo. A cultura do medo que estou falando é uma cultura construída por uma sociedade capitalista que tem interesse para vender segurança e estimular esse medo. Esse medo que leva as pessoas para a solidão de seu íntimo, ou da sua casa, a ter medo do seu vizinho, da sua própria mulher, dos seus próprios filhos e pais, como o caso de filhos ou pais que matam os pais ou filhos para ficar com o dinheiro e com o namorado bandido, o menino drogado que tenta matar a mãe, o pai que mata o filho drogado, para ter paz, para salvá-lo, ou sei lá o que, como a imprensa tem divulgado a cada hora nestes últimos tempos...

UM - O senhor acha que isso é decorrência da individualidade, da depressão, da solidão que acaba acontecendo?

Mauro Koury - Eu acredito que o problema é exatamente esses elementos de que venho falando: de um lado a solidão, ou de um sentimento de incompreensão, o medo da perda e de perder, e por outro lado, também, o fato de a saída lógica ser o dinheiro, se eu mato meus pais (caso de tantos crimes em família), eu fico dono do pedaço, ou eu consigo chamar a atenção para mim; ou a idéia romântica do amor (em caso de seqüestros e mortes de companheiras ou companheiros); ou, ainda, a forma possessiva do o que não posso ter ninguém também terá, e tantas possibilidades outras. Essa lógica, ou essas lógicas, que nos equivalem e de que qualquer coisa é possível, de qualquer jeito, onde a ética e a moral estão confusas, faz parte dessa trajetória complicada e ambígua para o individualismo, na sociedade contemporânea e brasileira, de modo particular, como já dito em vários momentos desta entrevista.

UM - Esses medos são característicos de cidades?

Mauro Koury - Com certeza, faz parte do modo de vida urbano. Hoje nós temos a questão do campo, como tínhamos antigamente, de pessoas que morrem em invasões de terra, são expulsas das terras, invadem terra, mas essa questão é inerente à lógica expulsiva do capital, embora já possamos vê-la, hoje, também, como uma esfera do valor agregado ao fenômeno cada vez mais urbano, no seu controle social e econômico e político global. A luta no campo é ainda política, de sociabilidade coletivizada, e só como questão pensada ainda como coletividade pode ser entendida e analisada, e mesmo vivida...
Mas essa violência que venho falando até agora diz respeito à questão do individualismo e proteção de si como eu isolado, e, de fato, ela é característica da cidade, ela surge na cidade grande, no Brasil desde os finais da década de setenta do século passado. Embora se possa dizer que perpassa toda a sociedade brasileira contemporânea, como ideologia.

UM - Nem é preciso ir muito longe, no interior de São Paulo as pessoas têm uma receptividade maior para receber o vizinho, existem vínculos afetivos que eu percebo que dificilmente acontecem nas grandes cidades.

Mauro Koury - A gente sabe disso, você sabe que chegando a qualquer cidade grande você vai ter dificuldade em abordar e se aproximar de alguém ou ir até a casa de alguém. As pessoas têm medo de se aproximar e receber alguém em suas casas, só depois de certo ambiente de familiaridade é que você vai ser introduzido e mesmo assim aos poucos, porque você não pode abrir muito espaço. Embora, hoje em dia, o retorno para a casa, o receber amigos em casa, é também uma forma de proteção...
Mas, esta perda da pessoalidade e o início de um estranhamento típico da emergência do individualismo, já se pode dizer que começa a existir nas relações sociais de todo o Brasil, sejam em cidades grandes ou pequenas. A cultura do medo é uma ideologia que está implantada e se consolidando no Brasil desde o final da década de setenta do século XX e vem se firmando cada vez mais no século XXI.

UM - O senhor acredita na intervenção do Estado para resolver essa questão medo, principalmente em relação à violência?

Mauro Koury - Veja bem, é interessante a questão, eu acho que o Estado detém uma política de controle social, de um braço disciplinar muito forte, de um braço não só policial, mas também econômico e social. Mas a questão é cercada por pressões específicas que acabam tornando o governo e o controle estatal na área de segurança muito pouco potente. É só ver o nosso presidente, que sempre diz que é mais difícil do que imaginava que não pensava que fosse assim antes de assumir o poder. Muito mais que o Estado, eu acho que a sociedade civil pode se organizar e criar pautas e agendas interessantes para um movimento de cidadania, de paz, de quedas de medos, mas é uma visão otimista por si, sem maiores predicados.

UM - Qual o seu maior medo?

Mauro Koury - Eu mesmo. O meu maior medo sou eu mesmo. Essa coisa de opções, dos limites e deslimites, das eficácias das ações que você produz ou se nega, tudo isso que faz uma trajetória de vida, pessoal e relacional, o amanhã sempre tem muitas opções que você não pode conter, dispor, controlar, por mais projetos que você tenha. Tudo parece um jogo, com cartas que você coloca ou outros, marcadas ou não, mas sempre incertas de conclusão. Isso é bom pois estimula a aventura da vida, do outro lado, é medo só e apenas...

UM - O futuro é o medo do indivíduo moderno?

Mauro Koury - Com certeza, eu acho que essa é origem, nós temos medo do futuro ao mesmo tempo em que corremos para ele e o ansiamos. Ao mesmo tempo, também, tentando ficar. Não sair do lugar, da estabilidade do agora, mas que é sempre, na visão moderna, uma estabilidade que remete ao futuro, pois é lá que se encontra de fato a meta do estável, do a ser adquirido. E sempre, assim, correndo atrás do presente em função desse futuro que nunca chega, porque quando chega esse futuro ele já é presente e as pessoas sempre querem mais. E por outro lado, existe uma questão terrível, porque ao fazer isso você esquece o que está por trás, e aí é que está a questão da origem da nostalgia, da melancolia, da solidão. Ao cortar os vínculos você volta para trás e não sabe aonde se perdeu e só encontra a morte no caminho. É trágico.


UM - Agradeço ao senhor pela entrevista.


Mauro Koury - Eu que agradeço. Boa noite!


(Entrevista realizada em 20 de outubro de 2008 por alunos de jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo)