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segunda-feira, 18 de maio de 2009

15 anos do GREM - Projeto MEMÓRIA DO GREM

Ainda no interior do Projeto MEMÓRIA DO GREM, nas comemorações dos 15 anos deste Grupo de Pesquisa, se publica neste Blog uma resenha feita pelo Professor Mauro Koury sobre o livro de Luis Eduardo Robinson Achutti: Fotografia. Esta resenha foi publicada originalmente na revista Política & Trabalho n. 15, pp. 235 a 238, 1999, e em uma segunda versão na revista Cadernos de Antropologia e Imagem, v. 9, n. 2, p. 125-128, 1999.
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ACHUTTI, Luís Eduardo Robinson (1997). Fotografia. Porto Alegre: Tomo Editorial.

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A dedicatória de um pai fotógrafo ao nascimento de sua filha Julia, logo de início, me comove. De nascimento todo registrado, posa em foto única de recém entrada no mundo. O mundo da fotografia do pai Achutti é introduzido ao pequeno ser que espera o mundo no momento de sua chegada; ou o mundo da Julia invade o mundo da fotografia do pai Achutti, que um dia teve um avô, também fotógrafo, de nome Bartolo Achutti, que seduziu o neto para o mundo da imagem. Não através de suas fotografias mas, como revela o encantado neto seduzido, no texto introdutório ao Fotografia, "por uma imagem que tinha emoldurada pela janela do seu sotão oferecida a toda humanidade: a imagem da lua" .
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O Fotografia de Achutti, assim, coloca o olhar do observador numa ambigüidade que revela e enovela o fato fotográfico com o ato fotográfico. O fato e o ato se fundem e se transmudam ao mesmo tempo como mundos que se complementam. Processos que operam desde a apresentação do olhar, à escolha sobre os recortes escolhidos no real, à seleção do fotógrafo, - que apesar de achar que toda fotografia deve ser mostrada, "que uma fotografia guardada não é nada", cria uma instância entre as que irão ser vistas e as que nunca sairão do arquivo de fotografias mortas, - até se configurarem nas leituras dos olhares que contemplam a arte final apresentada.
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Ato e fato fotográfico revelando a ação do fotógrafo, sua sensibilidade, seu mundo possível elaborado num álbum como uma mostra do constructo apresentado como produção. Produção como fato sobre olhares observadores que se informarão não só de mensagens contidas nas angulações e representações de cada foto, mas como apresentação ao universo particular do fotógrafo. Posto ao exercício público do olhar o ato fotográfico é remetido como fato a novas interpretações. Como um diálogo travado em dois momentos entre diversos mundos possíveis. Onde o mundo possível apresentado como produção, como atos produzidos se enovelam com os mundos possíveis das construções dos olhares observadores que vêem o resultado como fato. Passíveis de sedução, possíveis de apresentação e até de devaneios onde as fotos como fato apresentadas são a ponte para àquela "janela do sotão", que ilumina as combinações do enovelamento e revelação evocadas no livro Fotografia.
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Autor e leitores dialogam em entendimentos variados da narrativa proposta. Isso depois, como ensina Umberto Eco, no seu belo Lector in Fabula, do olhar atento que lê as fotos em sua individualidade e em seu conjunto, invadir o mundo possível do autor para compreensão da narrativa proposta. Para só após sonhar, no estranho e necessário diálogo entre a proposta enredada e os diversos enredos possíveis de serem propostos no constructo simultâneo de vários fatos sobre os mesmos atos que se não são seus, observadores, mas a eles foram oferecidos como produção. Em atos que gerou o fato enredado enquanto mostra fotográfica de autor.
Essa conjugação do ato fato, na construção do autor e nas leituras dos olhares que observam , navegam por um plano comum proposto à organização do livro: um apanhado estético de vinte e dois anos de fotografia. Materialização de um sonho do autor.
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Essa informação leva os olhares a um mergulho estético e histórico sobre a construção e disposição das fotografias no álbum. Olhares podem querer navegar sobre o burilamento estético do autor através do acompanhamento do apanhado fotográfico nesses vinte e dois anos de uso do instrumento. Outros olhares podem querer discorrer sobre o acompanhamento histórico fatual e cronológico do material escolhido para compor o livro. Ambos se perdendo na primeira impressão da observação disciplinada.
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O Fotografia explode o disciplinamento proposto como rota de navegação e aparece como um roteiro sentimental de viagens do autor que as situa para que também possam evocar bons pensamentos nas viagens dos olhares. O autor propõe tocar evocativamente os leitores através das sensações suas sentidas em cada momento de sua navegação fotográfica. É aí que a Julinha entra de novo. Ela não só entra como forma de sedução do pai ao registrar as cenas do seu nascimento, nem só como para influenciar com o seu mundo o mundo fotográfico do pai. Ela entra como sentimento. Como mais uma emoção de um fotógrafo em vida de fotografia, sentimentalmente registrada.
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O Fotografia assim é um passeio no cotidiano emocional e sentimental do Achutti. Revela cada momento de expressão intensa de ternura, de compromisso, de ideologia, de beleza, de arte, de solidão, de esvaziamento, de preenchimento que atravessaram o autor nos diversos instantâneos sentimentalmente escolhidos, e esteticamente realçados por sua câmara, e depois por sua escolha na revelação e na seleção para a mostra.
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O olhar do leitor passa assim a debruçar-se no devaneio do autor, para só então entender e sonhar também com os pensamentos expressos no sonho de Achutti do Fotografia. A cronologia, os recortes temáticos possíveis, a estética em refinamento, são assim secundarizados pelo olhar que vê mais uma vez, e são retomados através das evocações sentimentais provocadas no autor e na viagem junto do autor que o leitor se submete com prazer, também evocando para si os mundos por ele mostrados. Não mais para contraporem-se aos seus também mundos internos, mas para deliciarem-se no elogio à emoção que abunda no Fotografia.
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De Porto Alegre para o mundo, sem esquecer Macapá, no seu retorno a Porto Alegre, seu pequeno Brasil. O Parque Farroupilha, com seus brinquedos esquecidos na areia pela criança que por ali passou, talvez fascinada pela roda gigante que também fascina como fotografia esse que aqui escreve. O Gasômetro, o Guaíba, o por do sol como nenhum outro, a lua com sol, e chega-se a Havana. Rápido. Para cair de novo em Porto Alegre, com uma belíssima imagem de menina monumento, pobre e bela, como pobres e não tão belos os infelizes urbanos retratados nas ruas de Porto Alegre. Então, como em um passe de mágica, se chega a Berlim. Em um auto-retrato retratado de uma pintora, de nome Dina, na Alemanha ainda Oriental, para correr de volta aos braços de Porto Alegre com a imagem e os pincéis de Iberê Camargo.
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Daí se invade Montevidéu, com suas pandorgas, e volta a Porto Alegre. Desta vez sem deixar de visitar Ouro Preto, em duas ontológicas fotos de um músico em descanso e de uma pequena bailarina que espera o baile na rua recomeçar. O retorno a Porto Alegre é político: papéis esvoaçantes soltos ao vento pelas mulheres que ocuparam a casa de estudantes da universidade federal. Mas não resiste, talvez com as lembranças ainda quentes do descanso da música e da dança de Ouro Preto, e mostra uma belíssima imagem de uma lona cujo sol ilumina em todos os seus remendos uma arquibancada de um circo de periferia.
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Mais uma vez no mundo de fora visita o ford apodrecido na garagem de uma casa ou de uma oficina qualquer de Montevidéu, e corre para Porto Alegre, na Rede Ferroviária, com suas máquinas paradas. Madeiras e latarias apodrecendo, formando texturas de uma beleza rara nas lentes do autor. Câmara militante no registro das cenas finais da ferrovia no Brasil, via Porto Alegre, numa série de rostos profissionais de mecânicos até uma última fotografia, que evoca um movimento de greve, que evoca o fim da linha, que evoca homens em ação.
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Mais uma vez Havana, com os seus coloridos, e com o jeito irônico de viver cubano. Das fotos dos carros decadentes, do velho em Trinidad com o seu charuto e sua cesta de vime, passando pelo El Malecon, com suas garotas e garotos que olham fascinados para a câmara do Achutti, talvez a preço de banana. E a presença de la revolución, com a foto de um Camilo Cienfuegos que emoldura uma sala de recepção burocrática decadente, mas de cores fascinantes, nas suas paredes de azul e verde descascados e uma mesa onde se lê Información, junto a um vaso de flores de papel e uma bolsa de fazer tricô.
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Militante desce para a então recente revolução sandinista. Achutti e o olhar do leitor invadem a Nicarágua. O soldado com seu fuzil e seu papagaio, um lambe-lambe, crianças em exercício militar pela paz, e um belíssimo cartaz onde o povo parece caminhar com a cruz, com a viola, com o instrumento de trabalho, pela reconstrução do país, e um menino militar que posa em frente a ele, parecendo dele sair em vida. E la Nicarágua vá: a procissão, meninas que olham algo em cima dos pilares da Catedral de Manágua, a Central de Ação Sindical, com as fotos de Marx, Engels e Lenin.
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Para com um salto revelar a arte na Nicarágua, com suas pintoras primitivas... A volta ao sul do Brasil é inevitável, e se faz em uma bela foto, quase aquarela de um mar sem cor, e do silêncio evocado pelos barcos na areia, ou prisioneiros da vegetação, ou emoldurando o vermelho do entardecer na Lagoa Mangueira.
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Do Rio Grande do Sul pula-se para o Oiapoque, o extremo norte do Brasil, tendo em mente o extremo sul. A lembrança faz o autor, e os leitores que o acompanham, voltarem correndo para lá, com a apresentação de uma paisagem belíssima , quando a câmara capta um solitário e majestoso gavião ao entardecer em um poste de madeira que transporta fios de alta tensão.
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O salto seguinte é para Londres. Visita Paris, e retorna à Alemanha Oriental, ao estúdio da pintora Dina, até chegar a Berlim no dia da reunificação alemã. O povo na praça, o muro destruído, Marx relembrando o tempo de vivo tomando cerveja dada por um jovem na sua rebeldia jovem que, talvez, não pensasse que aquele ser estátua também era um cervejeiro em vida .
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De novo no norte do país, Macapá, numa foto de uma casa com apenas uma frente, sua cerca em torno e um verde estranho de mato que invade, em um céu nublado e abafado, toda a foto. O que parece dar à paisagem um ar de não sei o que, de peça montada, talvez. Mas que incomoda. Com certeza.
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A viagem de Achutti finda em Porto Alegre, como não poderia deixar de ser. Um Achutti acadêmico, diferente, que busca um caminho na antropologia visual onde a fotografia seja a cena mestra. Sem, porém, deixar de comover em suas fotos. O Fotografia termina com a proposta de uma fotoetnografia, no universo pesquisado para uma dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal, do lixão da Vila Dique de Porto Alegre, recém destruído em um incêndio criminoso. Belas imagens reveladas, as últimas, talvez, da seleção de papéis para à venda, ao cotidiano sobreviver de excluídos, na figura de um barbeiro que vivia de fazer a barba de coletores de lixo, no próprio lixão.
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O mundo de imagens registrado no Fotografia é um mundo de sensações de um fotografo engajado com a vida, e com a arte. Uma delícia de devaneio aos olhos interessados no sonho revelado nas fotos de Achutti. Um aprendizado, enfim, para os olhos atentos à arte de fotografar de um fotografo mais do que profissional, amante.
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Mauro Guilherme Pinheiro Koury
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