Amizade vida loka
Luiz Alberto Mendes e Edmundo
Clairefont debatem amizade em circunstâncias extremas
Nosso colunista Luiz Alberto Mendes escreve cinco
crônicas sobre amizades nas ruas e nos presídios brasileiros – onde passou 30
anos. Enquanto isso, o repórter Edmundo Clairefont conversou com antropólogos,
biólogos, psicólogos e filósofos para entender por que, afinal, precisamos
tanto de amigos
A amizade
nasceu na África, uns 10 mil anos atrás. Mas pode ter sido na China. Ou no
Oriente Médio. Talvez tenha sido antes, há 12 mil anos, mas ninguém sabe ao
certo. A origem da amizade é uma história nublada e morta. Só sabemos que ela,
a amizade, é filha da circunstância com a substância – e isso não é poesia
(ruim); é ciência. É fórmula, é mecanismo. É química corporal. É ação e reação.
Sua função é mais ou menos exata e resumida numa palavra: sobrevivência. Temos
amigos porque ter amigos faz com que se viva melhor e por mais tempo.
A
circunstância
Na
Pré-História, os laços humanos eram amarrados entre pouquíssimos indivíduos.
Pesquisadores estimam que travávamos contato com, no máximo, 50 pessoas. Era um
arranjo que permitia agilidade a uma rotina ambulante, cheia de riscos e
predadores. Por volta de dez milênios atrás, esse período, o Paleolítico, foi
encerrado pela descoberta da agricultura. Acontecia a revolução neolítica,
enterrando a era dos caçadores-coletores. Deixamos de ser nômades.
Ocupando
mais terreno, afastando as ameaças e estocando alimentos, a vida ficava mais
fácil, sedentária, longa. O problema era que, para esses povoados funcionarem e
crescerem, se tornou uma necessidade ficar e juntar mais gente além do nosso
reduzido círculo de parentes. Era obrigatório fazer alianças.
O segundo
passo foi pensar nas relações que aconteciam dentro desses ajuntamentos fixos.
“Um bom jeito de explicar por que homens [e primatas como os chimpanzés]
têm a capacidade para a amizade é entender que, com amigos, formamos coalizões
sólidas, algo importantíssimo quando vivemos em grupo”, explica o biofísico
alemão Stefan Klein, autor de A fórmula da felicidade (Sextante, 256
páginas). “A amizade permitia essa cooperação em busca de um benefício comum.”
Ou seja, a amizade nasce de um impulso contraditório, um altruísmo egoísta:
ofereço algo porque espero receber algo, e assim todos lucram.
“Acontece
que essa ideia de que se você coça as minhas costas, eu coço as suas, que é uma
teoria da psicologia evolucionária, não basta para explicar a existência de um
amigo”, diz o filósofo e teólogo Mark Vernon, autor do livro The Meaning of
Friendship (O sentido da amizade, inédito em português). “Embora adoremos
ser úteis aos nossos amigos, odiamos ser usados por eles. Esse altruísmo
recíproco pressupõe que sejamos basicamente usados pelos amigos.” Klein
concorda: “Como qualquer explicação
darwinista, ela só dá conta de por que somos capazes de ter amigos. Não explica por que escolhemos esse e não aquele nem por que, às vezes, damos sem esperar receber”.
darwinista, ela só dá conta de por que somos capazes de ter amigos. Não explica por que escolhemos esse e não aquele nem por que, às vezes, damos sem esperar receber”.
A
substância
Se alguém
fosse dissecar a amizade para reduzi-la a um só componente físico, a partícula
elementar das relações humanas teria um nome: oxitocina. Esse hormônio,
produzido no hipotálamo (uma região do cérebro do tamanho de uma noz), estimula
a busca por um parceiro para a reprodução. É também responsável pelo impulso de
se relacionar, querer conhecer gente e, dependendo desse conhecimento, manter
essa gente por perto. Animais produzem a substância em quantidade muito
inferior. Essa diferença química entre espécies e o fato de a oxitocina atingir
diversas regiões do nosso cérebro, cada uma com funções particulares, explica
por que estabelecemos relações intensas, complexas, únicas, diferentes. E por
que a amizade faz bem tanto para o corpo como para a mente.
A
oxitocina começou a ser entendida em 1909, pelo fisiologista inglês Henry Dale.
A partir dele, e nas décadas seguintes, cientistas decifraram os efeitos que
ela causava no corpo. Encontraram um carnaval. O hormônio promove uma farra tão
grande dentro do organismo que seus efeitos vão de melhoras no sistema
imunológico a contrações da vagina que facilitam a inseminação do óvulo. E vai
além: reduz a ansiedade, nos torna mais resistentes a doenças e menos
agressivos. Quando você se sente cansado de estar sozinho, é a oxitocina
clamando.
Enfim,
por que temos amigos?
Por causa
da oxitocina (a substância) e porque viver é difícil (a circunstância). Como
não dá para escrever a própria história se relacionando apenas com a família
(em algum momento você vai se apaixonar, trocar de parceiro, quem sabe, ter
filhos), fazer amigos é o caminho para gerar descendentes, viver bem, com mais
gente em volta e por mais tempo.
Um estudo
da Universidade de Harvard mostrou que ter amigos íntimos pode esticar a
expectativa de vida em dez anos. A amizade é tão poderosa que uma pesquisa dos
sociólogos Nicholas Christakis e James Fowler, publicada no livro O poder
das conexões (Elsevier, 336 páginas), afirma que, quando um amigo engorda,
temos 45% mais chances de ganhar uns quilos. Quando é o cônjuge que ganha peso,
as chances são menores (37%).
“Neuro-hormônios,
como a vasopressina e a já citada oxitocina, são liberados quando iniciamos uma
relação ou reencontramos alguém querido”, explica Stefan Klein. “Eles acionam
sistemas cerebrais que fazem conexões e acessam nossas memórias.” O cérebro
relembra a você que aquela pessoa é confiável, um porto seguro. Ficamos menos
agressivos, mais confortáveis. “Esse processo reduz o estresse e o medo do
desconhecido, as inseguranças. Confiança, aliás, é a palavra-chave da amizade e
de qualquer forma de cooperação.”
“Conversar
era proibido na cela forte. Henrique falava sobre livros pelo encanamento da
privada”
Outras
substâncias também entram no jogo. Neurotransmissores, como dopamina e
endorfina, por exemplo. As risadas, aquela colossal sensação de alegria e empolgação
que sentimos entre amigos, são efeitos dessa química corporal. Seu resultado é
chamado por cientistas de natural high. Algo semelhante ao efeito
causado por algumas drogas – e, portanto, pode ser viciante (o que explica as
crises de "abstinência” de nosso círculo íntimo).
Um estudo
publicado por pesquisadores da Universidade de Duke, nos Estados Unidos,
indicou que o indivíduo que tem ao menos quatro amigos corre menos riscos de
desenvolver doenças cardíacas. Quem não atinge esse patamar, dobra suas chances
de um enfarto ou derrame. Nesse jogo, a oxitocina, de novo, tem um importante
papel. Ela reduz a pressão sanguínea e sossega os batimentos cardíacos.
Como
escolhemos?
“Basicamente, por semelhança”, explica o
biofísico Stefan Klein. “A psicologia social provou que pessoas parecidas andam
juntas.” Mauro Koury, coordenador do GREM - Grupo de Pesquisa em Antropologia e
Sociologia das Emoções da Universidade Federal da Paraíba, diz que nossos
amigos funcionam como um espelho. “Eles são escolhidos pelas projeções que
fazemos em relação aos nossos próprios desejos e anseios. Procuramos neles
qualidades ou defeitos que podem ser úteis aos nossos defeitos e qualidades”.
O
psicólogo cognitivo Peter DeScioli, da Universidade da Pensilvânia, foi um dos
responsáveis por delimitar como escolhemos e ranqueamos as pessoas. Com o
pesquisador Robert Kurzban, ele desenvolveu a Hipótese das Alianças. “Nesse
estudo, proponho que a amizade pode ser entendida como uma estratégia de
apoios”, explica. “É por isso que as pessoas se ajudam mesmo quando elas não
esperam retribuição. Ajudar os amigos é uma forma indireta de se ajudar. Se eu
sou seu melhor amigo, você tem que ser o meu.” Nesse modelo, ter muitos amigos
não significa enfraquecer as amizades mais profundas. “Mas isso apenas se as
pessoas deixarem claro quem são esses amigos mais importantes. Se as pessoas
que têm muitos amigos não demonstram quem faz parte de seu ciclo íntimo, suas
amizades tendem a ser mais frágeis”, afirma.
A noção
de que o interesse move os nossos relacionamentos ganhou popularidade em 1976,
quando o evolucionista britânico Richard Dawkins publicou O gene egoísta
(Cia. das Letras, 544 páginas). A tese da obra é simples: nossos genes buscam a
sobrevivência. Por isso, eles procuram qualquer tipo de aliança que servir a
esse propósito. Tirando a lupa e ampliando o campo de visão, nossas relações
seguiriam o mesmo princípio. Fazemos o bem porque fazer o bem faz bem pra
gente.
“A
necessidade do outro no isolamento nos deixa mais
vulneráveis. O perigo de ser usado e traído aumenta”
O
sociólogo e antropólogo francês Marcel Mauss chamou de “dádiva” um ato de
doação que não visa retorno. “Entretanto, embora sejam gestos altruístas e
desinteressados em si, pressupõem troca, o retorno daquele que recebeu a dádiva”,
afirma Mauro Koury. “Sem esse retorno não há a troca, não se constroem vínculos
e a amizade não acontece.”
Situações
extremas
Koury
acredita que, em situações extremas, como em prisões, os laços de amizade
costumam ser mais intensos. “A necessidade do outro no isolamento, ou em
cenários de crises pessoais, guerras, catástrofes e aprisionamento, deixa o
indivíduo mais vulnerável. Sua busca de apoio ou de dar apoio aumenta. Mas, com
essa vulnerabilidade, o perigo de ser usado, de ser traído, também aumenta. O
que pode ocasionar o efeito contrário: a recusa a qualquer abertura para o
outro, pelo medo de confiar, pelo receio de ser usado. Romper essa desconfiança
e se entregar a um desconhecido pode significar uma experiência especial de
amizade e de intimidade com durações variáveis: pela vida toda ou apenas
enquanto dure a situação específica.”
Precisamos
de amigos hoje?
“Hoje, a amizade é o tipo de relacionamento
que permite liberdade. É diferente da família, em que o laço é obrigatório”,
explica Mark Vernon. “Por isso a amizade é tão valorizada: porque damos muito
valor à liberdade – e note que a amizade é uma das bases das redes sociais da
internet. De todo jeito, amizade exige tanto quanto a família, não é mais
fácil. Todas as relações humanas pedem coisas em troca e requerem
comprometimento.”
Klein
está atento ao papel da internet na relação entre pessoas. “Bem, ninguém pode
ter tantos amigos assim”, diz. “Há um estudo da Universidade de Oxford que
afirma existir um limite universal de 150 pessoas com quem o indivíduo pode ter
relacionamentos significativos.” E esses amigos, vale lembrar, não são todos
próximos. Segundo a pesquisa, estabelecemos um ranking em que os mais
importantes não passam de cinco pessoas.
“A
internet pode ser tanto boa como ruim para a amizade. Há muito debate sobre o
impacto que ela tem”, conta Mark Vernon. “Ela é boa porque nos ajuda a manter
contato. Ela é ruim porque nos mantém a distância. Palavras digitadas não são o
suficiente para se comunicar.” Stefan Klein completa: “Amizade exige um mínimo
de contato com carne e osso. Chamar de amigo uma pessoa com quem você só divide
notícias, vídeos e virais em uma rede social? Isso é um truque de marketing do
Facebook”.
Tudo é
oxitocina e gene egoísta?
“Eu não compro todas as justificativas
científicas, não. Como quando dizem que as amizades mais profundas são feitas
na juventude, época em que produzimos mais oxitocina”, diz Stefan Klein. “É uma
explicação mecânica. A oxitocina é um neurotransmissor muito importante para
permitir as relações humanas, fato, mas construir um relacionamento é algo
muito maior do que a liberação de uma substância.”
“Mas a
ciência não reduz a amizade. Seria o mesmo que dizer que descobrir sobre a
química dos óleos aromáticos reduz o cheiro que a flor exala. É justo o
contrário: a ciência adicionou toda uma nova dimensão de maravilhas. Ela
explica os mecanismos fundamentais, mas nunca vai ser capaz de esgotar a
riqueza que cada um experimenta fazendo amigos ou sendo amigo dos outros. As
histórias das nossas vidas não podem ser explicadas. Elas podem ser contadas.”
*
Minha Necessidade dos Outros
Por Luiz Alberto Mendes
Desde
muito cedo, minha companheira mais constante foi a solidão. Meu pai não me
deixava sair de casa. Tentou me dominar e controlar o quanto pôde. Ficar só
naquele quintal exíguo era a pior das torturas. Doía muito ver os garotos da
rua empinando pipa e jogando bola. Quando criava coragem para sair, era quase
uma fuga. Caso meu pai chegasse e eu não estivesse, com certeza tomaria uma
surra. Ele batia até perder as forças. Deixava meu pequeno corpo todo lanhado
por dias. Não podia ir para a escola com aqueles vergões roxos pelo corpo todo.
Eu
era filho único, e não havia ninguém que quisesse ficar preso comigo no espaço
do meu quintal. Eles tinham liberdade e a aproveitavam. Meu pai chegava sempre
bêbado. Eu me escondia na casinha do cão até que ele desmaiasse. Então eu mexia
em seus bolsos e tirava algumas notas. Pegava para promover festinha de doces
com os meninos – era a única forma de mantê-los ali comigo, no quintal.
Eram
meninos pobres como eu, não tínhamos um tostão furado. Com o tempo, tornei-me
uma liderança. Sempre tinha algum dinheiro e, justamente por isso, era bastante
procurado. Foi assim que comecei a roubar, para ter os outros junto comigo.
Somente
quando adulto consegui reconstruir o respeito pelo que é dos outros. Descobri
que a minha necessidade dos outros é a maior das minhas necessidades. Mesmo
dentro da prisão, aprendi a agregar valores. Quis fazer de mim alguém que as
outras pessoas gostassem pelo que havia de bom dentro de mim. E, em parte, acho
que tenho conseguido.
*
Amizade Verdadeira
Por Luiz Alberto Mendes
Meu
primeiro amigo se chamava Renato Rimonato e com ele aprendi o que é uma amizade
verdadeira. Morava em frente à minha casa e ficava comigo no quintal porque
gostava de minha companhia. Nunca aceitou ser comprado. Os que se venderam
jamais conseguiram me enganar. Eu os usava conscientemente.
Sempre
fui muito briguento. Acho que buscava me afirmar. Meu pai me apavorava. Eu era
controlado pelo medo que ele me inspirava pela violência com que me tratava.
Fora de casa era preciso combater esse medo, então enfrentava ameaças e
desafios batendo de frente. E, como era de pequena estatura, vivia apanhando
dos meninos maiores. Renato, embora mais fraco porque sofria de bronquite,
entrava em todas as minhas brigas. E eu, nas dele. Éramos imbatíveis. Com ele
aprendi a alegria, o prazer incomensurável que é ter um amigo leal.
Não me
recordo o que aconteceu, mas sei que a culpa foi minha. Brigamos. No meio de
uma briga, eu ficava cego e partia para cima feito touro bravo. Consegui
pegá-lo pelo pescoço. Renato já havia desmaiado, eu não percebi e continuei o
enforcamento. A mãe dele e os vizinhos acudiram. Fui tirado de cima dele a
vassouradas; eu estava acabando com sua vida. Ele ficou vários dias internado
no hospital. Devíamos ter uns 11 ou 12 anos e nossa amizade foi interrompida
ali. Eu, afastado pelo remorso. Ele, pelo trauma, fugia de mim quando me via.
Completei
18 anos preso, no que hoje chamam de Fundação Casa. Quando fui libertado,
retornei ao bairro onde morava depois de três anos longe. Quem me recebeu foi
Renato. Como se nada houvesse acontecido entre nós, ele, agora um rapaz, me
abraçou chorando de saudade. Levou-me para jantar em sua casa e me proporcionou
imensa felicidade.
Em sua
homenagem, dei o nome de Renato a meu primeiro filho. Há pouco, soube que meu
primeiro amigo de verdade já é falecido.
*
Um amigo entre livros
Por Luiz Alberto Mendes
Conheci
Henrique Moreno na cela forte da Penitenciária do Estado. Nosso nauseabundo
meio de comunicação era o encanamento da privada. Conversar era proibido. Caso
fôssemos flagrados, seriam acrescidos mais 30 dias ao nosso tempo de castigo.
Nas madrugadas, nos falávamos baixinho. Moreno foi a primeira pessoa que ousou
conversar sobre livros comigo. O primeiro sobre o qual me contou foi Os
miseráveis, de Victor Hugo. Colocou tanta alma no relato que quando fui ler o
livro achei até sem graça. Por quatro meses ele me contou histórias de livros
ao pé da privada.
Quando
fui liberado para o convívio, meu novo amigo trouxe duas pilhas de livros, uma
lista dos livros da biblioteca da Casa e um rascunho de carta para minha mãe.
Eu não conseguia transpor para o papel o que pensava. Passei a limpo na minha
letra (minha mãe conhecia) e enviei. Aos poucos fui modificando o rascunho que
ele fazia. Na verdade, a intimidade que havia entre minha mãe e eu só nós
conhecíamos. Concomitantemente, incentivado pelo amigo, comecei a ler também.
No começo, ao fim da página já não lembrava do início. Cinco minutos e já doíam
os olhos. Dez minutos e doía a cabeça. Meia hora e doía o pescoço, mas eu
estava determinado. Quando fui dar por mim, estava lendo 10, 12 horas,
desesperadamente.
Henrique
me acompanhou por décadas. Nosso destino era morrer na prisão ou cumprir a pena
máxima do país. Ele fugiu quase ao final e foi morto pela polícia. Eu consegui
chegar ao final e sair limpo. Sou amigo de sua esposa, de suas filhas e de seu
neto recém-nascido. Uma das coisas que mais lamento é não haver encontrado
Henrique aqui fora. Tenho certeza de que seria uma festa sempre que
estivéssemos juntos. Teríamos muito a comemorar.
*
O editor
Por Luiz Alberto Mendes
Quando vi
os cartazes na entrada dos pavilhões da extinta Casa de Detenção de São Paulo,
procurei saber do que se tratava. A atriz Sophia Bisilliat estava entrando na
prisão com o projeto Talentos Aprisionados. E, dentro do projeto, o escritor
Fernando Bonassi propunha uma oficina sobre textos. Aquilo me interessou. Como
era encarregado da escola da prisão, fui conferir.
Acabei
gostando do cara. Era sincero, só que a oficina dele patinava. Sugeri que
fizéssemos um concurso literário. Fernando vinha toda quarta-feira e passava a
tarde conosco, conversando. Foi quando lhe falei sobre um livro que eu havia
escrito fazia mais de dez anos e que estava engavetado. Ele quis ver. Achou que
era um bom livro e merecia ser publicado. Deu formato aos escritos e entregou
nas mãos do doutor Dráuzio Varela (novamente), que levou os manuscritos à
Companhia das Letras.
De
repente fui desterrado para a penitenciária de Presidente Venceslau, lá perto
do fim do mundo. Na Casa de Detenção eu era professor e possuía uma pequena fábrica
de bichos de pelúcia. Com isso, conseguia sustentar minha esposa e meus dois
filhos. Em Venceslau não havia nada disso. Fernando Bonassi se propôs a
depositar uma verba em nome de minha esposa todo mês.
Quando
meu primeiro livro, Memórias de um sobrevivente, começou a render algum
dinheiro, pedi que parasse com os depósitos. Aqui fora recorro à sua orientação
quando tenho dúvidas. Já me favoreceu tantas vezes que se eu fosse retribuir à
altura não seria possível. Desconfio que só de permanecer no caminho que tenho
seguido já o recompensa o suficiente. Mas prometo: farei tudo para que, no
futuro, o lucro maior na relação seja o dele.
*
À primeira vista
Por Luiz Alberto Mendes
Na
prisão desenvolvemos dispositivos psicológicos de autodefesa. É instintivo e
inconsciente. Aprendemos a detectar a maldade a quilômetros de distância. Aqui
fora, às vezes, me sinto um velho de 100 anos lidando com criancinhas de 5,
tamanha a inocência das pessoas. Recebi e-mail de uma fã de meu livro Memórias
de um sobrevivente (incrível, mas eles existem!). Ela havia lido e estava
encantada com o livro, queria conversar comigo. Respondi, e ela mal conseguia
acreditar que era o próprio cara do livro. Regina Sampaio é atriz, trabalha na
novela Malhação (é a Beatriz) da TV Globo e tem 73 anos. Os e-mails seguiam lá
para a Ilha Primeira da Barra da Tijuca, onde ela mora, e para cá, Embu das
Artes, onde moro. Enormes, carregados de emoção verdadeira e de um bem-querer
imenso – puxa, a gente se gostava muito.
Precisávamos
nos ver. Parecíamos duas crianças ansiosas para se conhecer, para comer bolo
juntas. Arrumei um tempo, ela arrumou carona para mim, e eu fui pra Ilha. Ela
me esperava no cais, quando saltei da embarcação. Nosso encontro foi uma
alegria imensa. Choveu o tempo todo que fiquei em sua casa e eu não lamentei.
Ficamos conversando os cinco dias, das nove da manhã até próximo da meia-noite,
quando ela entrava para o quarto dela.
Pude
acompanhá-la no Projac para fazer as gravações; escutá-la estudando teclado;
acompanhá-la na dança e na musculação; fomos ao teatro para assistir à
excelente peça Um beijo no asfalto, que seu filho, Roberto Bomtempo, codirige e
interpreta; vê-la estudando inglês com a professora africana e escutar seus
planos de ir para a Europa. A mulher é um dínamo e vive como se jamais fosse
morrer. Uma enorme lição de vida. Uma inesperada surpresa, um grande presente
da vida: uma amiga.
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